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O Vermelho e o negro: prospectando uma arte que não deveria existir no progresso, apenas no futuro 



Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Head, Corpus and Limbs


    […] De uma cabeça à outra, agora com corpus e membros. Na instalação Cabeça, corpus e membros (2022), Rosângela Rennó oferece uma oportunidade de desaprender os caminhos prováveis do processo criativo, revisitando sua própria trajetória artística na busca por novas prospecções.

    Tomando o corpo humano como referência de partida, Rennó retorna a um de seus trabalhos de grande repercussão, a série Cicatriz (1996), desenvolvida como parte de um projeto amplo de recuperação do arquivo de negativos fotográficos do Museu Penitenciário Paulista (MPP), localizado no antigo Complexo do Carandiru. Para isso, a artista utilizou estratégias artísticas pelas quais se destacaria: a investigação do estatuto político da fotografia e a apropriação e o deslocamento de imagens fotográficas encontradas em arquivos e recolhidas de jornais, mostrando como tais procedimentos criativos "interrompe[m] o fluxo de fotografias, ao se recusar a fotografar [como] ponto de partida e medida econômica frente a um mundo marcado pelo excesso de imagens” (1).

    Cicatriz traz à tona questões fotográficas de Rennó, como a discussão sobre a imagem anônima, a subordinação das imagens às instituições de esfera pública e coletiva (como os presídios), evidenciando o olhar ou a amnésia social e, assim, abordando de que maneira a descontextualização de imagens vincula-se ao esquecimento dos personagens fotografados. Se a artista omite informações como o nome, a idade, a cor da pele do preso - por questões de anonimato que são da ordem jurídica, mas também da ordem estética da proposta -, qual a cor da pele que o visitante imagina ser do preso que produziu tais objetos? Ou, mais, se as tatuagens apresentadas em Cicatriz retratam as memórias dos artistas e não aquelas dos indivíduos presos, como ocorre tal atualização para a "parábola", para o futuro?

    Em Cabeça, corpus e membros, Rennó retoma Cicatriz e vai além. Juntamente com as imagens fotográficas da série, a artista seleciona duas pinturas e quatro objetos do acervo do MPP: a pintura Braço (1936), de José Vaz de Farias, a pintura As mentes criativas brincam com os objetos que amam (1997), de Camargo, e objetos de autores não identificados: um elmo de metal fundido e plástico, um objeto de metal e madeira no formato de pena, papel e tinteiro, uma máquina artesanal de tatuagem e uma balança artesanal de plástico, madeira e metal.

    O conjunto agrupa fotografias em busca do vocabulário e dos objetos dos presos, as palavras e as coisas do encarceramento. Em se tratando de palavras, a instalação traz à tona o recurso textual, também muito utilizado pela artista. Um painel autoadesivo do fundo da instalação contempla dois campos textuais, o campo da linguagem jurídica versus o da linguagem carcerária, semelhante a outro painel no próprio MPP. Os jogos intertextuais reafirmam o protagonismo do texto em relação à imagem, que a artista já elaborava desde o Arquivo universal (1992-), mostrando como Rennó “lida com o texto da mesma maneira que o faz com uma foto. O texto determina uma potência imagética maior que a da fotografia, imersa no fluxo constante de visualidades” (2), com as falhas, os fragmentos e os relatos ordinários das pessoas e das fotografias.

    Ainda sobre a desidentificação ou o anonimato dos personagens elaborado por Rennó, é preciso lembrar que esse atributo da fotografia remonta à herança de tradição colonial, na qual a Coroa portuguesa desestimulava toda produção de imagens pessoais que pudesse constituir representação simbólica do poder, resultando em “uma retratística ausente e de um processo ativo de construção do esquecimento visual do rosto. E esse é um retrato metafórico de uma sociedade de exclusão e da imobilidade social” (3). Mas, se o portrait foi um gênero pictórico inexistente naquele período, veremos como no contemporâneo ele ganha destaque na produção de mais uma artista da "Parábola”. […]


    1. Paulo Herkenhoff, “Rennó ou a beleza e o dulçor do presente”. In: Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1996, p.6.
    2. Maria Angélica Melendi, “pequena ecologia da imagem: um glossário em construção”. In: Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2021, p.133.
    3. Herkenhoff, op. cit., p.5.


    PITOL. André. O Vermelho e o negro: prospectando uma arte que não deveria existir no progresso, apenas no futuro (excerto de texto). In A parábola do progresso. São Paulo: Sesc São Paulo, 2023, pp. 59-61.


    Seu espelho, um caleidoscópio

    Her mirror, a kaleidoscope

    Textos relacionados ao trabalho


    Texts linked to the work Mr. Nobody's Land Project

      [...] O pensamento decolonial evidenciou que é insuficiente a reescrita de narrativas pelo viés descentrado e diaspórico, como defendiam as teorias pós-coloniais, caso não se debrucem sobre esses fatores condicionantes. São necessárias presenças concretas de corpos ora subalternizados para transformar as estruturas de fala, memória e sociabilidade e fazê-las abarcar suas existências. 

      Ocorridos entre os anos 1980 e a atualidade, esse debate e a virada epistemológica que acarreta são contemporâneos, no Brasil, a uma sucessão de eventos orientados pelo ideal de justiça social, como a reconquista de direitos civis, mediante a Constituição de 1988; a implementação das cotas raciais em universidades (2003); ou mesmo a erradicação da fome (2014). No entanto, e justo por isso, o período também abarcou, por entropia, o fortalecimento de uma agenda conservadora, imbuída, por exemplo, de fazer ferrenha oposição a pautas ligadas aos direitos humanos, tais quais o aborto e a identidade de gênero. 

      Da abertura à crise democrática em que hoje o país se encontra, o que parecia ser processos com potencial para reformar as bases da sociedade brasileira, comprovou-se ser apenas mais uma janela histórica. Essa circularidade, na qual a “ferida colonial” não se cura, e sim volta a sangrar, decorre de uma dinâmica em que pactos sociais são estabelecidos e logo quebrados, sem dúvidas devido à sua fragilidade. Em um momento de profunda distopia, retornar a essas janelas permite refletir sobre o que as levou à falência, enquanto também permite reacender as vocações que tinham e ainda podem ter pulsantes. 

      Do reencontro com o imaginário da redemocratização deflagrado em meados dos anos 1980, Rosângela Rennó extraiu o trabalho comissionado para esta mostra na Pinacoteca Estação. A artista ganhou de um professor universitário uma coleção quase completa de slides, fitas e manuais que compunham um material audiovisual de ensino para jovens e adultos. Os kits foram concluídos por volta de 1986 e são fruto de uma parceria entre editoras e alas progressistas da Igreja Católica, como as Comunidades Eclesiais de Base e as Pastorais da Terra e da Juventude do Brasil, cuja atuação desde o período da ditadura envolvia não só disseminar preceitos cristãos, mas também promover uma pedagogia politicamente emancipatória, como proferia o educador Paulo Freire. As aulas perpassavam tópicos de “Estudos de problemas brasileiros”, parte do currículo escolar àquela altura, com linguagem simples e rica em humor, ilustrações e referências ao cotidiano do trabalhador, tendo em vista motivá-lo a sair de um estado de alienação e a participar da vida pública. 

      Rennó restaurou esse material e o utilizou para criar uma nova narrativa, o que pressupôs reordenar os slides; entremeá-los e sobrepô-los com imagens de arquivos contemporâneos, como o Mídia Ninja ou o #rioutópico (em construção) (2017), de sua autoria junto com jovens fotógrafos da periferia do Rio de Janeiro. Ainda agregou ao material outra locução e uma trilha sonora do coletivo O Grivo. Terra de José Ninguém (2021) resulta em uma videoinstalação com quatro capítulos, a serem sincronizados dois a dois. Entre os demais, dedicados a abordar as incertezas, a questão agrária, e o futuro, o primeiro assume um papel central, por caracterizar um personagem, ao mesmo tempo um sintoma do meio social e um potencial agente crítico. Seja “Zé Ninguém”, como sinal da falta de posses ou reputação, na gíria popular; seja “José Ninguém”, como pista de uma dignidade ou diferenciação exigida, o fato é que se trata de alguém cuja identidade individual abarca, no exercício da artista, o cerne de enunciações coletivas, de país e de sociedade. 

      Tão particular, embora tão genérico, esse personagem também se porta diante do espelho para refutar a história como narrativa de exclusão e usufruir de seu direito inalienável à cidadania e à memória. Nesse projeto de educação política para o qual toda a trajetória de Rosângela Rennó presta sua contribuição, cabe a cada pessoa especular-se não para encontrar uma imagem, mas para exercê-la, em um percurso de enfrentamento e busca que começa pelo olhar e exige o corpo, o tempo e as relações - ou melhor, as ecologias. [...]


      MAIA. Ana Maria. Seu espelho, um caleidoscópio (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9-35.
      […] Decolonial thought has shown that rewriting a narrative from a decentered and diasporic perspective, as defended by postcolonial theories, is not enough if they do not address these conditioning factors. The concrete presence of currently subjugated bodies is necessary to transform the structures of speech, memory and sociability so that the existence of those bodies is encompassed by these structures. 

      In Brazil, between the 1980s and today, this debate and the epistemological shift it entails have been contemporary to a succession of events guided by the ideal of social justice, such as the regaining of civil rights through the 1988 Constitution, the implementation of racial quotas in universities (2003) or even the eradication of hunger (2014). However, and for this very reason, the period also saw the entropic strengthening of a conservative agenda tied to a staunch opposition to human rights agendas, such as abortion and gender identity. 

      From the end of the civil-military dictatorship to the democratic crisis in which the country finds itself today, processes that seemed endowed with the potential to reform the foundations of Brazilian society proved to be just another historical window. This circularity, in which the “colonial wound” does not heal, but rather bleeds again, stems from a dynamic in which social pacts are established and then broken, no doubt due to their fragility. In a moment of profound dystopia, returning to these windows allows us to reflect on what led them to failure, while also allowing us to rekindle the pulsating vocations they had and may still have. 

      The work commissioned for this exhibition at the Pinacoteca Estação was based on the recovered imaginary of redemocratization that took hold in the mid-1980s. A university professor gave Rosângela Rennó an almost complete collection of slides, tapes, and manuals used as teaching material for young people and adults. The kits, published around 1986, resulted from a partnership between publishers and progressive wings of the Catholic Church, such as the Basic Ecclesiastic Communities and the Pastoral Land Commission and the Youth Pastoral Ministry, whose activities since the dictatorial period involved not only disseminating Christian precepts, but also promoting a politically emancipatory pedagogy as formulated by educator Paulo Freire. The classes covered topics of Brazilian Problems, part of the school curriculum at that time, with simple language, rich in humor, illustrations and references to workers’ daily life, aiming to motivate them to leave alienation aside and participate in public life. 

      Rennó restored this material and used it to create a new narrative, with a view to which it was necessary to rearrange the slides, interspersing and superimposing them with images from contemporary archives, such as Mídia Ninja or #rioutópico (em construção) [#utopianRio (Under Construction)] (2017), authored by Rennó together with young photographers from the outskirts of Rio de Janeiro. She also added another voice-over and a soundtrack by the collective O Grivo. Terra de José Ninguém [Mr. Nobody’s Land] (2021) is a video installation in four chapters, synchronized two by two. Three of them address uncertainties, agrarian issues and the future, but the first chapter plays a central role insofar as it describes a character, a symptom of the social environment and at the same time a potential critical agent. Both under the name “Zé Ninguém”—a sign of lack of possessions or reputation in popular slang—and “José Ninguém”—which hints at a claim of dignity or differentiation—the fact is that this is someone whose individual identity, in the artistic exercise, embraces the core of a country’s and a society’s collective statements. 

      Simultaneously particular and general, the character also stands in front of the mirror to refute history as a narrative of exclusion and enjoys his inviolable right to citizenship and memory. In this project of political education to which the entire trajectory of Rosângela Rennó contributes, it is up to each person to look at him or herself in the mirror and “speculate,” not to find an image, but to wield one, in a journey of confrontation and search that begins with the gaze and then calls in the body, time, and relationships—or rather, ecologies. [...]


      MAIA. Ana Maria. Her mirror, a kaleidoscope (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9- 35.


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      Seu espelho, um caleidoscópio

      Her mirror, a kaleidoscope

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      Texts linked to the work Eaux des Colonies Project

        [...] De ritual de devoração do inimigo à metáfora de incorporação de traços de alteridade, o canibalismo subjaz como uma maneira de disputar narrativas e enfrentar heranças do pensamento colonial. “Só me interessa o que não é meu”, declarou o Manifesto Antropófago de 1924, abrindo um flanco de práticas no contexto da arte moderna que se desdobram ainda na contemporaneidade. Um dos projetos mais recentes de Rosângela Rennó vai nessa direção e se presta a canibalizar a própria ideia de colônia, dando visibilidade à origem do termo e a como seus usos o impregnam de conotações geo-políticas. Eaux des colonies [Águas das colônias] (2021) divide-se em duas partes. Les origines [As origens], a primeira, consiste em um dossiê em construção sobre a história da água de Colônia, que passou de elixir mágico a sinônimo para qualquer tipo de perfume. 

        Essa história coincide com o crescimento das rotas mercantis na Europa e, por isso, carrega o espírito expansionista que está no cerne do colonialismo. Inventada na Europa no século XVII, na Itália, sob a designação de Aqua Mirabilis, a fórmula foi levada para a cidade de Colônia, Alemanha, importante entreposto comercial na época. Ali, também passou a ser produzida e foi rebatizada por soldados franceses como Eau de Cologne. A água de Colônia tornou-se objeto de desejo e começou a ser falsificada em diversos lugares da Europa e, logo, do mundo. Para além de uma discussão sobre autorias, as cópias correspondem à busca por pertencer a um estrato social por meio da reprodução de hábitos de consumo. Ao mesmo tempo, elas também demonstram a importância da lógica pirata, que viabiliza o acesso a esses lugares de desejo a partir da quebra de patentes e da reinvenção de centralidades. 

        A obra reúne fatos importantes dessa história em uma extensa linha do tempo, na qual se pode perceber a mescla de fontes físicas e virtuais, notas editoriais manuscritas em post-it e carimbos de indexação dos conteúdos, além de lacunas inerentes a uma pesquisa em andamento. O gesto de canibalização da artista se deu na medida em que ela promoveu um desvio de narrativa. No decorrer da leitura, logo se percebe que contar a história do produto virou um pretexto para falar sobre modelos de colonização. 

        O dossiê culmina na segunda parte do projeto, En construction [Em construção], que deflagra um processo de identificação de águas das colônias, não uma, mas muitas, diversas, plurais, fruto de outras agências e protagonismos. Sobre uma base retangular branca, marcada com um corte ao meio que remete à Linha do Equador, são posicionadas 207 garrafas de vidro, cada uma correspondente a um país que já foi colonizado. Os tamanhos dos frascos são proporcionais à extensão dos territórios e
        sua distribuição na base remonta à sua localização no mapa mundi. Para fazer uma água de colônia, costuma-se usar cerca de 94% de base alcoólica e a essência ocupa o percentual restante. A instalação apresenta as garrafas preenchidas apenas com o álcool. Em texto, a artista informa sobre essa falta crucial no conteúdo e, ainda assim, convida a admirar a incompletude como um estado de espera. Rennó pretende realizar uma enquete com pessoas naturais das ex-colônias em questão e pedir-lhes que respondam à pergunta: “qual aroma melhor define hoje o seu país?”. 

        Essas escutas reservam a definição de traços ou essências de identidade aos sujeitos e a suas comunidades, nunca a terceiros. Nelas e em outras dinâmicas afins estariam os caminhos para suspender representações políticas que mantêm intactas as cartografias do poder. Ou seja, nelas estariam as chances de, pelo contrário, defender o estabelecimento de políticas representativas que devolvam acento e voz a quem a história colonial silenciou. [...]


        MAIA. Ana Maria. Seu espelho, um caleidoscópio (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9-35.
        [...] From a ritual of devouring the enemy to a metaphor for incorporating features of otherness, cannibalism has been an ongoing underlying presence that disputes official narratives and confronts the legacies of colonial thought in Brazil. “I am only interested in what is not mine,” declared the Manifesto Antropófago [Anthropofagic Manifesto] of 1924, opening up a stream of modern art practices which still runs nowadays. One of Rosângela Rennó’s most recent projects goes in this direction and lends itself to cannibalizing the very idea of a colony, showing where the term comes from and how its uses impregnate it with geopolitical connotations. Eaux des colonies [Waters from the Colonies] (2021) is divided into two parts. The first one, Les origines [The Origins], comprises an ongoing report on the history of Eau de Cologne itself, which was originally a magic elixir and has now become almost a synonym for any kind of perfume. 

        This history coincides with the growth of trade routes in Europe and therefore carries the expansionist spirit that is at the heart of colonialism. Invented in Europe in the 17th century as Aqua Mirabilis, the formula was taken from Italy to the city of Cologne, an important trading post at the time in Germany. It began to be produced there and was renamed Eau de Cologne by French soldiers. This “Cologne Water” became an object of desire and began to be counterfeited in several places in Europe and soon around the world. The copies go beyond a discussion on authorship and correspond to the quest for belonging to a certain social stratum through the reproduction of consumption habits. At the same time, they also demonstrate the importance of the logic of piracy, which enables access to these places of desire by breaking patents and reinventing centrality. 

        The work gathers important facts of this history in an extensive timeline, in which one can perceive a mix of physical and virtual sources, handwritten editorial notes on post-it note pads and stamps for indexing the contents, besides the inevitable gaps that characterize any ongoing research. The artist’s gestures can be considered as a form of cannibalism to the extent that she has promoted a detour of the narrative. In the course of reading, one soon realizes that telling the story of the product becomes a pretext to talk about colonization models. 

        The report culminates in the second part of the project, En construction [Under Construction], which sets off to identify the waters of the colonies— not one, but many, diverse, plural, the product of other agencies and leading roles. On a white rectangular base, with a cut in the middle to suggest the Equator, Rennó positions 207 glass bottles. Each one corresponds to a country that was once colonized. The bottle sizes are proportional to the countries’ size, and their distribution goes back to their location on the world map. Eau de Cologne is usually about 94% alcohol, while the rest are essential oils. In the installation, the bottles have alcohol only, and Rennó reveals this crucial absence in her text, while at the same time inviting one to admire this incompleteness as if it represented a waiting status. She states her intention of conducting a poll with people from the former colonies and asking them to answer the question: “Which aroma best defines your country today?” 

        In these hearings, the definition of identity traits or “essences” belong to the subjects and their communities, never to third parties. In these and other similar dynamics lies the way to discontinuing all political representations that safeguard the cartographies of power. On the contrary, it would be possible to defend representative policies that give back a voice and a local accent to those who have been silenced by colonial history. [...]


        MAIA. Ana Maria. Her mirror, a kaleidoscope (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9- 35.


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        Três esquivas rumo ao arquivo de Rosângela Rennó


        Three Sidesteps to Rosângela Rennó's Archive

        Textos relacionados ao trabalho


        Texts linked to the work Eaux des Colonies Project

          [...] Antes do lockdown imposto pela COVID-19, Rosângela Rennó havia sido convidada para participar do “Artist Meets Archive”, um programade residência artística localizado em Colônia, Alemanha, como parte da Internationale Photoszene Köln. Estava programado para 2020, quando ela pesquisaria no Stiftung Rheinisch- -Westfälisches Wirtschaftsarchiv zu Köln, o Arquivo da Fundação Econômica do Reno-Vestefália, em Colônia (RWWA). Embora seus planos originais tenham mudado radicalmente em razão da pandemia, ela expôs um projeto par- cialmente baseado nos arquivos da RWWA no Museum für Angewandte Kunst (MAKK), o Museu de Artes Aplicadas, entre 21 de maio e 5 de julho de 2021. Confinada em casa no Brasil, Rennó pesquisou remotamente para retraçar as origens e histórias da água de Colônia, “inventada” na cidade alemã de mesmo nome. A artista montou Eaux des Colonies [Águas das colônias] (2020-2021), uma extensa linha do tempo, sem final definido, alocada em uma longa parede da galeria, expondo como a invenção do perfume foi contestada, apropriada e se tornou motivo tanto de guerras comerciais como de antagonismos nacionalistas ou regionais. A linha do tempo foi acompanhada por uma instalação feita de de jarros e garrafas de vidro parcialmente preenchidos com álcool, representando todos os países que foram colonizados em algum momento de suas histórias. Rennó declarou: Quando os documentos se tornam imagens e são acessíveis por meio da internet, experimentamos uma espécie de efeito de equalização da informação. Para o bem ou para o mal. Arquivos históricos, blogs de história, as histórias de perfumes em sites de vendas, tudo junto... parece uma atualização do conceito do “museu imaginário”, criado por André Malraux. Esse efeito é perverso e parece ter se consolidado de uma vez por todas.

          O que a artista identifica como a “equalização dos efeitos da informação” é, na verdade, um paradoxo definidor geralmente aplicado à fotografia. Nesse sentido, a observação de Thierry de Duve sobre o contexto sempre arbitrário da imagem pode ser útil para provar que o topos do arquivo não é o da web (embora opere dentro de seus limites):

          A fotografia costuma ser vista de duas maneiras: como um evento, mas nesse caso um evento estranho, uma gestalt congelada que comunica muito pouco, ou quase nada, a fluidez das coisas que ocorrem na vida real; ou é tida como imagem, como uma representação autônoma que pode, com efeito, ser emoldurada e pendurada na parede, mas que depois curiosamente deixa de se referir ao evento particular do qual foi retirada.

          Além da descontextualização das imagens em relação aos eventos a que se referem, a divulgação e circulação da imagem de um documento particular na web deixa de residir em um lugar determinado ou a ele pertencer. Seu conteúdo também se separa de seu significado.

          Como Rennó acertadamente observou, a falta de um local de armazenamento condena o documento à desintegração e ao esquecimento virtual. Jacques Derrida, que escreveu sobre o tema quando do surgimento da internet, afirmou que os arquivos só existem quando domiciliados, pois isso marca a passagem do privado para o público. Um corpo de conhecimentos fragmentados em imagens e discursos requer a estabilidade hermenêutica de um lugar onde possa ser abrigado e escondido sob uma autoridade que forneça uma identidade, uma unidade e, em última instância, uma classifica- ção aos documentos, para eventualmente transformá-los em arquivo.

          Apesar das dificuldades devidas às restrições de viagens e pesquisa impostas pela pandemia, a autor- refencialidade do projeto Eaux des colonies, bem como suas fronteiras que se estendem para além de uma genealogia, compromete-se a proporcionar algum fundamento à questão do arquivo em tempos de peste, quando o corpo e seus sentidos são atacados pela COVID-19.


          RANGEL. Gabriela. Três esquivas rumo ao arquivo de Rosângela Rennó (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 117-127.
          [...] Before the COVID-19 lockdown, Rosângela Rennó was invited to participate in “Artist meets Archive,” an art residency program located in Cologne, Germany, as part of the Internationale Photoszene Köln.
          It was scheduled to take place in 2020, when she would research in the Stiftung Rheinisch-Westfälisches Wirtschaftsarchiv zu Köln, the Rhenish- Westphalian Economic Archive Foundation in Cologne (RWWA). Although her original plans changed radically due to the pandemic, she exposed a project partially based
          on the RWWA files at the MAKK, the Museum for Applied Arts, between May 21 and July 5, 2021. Confined in Brazil, Rennó dug remotely to tracethe origins and histories of the Eau de Cologne, which was “invented” in the city of Cologne. The artist assembled Eaux des colonies [Waters from Colonies] (2020-2021), an extensive open-ended timeline, which has been displayed on a long wall at a gallery space, exposing how the invention of the perfume was disputed, appropriated, and became a token for both commercial wars and nationalist or regional antagonisms. The timeline was accompanied by an installation of glass jars and bottles partially full of alcohol, representing all the countries that were colonized at some point in their respective histories. Rennó stated: When documents become images and are accessible through the Internet, we experience a kind
          of equalization effect of the information. For better or for worse. Historical archives, history blogs, perfume history within sales sites, all together... it all seems like an updating of the concept of the “imaginary museum,” created by André Malraux. This effect is perverse and seems to have been consolidated forever.

          What the artist identified as “the equalization effect of information” is, in fact, a defining paradox that is generally applied to photography. In this sense, Thierry de Duve’s observation about the always arbitrary context of an image may be useful to prove that the archival topos is dislocated from the web (although operates within its confines): 

          Photography is generally taken in either of two ways: as an event, but then as an odd looking one, a frozen gestalt that conveys very little, if anything at all, of the fluency of things happening in real life; or it is taken as a picture, as an autonomous representation that can indeed be framed and hung, but which then curiously ceases to refer to the particular event from which it was drawn. 

          In addition to the decontextualization of images from the event that they refer to, an image of a particular document released and circulated on the web ceases to dwell in or belong to any place. Its content is also separated from its meaning. 

          As Rennó aptly pointed out, lacking a guarded space condemns the document to a virtual disintegration and oblivion. Jacques Derrida, who wrote about the topic upon the arrival of the internet, asserted that archives only take place in their domiciliation, as that marks the transition from private to public. A body of knowledge fragmented in images and discourses requires the hermeneutic stability of a place to be sheltered and concealed under an authority who would provide an identity, a unity, and, ultimately, a classification  to the documents to transform them eventually into an archive.

          Despite the difficulties due to the pandemic’s travel and research restrictions, the Eaux des colonies project’s self-referentiality, as well as its over-extended boundaries beyond a genealogy, pledges to bring some grounding to the question of the archive in times of the plague, when the body and its senses are attacked by the COVID-19. 


          RANGEL. Gabriela. Three Sidesteps to Rosângela Rennó's Archive (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 117-127.



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          Rosângela Rennó: Good Apples Bad Apples


          Textos relacionados ao trabalho


          Texts linked to the work Good Apples | Bad Apples

            Na Galeria Cristina Guerra, Good Apples Bad Apples de Rosângela Rennó (Belo Horizonte, 1962) surge, nas paredes, como uma configuração reticular. Uma teia tricolor (vermelho, branco, negro) de sequências, de linhas, uma malha de movimentos. Ou, antes, um texto, a uma certa distância, indecifrável que se espalha sobre o espaço em ritmos distintos, quase opostos. De uma posição mais próxima, esse texto (ou desenho) dá lugar a uma constelação de imagens fotográficas entre si ligadas por um motivo repetido: a representação de Vladimir Lenin em monumentos e estatuária no espaço público. É a imagem do líder histórico e revolucionário, comunista e soviético que as imagens reproduzem, num mapeamento que cruza países, cidades e épocas diferentes. À medida que se observa, mais detalhadamente, o conjunto de composições, revela-se uma origem e um sentido. Grande parte das fotografias foi recolhida na Internet em sites e blogs antes da artista proceder ao seu emolduramento e manipulação. Rosângela Rennó viu, selecionou, compôs. Interveio sobre as imagens encontradas, ressignificando-as, libertando-as da circulação opaca e silenciosa do domínio digital. São estas atividades que permitem recortar de Good Apples Bad Apples questões como o arquivo — representado na Internet, essa grande síntese da alta e da baixa cultura — a história política das utopias, a relação que os indivíduos estabelecem com os monumentos políticos.

            Antes de se transformar numa pesquisa, o trabalho teve o seu princípio num episódio mundano: um amigo ofereceu à artista um conjunto de postais turísticos da era soviética. Realizados em várias cidades da ex-URSS, todos se encontravam visualmente dominados pela presença semidivina, incontornável, dinâmica de Vladimir Lenin. Feita tal descoberta, seguiu-se outra, mas agora no interior do vasto e imaterial espaço da internet: a de que a representação escultórica de Lenin ainda existe, precisamente aí. Ou, reformule-se, ainda circula na rede como ícone, personagem, fantasma, símbolo pixelizado. Foi dessa premissa e realidade que a artista trabalhou, tornando material, concreto (emoldurando, imprimindo, comentando pela escrita) o que se tornara da ordem do imaterial: a própria imagem fotográfica, neste caso de uma figura história representada pela escultura. Interrompendo a sua circulação, Rosângela Rennó resgatou-a da produção e do consumo que está implícito no seu trânsito veloz e invisível, para que a possamos ver. E vemo-la no que pode ter de pungente, singular, desarmante: enquanto instante (se não retrato) das relações que as pessoas estabelecem com a estatuária na sua acepção mais política e cultural.

            Organizadas numa trama, as fotografias aparecem em colunas organizadas alfabeticamente. A cada letra corresponde uma cidade e em cada coluna é possível ver estátuas que existem ou existiram nas cidades identificadas. A menção a diferentes tempos verbais é importante. Algumas estátuas já não existem — vemo-las a serem derrubadas e destruídas — outras ainda permanecem no seus plintos e praças, como tivessem resistido, indiferentes, à violência dos sismos políticos. As primeiras são enquadradas por molduras negras e encontram-se “classificadas” pelo carimbo de uma maçã preta, as segundas são delimitadas por molduras vermelhas e têm um carimbo da mesma cor. Com humor e até alguma candura, Rosângela Rennó alude ao facto de a história, na sua transigência, decidir sobre o destino de ideologias e sistemas políticos e sobre a permanência simbólica e a memórias das suas principais figuras. Nos países ex-comunistas (Ucrânia, Polónia, Roménia, etc.), esse juízo, que corresponde também à posição de maioria, por mais contingente que seja ou tenha sido, foi severo e iconoclasta, enquanto noutras latitudes (Vietname, Cuba, Rússia) tomou a forma de indiferente benevolência ou de uma reservada consideração.

            Numa mesma coluna, é possível encontrar momentos de iconofilia e de iconoclasta, cerimónias oficiais e momentos de destruição e purga. Entre uns e outro, a artista introduz com frequência outro tipo de molduras. Umas, brancas, documentam o modo como as pessoas se apropriaram das estátuas, pintando-as, vestindo-as, deslocando-as. Desaparecida a legitimidade e a autoridade que o regime impunha, Lenin passou a ser apenas mais uma estátua ou um busto, uma figura humana escupida em bronze ou ferro, vulnerável, desprotegida, movível, sujeita a toda o tipo de ações. Em muitas dessas fotografias, o que se testemunha são situações em que a estátua não é mais do que um motivo carnavalesco, cuja ressonância política e simbólica, embora sem desaparecer (e com efeito, por vezes regressa) se vai tornando difusa e distante. Noutras, pelo contrário, as imagens documentam a violências dos conflitos, os efeitos das mudanças do regime no culto passado das figuras.

            Finalmente, restam o outro tipo de molduras, aquelas sem imagem, vazia, como se deixando interrogações sem resposta, imagens não encontradas, hiatos não preenchidos na história de certa escultura ou de monumento. Esta alusão à dificuldade de saber e documentar afirma os limites da pesquisa e por isso a sua natureza artística e em certo sentido, também, iconoclasta. Rosângela Rennó comenta com humor as poses das esculturas, a fisionomia impressa nos bustos, os Lenine pintados ou transformados.

            A irreverência das palavras, contudo, nunca se confunde com caricatura ou sarcasmo, não sugere qualquer julgamento político. A artista aponta e informa, mencionando a origem das imagens, as suas fontes. A esmagadora maioria das fotografias foi realizada na Internet, circulam na internet, mas na galeria aparecem para ser seguidas, vistas, lidas. O exercício pode ser cansativo, até exasperante. Há a tentação de percorrer rapidamente as imagens, quando o que o trabalho nos pede é que nos detenhamos, que observamos com atenção as cenas, os monumentos, os lugares onde estiveram ou ainda estão. Desse trabalho de observação, emergem detalhes surpreendentes: um busto no fundo do Mar Negro, uma escultura no jardim em Seattle, um plinto vazio, um monumento de escala gigantesca e pose hierática, uma escultura que existiu em nome da arte (como a criada para o filme do cineasta, O Olhar de Ulisses de Theodoros Angelopoulos).

            Ao salvar da Internet, ao tornar objetuais, como superfícies hápticas, as fotografias, a artista permite ao espectador ver gestos e situações que são particulares da esfera política. Tal fazer pode ser interpretado à luz do atual contexto político e social no Brasil na sequência da eleição da Jair Bolsonaro. É também nesse domínio onde a artista intervém, mas sem didatismo ou qualquer atitude panfletária. A sua provocação é a de uma inteligência que recusa qualquer sacralização das figuras políticas, mas, pelo contrário, lembra a sua inevitável fugacidade. O lugar de Rosângela Rennó não é o da idolatria ou da iconofilia, mas o do trabalho com a fotografia. Esta prática é nuclear na exposição em termos visuais, conceituais e, até existenciais. Note-se o outro conjunto, onde vemos representadas imagens que aludem à câmera fotográfica. Parecem inusitadas na galeria, mas não são. Enfatizam precisamente aquilo que imagens de Lenin, ao serem retiradas da Internet, também nos parecem dizer: que a imanência indexical da fotografia não aparece apenas para nos assombrar, também instiga a compreensão do que acontece. E como imanência também comporta uma materialidade.


            MARMELEIRA, José. Rosângela Rennó: Good Apples Bad Apples. In Contemporanea #3, 2019, disponível em: https://contemporanea.pt/edicoes/06-07-2019/rosangela-renno-good-apples-bad-apples


            Arquivo e entropia


            Textos relacionados ao trabalho


            Texts linked to the work Good Apples | Bad Apples

              As questões em torno da relação entre fotografia e percepção da história têm estado no cerne das motivações artísticas e reflexivas de Rosângela Rennó. O interesse pelos processos de memorização, com destaque para a noção de arquivo (como sistema de acumulação e regulação discursiva), e correlativamente sobre as possíveis articulações conceptuais, morais e estéticas entre história, arte e política, permitem situar o seu trabalho no contexto de tendências artísticas que reclamam uma atitude analítica e crítica perante a situação contemporânea, apelando à memória dentro da atualidade e à compreensão da atualidade dentro da história.

              Esta exposição é coerente com esse conjunto de preocupações, agora escrutinadas à luz de fenómenos recentes, designadamente, as mudanças tecnológicas, mediáticas e socioculturais que parecem estar a induzir alterações significativas no modo como nos habituamos a perceber o devir histórico através das imagens fotográficas. Uma das primeiras razões para este momento reflexivo e autocrítico advém do fato da fotografia ter passado, desde o final do século XX, por um inelutável processo de superação tecnológica. Desde logo, porque todo um sistema de técnicas, métodos e equipamentos de produção fotográfica foi sendo substituído por uma outra superestrutura de modos e dispositivos (de base electrónica, ou digital, como se vulgarizou dizer) que mudaram e ampliaram de forma avassaladora as possibilidades de captação, edição e circulação da imagem.

              Das obras presentes na exposição, comecemos por A imagem persistente, uma composição de fotografias que configura um olhar sobre objetos, brinquedos, gadgets e imagens que remetem para uma cultura técnica e material já notoriamente obsolescente. A artista convoca uma memorabília que nos relembra o anterior apego popular pela parafernália da fotografia analógica, sintomas que nos dirigem para uma arqueologia da fotografia moderna. Cabe-nos perguntar: o que ainda resta deste imaginário e dos regimes visuais que a fotografia foi sedimentando ao longo dos últimos dois séculos? Como será possível repensar e atualizar a prática do arquivo neste novo sistema digital e virtual, onde tudo tende a ser sujeito à indexação algorítmica e alocado algures numa nuvem?

              É importante salientar que as consequências desta (r)evolução digital não se confinam às alterações desencadeadas por uma nova tipologia de produção fotográfica. Na verdade, os seus efeitos são ainda mais radicais se pensarmos no impacto que têm tido num plano societal mais vasto, constituindo-se como uma parte essencial de um novo paradigma comunicacional caracterizado pela profusão de fluxos de trocas e de partilhas de dados e de signos visuais. Como nunca antes, vivemos cercados de imagens, ainda que a maior parte delas nos sejam invisíveis, simplesmente porque a atenção que lhes dirigimos ser cada vez mais rara e fugaz. Daí a dúvida de saber o que vale a imagem no singular quando ela parece ser um elemento mínimo condenado à irrelevância no seio de uma rede superabundante e imparável de mercadoria imaginária.

              Hoje, fotografamos com câmeras fotográficas (que, sintomaticamente, permitem captar e editar fotografias e filmes), mas com maior frequência com smartphones. Tudo (imagens, palavras, objetos, lugares...) parece destinado à sua transcodificação cibernética. É um sistema que se organiza no primado da ubiquidade, facilidade processual, conectividade, extrema fluidez e circulação. O que dizer, quando dados recentes, referem que todos os dias são carregadas 1,8 biliões de novas imagens na internet, o que perfaz um total anual de 657 biliões, um cenário que não estava provavelmente nas melhores (ou piores) cogitações de Jean Baudrillard quando no início dos anos de 1980 elaborava o seu seminal livro, Simulacros e Simulação.

              A maior peça da exposição é Good Apples | Bad Apples [proposal for a document-monument], uma instalação de aproximadamente 700 imagens, retiradas maioritariamente da internet. As imagens representam os monumentos escultóricos dedicados a Lenin, em vários países, que foram destruídos após a dissolução do bloco soviético, bem como os que persistem nos locais públicos, embora muitos deles tenham sido reposicionados em outros locais menos relevantes da paisagem urbana. Também se incluem algumas fotografias históricas que mostram as esculturas nos seus locais originais.

              Cada umas das imagens foi intervencionada com escritos à mão, proporcionando informações complementares a cada imagem. A autoria das fotografias e o local onde foram publicadas aparecem escritos sobre as próprias molduras. Além disso, a escolha da cor de cada moldura obedece a uma codificação que tem em conta o estado físico do monumento: as molduras vermelhas contêm as fotografias que mostram a totalidade do monumento no seu local de assentamento original; as molduras pretas abrangem imagens com manifestações de iconoclastia; as brancas apresentam os locais para onde os monumentos foram deslocados, ou alguma outra situação de releitura ou ressignificação desses monumentos. As fotografias são organizadas pelo nome da cidade, numa ordem alfabética (de A a Z ou de Z a A, conforme o movimento do visitante), espalhando-se horizontalmente no espaço expositivo. Por fim, é de notar também a existência de carimbos sobre as imagens de maçãs de cor vermelha, preta e branca. Marcações ambíguas que implicam o espectador nesta aferição especulativa sobre como entender a figura de Lenin, entre o mito e a infâmia – ou como distinguia a popular metáfora, entre ser uma “boa” ou uma “má” maçã.

              Do monumento ao anti-monumento, a figura de Lenin é sujeita ao confronto entre idolatria e iconoclastia. A escolha desta figura está longe de ser casual. É inevitável discernir nesta instalação uma reação à crise política, institucional e social que afeta o Brasil, nomeadamente, no decurso do processo histórico que conduziu ao impeachment de Dilma Rousseff e à recente eleição de Jair Bolsonaro. Ao convocar a figura de Lenin, a artista parece suscitar a questão: o que aconteceu à esquerda? O que resta, o que prevalece do seu legado? Uma escultura com duas sandálias Havaianas do pé direito, com a data 2019, indicia uma resposta vazia, pessimista, desolada. À entropia da imagem a artista associa a entropia do discurso político. Com efeito, vivemos em condições mediáticas, tecnológicas e culturais que exacerbaram os fenómenos de erosão do sentido das coisas, das imagens, das palavras, das ideologias. É neste contexto que a artista procura reafirmar uma das mais prementes funções do artista visual contemporâneo: coligir, (re)posicionar, (re)montar as imagens, reformular o seu sentido e o seu estatuto, assumindo-se cada vez mais como figura de compromisso entre o criador, o arquivista, o editor, o historiador e o crítico do fenómeno das imagens, alguém que entende que o seu trabalho está efetivamente no meio, entre a prática e a teoria, entre arte e a realidade social, entre as genealogias da arte e a atual cultura mediática e cibernética.


              MAH, Sérgio. Arquivo e entropia. In Cristina Guerra (2019). Disponível em: https://www.cristinaguerra.com/exhibition/rosangela-renno---good-apples-bad-apples/


              Rosângela Rennó


              Textos relacionados ao trabalho


              Texts linked to the work Exercices on 3D (transparency)

                […] A superexposição midiática de certas imagens é trabalhada na obra-provocação Exercícios de 3D (transparência), (2019). Pequenos textos descrevendo fotografias famosas estão pregados na parede e, sobre uma prateleira, fica à disposição um aparato antigo para visualizar imagens em 3D que, no entanto, mostra um trecho descritivo desconfortável de ler pela movimentação das letras. O material faz parte do Arquivo Universal, que a artista começou em 1992. São descrições jornalísticas de fotografias disseminadas pela imprensa internacional de maneira tão intensa que a leitura permite à memória (na maioria dos exemplos) associar a descrição à imagem correspondente, incorporada ao repertório visual da maioria das pessoas com acesso a jornais e revistas de grande circulação. […]


                WERNECK, Sylvia. Rosângela Rennó (excerto de texto). In ArtNexus #116, 2021, pp. 100-101.
                […] Rennó’s artwork-provocation 3D Exercises (Transparency), (2019) deals with the overexposure of specific images in the mass media. Short texts describing famous photographs are nailed to the wall. At the same time, an old device for visualizing 3D images, accessible on a shelf, presents a descriptive passage with letters that shift, making reading uncomfortable. The material is part of the Universal Archive that Rennó began in 1992. It collects descriptions of photographs so intensely circulated in the international press that reading the texts is (in most instances) is enough for our memory to bring forth the corresponding image. Such images are incorporated into the visual repertoire of most people with access to general circulation newspapers and magazines. […]


                WERNECK, Sylvia. Rosângela Rennó (text excerpt). In ArtNexus #116, 2021, pp. 100-101.


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                Rosângela Rennó


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                Texts linked to the work Aucune Bête au Monde

                  [...] Em Aucune Bête au Monde (No Beast in the World, 2019), o procedimento de Rennó é análogo à sua intervenção na fachada. O título francês da obra vem de um livro de 1959 sobre a Independência da Argélia, travada entre 1954 e 1962. O livro inclui fotografias e histórias da guerra e foi de autoria de dois oficiais do exército francês. Os rostos dos autores foram mascarados com tinta cinza e todas as palavras foram cortadas. Sem a individualização proporcionada pelos rostos, o fato de se tratar de uma ação armada permanece uma evidência. Se se trata de uma guerra, de uma missão humanitária, de um resgate ou de um exercício de treino, já não pode ser determinado, nem pode ser estabelecido em que parte do mundo ocorreu. No entanto, algumas constatações são inevitáveis: as armas são reconhecíveis, mesmo em linhas gerais, pois fazem parte da experiência quotidiana de qualquer pessoa que viva numa sociedade complexa, e o seu aparecimento implica imediatamente a proximidade do perigo. O agressor e a vítima não são identificados e não há justificativa ou explicação para a hostilidade entre eles. O confronto, por outro lado, é universalmente compreendido. [...]


                  WERNECK, Sylvia. Rosângela Rennó (excerto de texto). In ArtNexus #116, 2021, pp. 100-101.
                  [...] On Aucune Bête au Monde (No Beast in the World, 2019), Rennó’s procedure is analogous to her intervention on the façade. The work’s French title comes from a 1959 book on the Algerian Independence was, fought between 1954 and 1962. The book includes photographs and stories from the war and was authored by two officers in the French army. The faces of the authors have been masked under gray ink, and all the words have been cut out. Without the individualization provided by the faces, the fact of this being an armed action remains evidence. Whether it is a war, a humanitarian mission, a rescue, or a training exercise can no longer be determined, nor can it be established where in the world it took place. Yet, some realizations are inevitable: the weapons are recognizable, even in outline, as they are part of everyday experience for any person living in a complex society, and their appearance immediately implies the proximity of danger. The aggressor and the victim are not identified, and there is no justification or explanation for the hostility between them. Confrontation, on the other hand, is universally understood. [...]


                  WERNECK, Sylvia. Rosângela Rennó (text excerpt). In ArtNexus #116, 2021, pp. 100-101.


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                  Seu espelho, um caleidoscópio

                  Her mirror, a kaleidoscope

                  Textos relacionados ao trabalho


                  Texts linked to the work Notable Beings of the World

                    [...] Para além de serem ocasionais, as omissões que a artista repercute, como algo recorrente nos documentos da história colonial, dizem respeito ao controle narrativo exercido no intuito de evitar representações que pudessem fomentar o desejo de emancipação. Por exemplo, os retratos de cidadãos comuns eram evitados, a não ser no contexto de etnografias e pesquisas científicas financiadas pela Coroa com finalidade recenseadora e, consequentemente, de dominação. 

                    As condições dessa retratística convocam Rosângela Rennó a desenvolver trabalhos como Seres notáveis do mundo (2014-21), iniciado durante uma residência em Las Palmas, nas Ilhas Canárias, Espanha. Foi ali, no El Museo Canario, que a artista teve acesso à coleção de mais de sessenta bustos em gesso encomendados pelo frenólogo francês Pierre Marie Alexandre Dumoutier, integrante de expedição de pesquisa ao Polo Sul e à Oceania entre 1837 e 1840. Com essa técnica tridimensional, peculiar diante das etnografias mais difundidas em desenho, pintura ou gravura, o frenólogo registrou tipos humanos em diversos lugares, inclusive no Brasil. Os moldes foram feitos diretamente no rosto ou a partir de máscaras mortuárias, no caso de pessoas já falecidas. Cada escultura recebeu em sua base uma plaquinha com o nome e a origem dos retratados. 

                    Por estarem identificados, esses sujeitos alcançaram o requisito da “notabilidade” a que Rennó se refere, com ironia, no título de sua obra. Duas exceções do conjunto inteiro de fato tiveram reconhecidas trajetórias: o filósofo Jean-Jacques Rousseau e o paleontólogo Georges Cuvier. Todos os outros, no entanto, viveram subalternizados e receberam essa menção pontual em um arquivo histórico. A artista fotografou os bustos brancos e os imprimiu em folhas de papel marmorizado. Isso provocou uma espécie de mimetização entre figuras e fundos, efeito que atenuou as presenças e recobrou uma tendência existente, embora que velada no acervo original, de delimitar identidades para salvaguardar a hegemonia geopolítica daqueles que as produzem enquanto representação. [...]


                    MAIA. Ana Maria. Seu espelho, um caleidoscópio (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9-35.
                    [...] This omission is not accidental at all. Rather, it echoes a recurrent element in colonial history documents: the exercise of narrative control in order to avoid representations that could foster the desire for emancipation. Portraits of common citizens were avoided, for example, except in ethnographical and scientific researches financed by the Crown as census surveys made to reinforce its dominion. 

                    The specific features of that kind of portraiture led Rennó to develop works such as Seres notáveis do mundo [Notable Beings of the World] (2014-21), initiated when she took part in an art residency program in Las Palmas, in the Canary Islands, Spain. It was there, at El Museo Canario, that the artist had access to a collection of more than 60 plaster busts commissioned by French phrenologist Pierre Marie Alexandre Dumoutier, who took part in a research expedition to the South Pole and Oceania between 1837 and 1840. With this peculiar three-dimensional technique that differed from the drawings paintings and engravings used in standard ethnography, Dumoutier recorded human types in several places, including Brazil. The molds were made directly on the face or from mortuary masks, in the case of deceased people. Each sculpture had on its base a small plaque with the name and origin of the person portrayed. 

                    By being identified, these subjects achieved the “notability” requirement that Rennó ironically refers to in the title of her work. Two exceptions inside the set indeed had recognized trajectories: the philosopher Jean-Jacques Rousseau and the paleontologist Georges Cuvier. All others, however, lived as subalterns and only received this occasional mention in a historical archive. The artist photographed the white busts and printed the images on sheets of marbled paper, thus creating a similarity between figure and background, an effect that attenuated the presence of the original models and evinced a tendency—which was, however, veiled in the original collection—of delimiting their identity to safeguard the geopolitical hegemony of those who produced their representations. [...]


                    MAIA. Ana Maria. Her mirror, a kaleidoscope (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9- 35.


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                    Rio sem praia, sem Cristo e sem Corcovado


                    Textos relacionados ao trabalho


                    Texts linked to the work #rioútopico [under construction]

                      Rosangela Rennó apresenta em #RioUtópico um panorama da cidade, criado a partir de ações colaborativas, que vai muito além do clichê.

                      Progresso, Vitória, Morada dos Sonhos, Esperança, Novo Mundo, Maravilha e Paraiso não são termos que, especialmente no momento atual, possam estar próximos de qualquer descrição da cidade do Rio de Janeiro. Essas palavras, contudo, estão presentes no cotidiano carioca como nomes de bairros, ruas e vilas e são parte do mapeamento realizado pela artista Rosângela Rennó para #RioUtópico [em construção] para o Instituto Moreira Salles (IMS) da cidade “maravilhosa”. Um dos projetos mais ousados e complexos de Rennó, #RioUtópico levou a própria artista conhecida por ser uma fotógrafa que não fotografa a retornar ao trabalho com a câmera.

                      Parte da ideia original era pedir para moradores de 50 locais elencados pela artista por carregarem a ideia de utopia a realizarem fotos de seu entorno e enviarem ao IMS. A proposta de colaboração precisou ser, contudo, aprimorada. Para tanto, foram realizados workshops com mais de 50 participantes, organizados, a princípio, em parceria com a Agência Redes para Juventude. Posteriormente, com a atuação do próprio setor educativo do Instituto, cinco jovens foram contratados, tornando-se estimuladores do projeto, indo às cerca de 50 localidades escolhidas, em um sistema de rodízio, e eles também realizando imagens. “Em #RioUtópico, Rennó trabalha como uma voz organizadora, que compartilha a visão e convoca à participação, mesmo quando ela própria fotografa, coisa rara na carreira da artista”, explica Thyago Nogueira, curador e organizador da mostra. Colaborações são uma constante na carreira da artista, grande parte de seus trabalhos diz respeito a ressignificar fotografias ou mesmo objetos realizados por outros, em geral uma reflexão sobre a produção e circulação de imagens na sociedade.

                      Foi o caso de A última foto (2006), por exemplo, quando Rennó entregou câmeras analógicas a fotógrafos, pedindo que retratassem o Cristo Redentor, no Rio, cidade onde a mineira de nascimento vive desde 1990. Tanto as imagens quanto as câmeras foram então expostos, compondo um panorama da diversidade das máquinas analógicas e de estilos fotográficos. Com A última foto Rennó ainda tratou da mudança de paradigma analógico para o digital, além de discutir no catálogo da mostra o tem de direito autoral, já que a icônica imagem do Cristo Redentor pertence à arquidiocese do Rio.

                      Agora em #RioUtópico esse procedimento se radicaliza, tanto por se afastar do clichê da imagem turística carioca, quanto por abrir a possibilidade de colaboração com qualquer um que se dispusesse.

                      O resultado se dividiu em dois suportes: na mostra, que ficou em cartaz entre dezembro de 2017 e abril de 2018, e no extenso catálogo de 480 páginas que reuniu cerca de 500 das mais de mil fotografias coletadas e textos detalhados sobre a história de cada lugar _em geral iniciada como reassentamento de moradores retirados de favelas da zona sul ou como ocupação ilegal de áreas não edificadas.

                      A exposição foi ainda sendo construída no tempo, como um álbum sendo preenchido aos poucos, enquanto as imagens chegavam ao IMS. Um grande mapa da cidade foi plotado no piso do espaço expositivo, deixando nas paredes vazios a serem ocupados pelas imagens relativas às comunidades espalhadas pelo mapa.

                      No final da mostra, as imagens formavam um mosaico composto por dezenas de olhares, tanto de moradores, como dos participantes das oficinas, como da própria artista, sem hierarquia e mescladas.

                      Com tudo isso, Rennó revela as diversas camadas que compõem a utopia urbana do Rio de Janeiro para muito além do Corcovado e do Cristo Redentor por textos e imagens. A Vila Progreso, na Vila Kennedy, por exemplo, um assentamento não urbanizado com 58 mil m2 e cerca de 1.500 moradores, é retratada por Thais Alvarenga, em imagens com crianças brincando e ocupando as ruas do local. Como o projeto seguiu recebendo imagens ainda neste ano ele já abarca a malfadada ocupação militar no Rio, como em fotos da Vila Aliança, realizadas por Alan Lima e Danilo Verpa.

                      Assim, a fotógrafa que não faz mais fotos mas voltou a fotografar cria uma imagem do Rio de Janeiro mais para a distopia do que a utopia, um retrato de um país de esperanças prometidas e não cumpridas, um panorama ao final raro dentro do comportado sistema de artes visuais brasileiro.


                      CYPRIANO, Fabio. Rio sem praia, sem Cristo e sem Corcovado. In Arte!Brasileiros n. 43, 2018, pp. 56-58.