O Vermelho e o negro: prospectando uma arte que não deveria existir no progresso, apenas no futuro 

Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Head, Corpus and Limbs


    […] De uma cabeça à outra, agora com corpus e membros. Na instalação Cabeça, corpus e membros (2022), Rosângela Rennó oferece uma oportunidade de desaprender os caminhos prováveis do processo criativo, revisitando sua própria trajetória artística na busca por novas prospecções.

    Tomando o corpo humano como referência de partida, Rennó retorna a um de seus trabalhos de grande repercussão, a série Cicatriz (1996), desenvolvida como parte de um projeto amplo de recuperação do arquivo de negativos fotográficos do Museu Penitenciário Paulista (MPP), localizado no antigo Complexo do Carandiru. Para isso, a artista utilizou estratégias artísticas pelas quais se destacaria: a investigação do estatuto político da fotografia e a apropriação e o deslocamento de imagens fotográficas encontradas em arquivos e recolhidas de jornais, mostrando como tais procedimentos criativos "interrompe[m] o fluxo de fotografias, ao se recusar a fotografar [como] ponto de partida e medida econômica frente a um mundo marcado pelo excesso de imagens” (1).

    Cicatriz traz à tona questões fotográficas de Rennó, como a discussão sobre a imagem anônima, a subordinação das imagens às instituições de esfera pública e coletiva (como os presídios), evidenciando o olhar ou a amnésia social e, assim, abordando de que maneira a descontextualização de imagens vincula-se ao esquecimento dos personagens fotografados. Se a artista omite informações como o nome, a idade, a cor da pele do preso - por questões de anonimato que são da ordem jurídica, mas também da ordem estética da proposta -, qual a cor da pele que o visitante imagina ser do preso que produziu tais objetos? Ou, mais, se as tatuagens apresentadas em Cicatriz retratam as memórias dos artistas e não aquelas dos indivíduos presos, como ocorre tal atualização para a "parábola", para o futuro?

    Em Cabeça, corpus e membros, Rennó retoma Cicatriz e vai além. Juntamente com as imagens fotográficas da série, a artista seleciona duas pinturas e quatro objetos do acervo do MPP: a pintura Braço (1936), de José Vaz de Farias, a pintura As mentes criativas brincam com os objetos que amam (1997), de Camargo, e objetos de autores não identificados: um elmo de metal fundido e plástico, um objeto de metal e madeira no formato de pena, papel e tinteiro, uma máquina artesanal de tatuagem e uma balança artesanal de plástico, madeira e metal.

    O conjunto agrupa fotografias em busca do vocabulário e dos objetos dos presos, as palavras e as coisas do encarceramento. Em se tratando de palavras, a instalação traz à tona o recurso textual, também muito utilizado pela artista. Um painel autoadesivo do fundo da instalação contempla dois campos textuais, o campo da linguagem jurídica versus o da linguagem carcerária, semelhante a outro painel no próprio MPP. Os jogos intertextuais reafirmam o protagonismo do texto em relação à imagem, que a artista já elaborava desde o Arquivo universal (1992-), mostrando como Rennó “lida com o texto da mesma maneira que o faz com uma foto. O texto determina uma potência imagética maior que a da fotografia, imersa no fluxo constante de visualidades” (2), com as falhas, os fragmentos e os relatos ordinários das pessoas e das fotografias.

    Ainda sobre a desidentificação ou o anonimato dos personagens elaborado por Rennó, é preciso lembrar que esse atributo da fotografia remonta à herança de tradição colonial, na qual a Coroa portuguesa desestimulava toda produção de imagens pessoais que pudesse constituir representação simbólica do poder, resultando em “uma retratística ausente e de um processo ativo de construção do esquecimento visual do rosto. E esse é um retrato metafórico de uma sociedade de exclusão e da imobilidade social” (3). Mas, se o portrait foi um gênero pictórico inexistente naquele período, veremos como no contemporâneo ele ganha destaque na produção de mais uma artista da "Parábola”. […]


    1. Paulo Herkenhoff, “Rennó ou a beleza e o dulçor do presente”. In: Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1996, p.6.
    2. Maria Angélica Melendi, “pequena ecologia da imagem: um glossário em construção”. In: Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2021, p.133.
    3. Herkenhoff, op. cit., p.5.


    PITOL, André. O Vermelho e o negro: prospectando uma arte que não deveria existir no progresso, apenas no futuro (excerto de texto). In A parábola do progresso. São Paulo: Sesc São Paulo, 2023, pp. 59-61.


    Rennó ou a beleza e o dulçor do presente


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    Texts linked to the work obituaries


      […] A partir de um arquivo de milhares de negativos para retratos 3 x 4 de um estúdio fotográfico popular, Rosângela Rennó produz muitas obras, inclusive o conjunto de Obituários. Fixa-se seu interesse em trabalhar sobre o esquecimento da identidade produzido na vida social e pela acumulação. Rennó não exalta os aspectos fisionômicos dos retratados. A consequência é que centenas e milhares de rostos reunidos parecem perder todos a possibilidade da diferença, tornando-se uma superfície virtualmente cega. O óbito aqui não é a relação morte/fotografia, mas um fato concernente à representação. Cada um desses negativos parece deixar de atuar como representação do indivíduo. O conjunto de negativos abdica de ser uma representação coletiva. A única representação possível de que essas imagens seriam capazes é uma metarrepresentação, a dos limites da representação. A Rennó interessa essa cegueira provinda da aparente dissolução de uma realidade interior da fotografia, de que fala Boris Kossoy (1), ou de potencialidade informacional, discutida por Aline Lopes de Lacerda (2). Obituário Preto (1991) é uma rede de negativos de retratos isolados, com uma moldura de veludo negro que lhe traz peso, luto, volúpia e sensualidade. Há outra peça semelhante – Obituário Transparente (1991) (3) – em que a artista trabalha a transparência através de 378 negativos 4 x 5 em preto e branco em resina de poliéster. Nesse par de obras, a oposição entre opacidade e translucidez prepara para afirmar que as qualidades físicas importam mais para o nível metafórico dessas imagens. De fato, na medida em que a acumulação de centenas de negativos para fotos 3 x 4, não importando se escuros ou transparentes, dissipam a singularidade e a diferença nesses Obituários, a fotografia atinge, então, seu grau zero de expressividade. Essas pequenas fotografias são ditas fotos de identidade, para documentos oficiais. São como dejetos de imagens, recuperados por uma operação de escatologia semiológica, que lhes inventa uma possibilidade última de existência simbólica. A idealidade da pose e a identidade submergem no mesmo vazio de sentido do sujeito. Narciso encontra um espelho cego. Essas caras não seriam aquelas que Donald Kuspit analisa em “The Repressed Face”(4), porque não é mais o rosto que aceita ser visto por outros, tampouco é o rosto que se recusa a ser visto. “Existe de fato um rosto verdadeiramente aberto, que nada tenha a esconder?”, indaga Kuspit. Nesse mar de Outros, a alteridade se rearticula numa ordem de corporeidade, sob a organização formal por proximidades dos tons, desbotados no tempo. O Outro aqui é Ninguém, ser sem nenhuma identidade. A existência serial da obra de arte com a fotografia, analisada por Walter Benjamin (5),parece transferir-se, no processo de massificação, para o próprio modelo da fotografia. A perda da autenticidade da fotografia encontraria, então, sua correspondência no anonimato desses indivíduos. Para Pierre Bourdieu a fotografia é produção de índices sociais, de um grupo que os produz de sua própria integração. Num sentido, Rennó busca esses índices sociais nos espaços nos quais ainda teriam existência mínima nesses pequenos retratos (3 x 4 cm) para documento de trabalho e outras funções. Rennó promove devassas nesses territórios de sombras, tornando-os alegorias da noite social. […]


          1.    Boris Kossoy, “Estética, Memória e Ideologia Fotográfica”, em op. cit., pp. 13-24. 

          2.    Idem, pp. 41-53. 

          3.    Obituário Transparente, Obituário Preto, Puzzles, Irmãs Siamesas, O Grande Jogo da Memória e Amnésia fazem parte da exposição intitulada A Identidade do Jogo, apresentada pela primeira vez no Centro Cultural São Paulo em 1991. 
          4.    Donald Kuspit, “The Repressed Face”, Aperture, no 114, primavera de 1989, pp. 48-54.

          5.    Walter Benjamin, “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica” (primeira versão), em op. cit., pp. 165-196. 


      HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In Rosângela Rennó. Edusp: São Paulo, 1996, pp. 115-191.


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      Seu espelho, um caleidoscópio

      Her mirror, a kaleidoscope
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      Texts linked to the work Eaux des Colonies Project

        [...] De ritual de devoração do inimigo à metáfora de incorporação de traços de alteridade, o canibalismo subjaz como uma maneira de disputar narrativas e enfrentar heranças do pensamento colonial. “Só me interessa o que não é meu”, declarou o Manifesto Antropófago de 1924, abrindo um flanco de práticas no contexto da arte moderna que se desdobram ainda na contemporaneidade. Um dos projetos mais recentes de Rosângela Rennó vai nessa direção e se presta a canibalizar a própria ideia de colônia, dando visibilidade à origem do termo e a como seus usos o impregnam de conotações geo-políticas. Eaux des colonies [Águas das colônias] (2021) divide-se em duas partes. Les origines [As origens], a primeira, consiste em um dossiê em construção sobre a história da água de Colônia, que passou de elixir mágico a sinônimo para qualquer tipo de perfume. 

        Essa história coincide com o crescimento das rotas mercantis na Europa e, por isso, carrega o espírito expansionista que está no cerne do colonialismo. Inventada na Europa no século XVII, na Itália, sob a designação de Aqua Mirabilis, a fórmula foi levada para a cidade de Colônia, Alemanha, importante entreposto comercial na época. Ali, também passou a ser produzida e foi rebatizada por soldados franceses como Eau de Cologne. A água de Colônia tornou-se objeto de desejo e começou a ser falsificada em diversos lugares da Europa e, logo, do mundo. Para além de uma discussão sobre autorias, as cópias correspondem à busca por pertencer a um estrato social por meio da reprodução de hábitos de consumo. Ao mesmo tempo, elas também demonstram a importância da lógica pirata, que viabiliza o acesso a esses lugares de desejo a partir da quebra de patentes e da reinvenção de centralidades. 

        A obra reúne fatos importantes dessa história em uma extensa linha do tempo, na qual se pode perceber a mescla de fontes físicas e virtuais, notas editoriais manuscritas em post-it e carimbos de indexação dos conteúdos, além de lacunas inerentes a uma pesquisa em andamento. O gesto de canibalização da artista se deu na medida em que ela promoveu um desvio de narrativa. No decorrer da leitura, logo se percebe que contar a história do produto virou um pretexto para falar sobre modelos de colonização. 

        O dossiê culmina na segunda parte do projeto, En construction [Em construção], que deflagra um processo de identificação de águas das colônias, não uma, mas muitas, diversas, plurais, fruto de outras agências e protagonismos. Sobre uma base retangular branca, marcada com um corte ao meio que remete à Linha do Equador, são posicionadas 207 garrafas de vidro, cada uma correspondente a um país que já foi colonizado. Os tamanhos dos frascos são proporcionais à extensão dos territórios e sua distribuição na base remonta à sua localização no mapa mundi. Para fazer uma água de colônia, costuma-se usar cerca de 94% de base alcoólica e a essência ocupa o percentual restante. A instalação apresenta as garrafas preenchidas apenas com o álcool. Em texto, a artista informa sobre essa falta crucial no conteúdo e, ainda assim, convida a admirar a incompletude como um estado de espera. Rennó pretende realizar uma enquete com pessoas naturais das ex-colônias em questão e pedir-lhes que respondam à pergunta: “qual aroma melhor define hoje o seu país?”. 

        Essas escutas reservam a definição de traços ou essências de identidade aos sujeitos e a suas comunidades, nunca a terceiros. Nelas e em outras dinâmicas afins estariam os caminhos para suspender representações políticas que mantêm intactas as cartografias do poder. Ou seja, nelas estariam as chances de, pelo contrário, defender o estabelecimento de políticas representativas que devolvam acento e voz a quem a história colonial silenciou. [...]


        MAIA, Ana Maria. Seu espelho, um caleidoscópio (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9-35.
        [...] From a ritual of devouring the enemy to a metaphor for incorporating features of otherness, cannibalism has been an ongoing underlying presence that disputes official narratives and confronts the legacies of colonial thought in Brazil. “I am only interested in what is not mine,” declared the Manifesto Antropófago [Anthropofagic Manifesto] of 1924, opening up a stream of modern art practices which still runs nowadays. One of Rosângela Rennó’s most recent projects goes in this direction and lends itself to cannibalizing the very idea of a colony, showing where the term comes from and how its uses impregnate it with geopolitical connotations. Eaux des colonies [Waters from the Colonies] (2021) is divided into two parts. The first one, Les origines [The Origins], comprises an ongoing report on the history of Eau de Cologne itself, which was originally a magic elixir and has now become almost a synonym for any kind of perfume. 

        This history coincides with the growth of trade routes in Europe and therefore carries the expansionist spirit that is at the heart of colonialism. Invented in Europe in the 17th century as Aqua Mirabilis, the formula was taken from Italy to the city of Cologne, an important trading post at the time in Germany. It began to be produced there and was renamed Eau de Cologne by French soldiers. This “Cologne Water” became an object of desire and began to be counterfeited in several places in Europe and soon around the world. The copies go beyond a discussion on authorship and correspond to the quest for belonging to a certain social stratum through the reproduction of consumption habits. At the same time, they also demonstrate the importance of the logic of piracy, which enables access to these places of desire by breaking patents and reinventing centrality. 

        The work gathers important facts of this history in an extensive timeline, in which one can perceive a mix of physical and virtual sources, handwritten editorial notes on post-it note pads and stamps for indexing the contents, besides the inevitable gaps that characterize any ongoing research. The artist’s gestures can be considered as a form of cannibalism to the extent that she has promoted a detour of the narrative. In the course of reading, one soon realizes that telling the story of the product becomes a pretext to talk about colonization models. 

        The report culminates in the second part of the project, En construction [Under Construction], which sets off to identify the waters of the colonies— not one, but many, diverse, plural, the product of other agencies and leading roles. On a white rectangular base, with a cut in the middle to suggest the Equator, Rennó positions 207 glass bottles. Each one corresponds to a country that was once colonized. The bottle sizes are proportional to the countries’ size, and their distribution goes back to their location on the world map. Eau de Cologne is usually about 94% alcohol, while the rest are essential oils. In the installation, the bottles have alcohol only, and Rennó reveals this crucial absence in her text, while at the same time inviting one to admire this incompleteness as if it represented a waiting status. She states her intention of conducting a poll with people from the former colonies and asking them to answer the question: “Which aroma best defines your country today?” 

        In these hearings, the definition of identity traits or “essences” belong to the subjects and their communities, never to third parties. In these and other similar dynamics lies the way to discontinuing all political representations that safeguard the cartographies of power. On the contrary, it would be possible to defend representative policies that give back a voice and a local accent to those who have been silenced by colonial history. [...]


        MAIA, Ana Maria. Her mirror, a kaleidoscope (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9- 35.


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        Três esquivas rumo ao arquivo de Rosângela Rennó


        Three Sidesteps to Rosângela Rennó's Archive

        Textos relacionados ao trabalho


        Texts linked to the work Eaux des Colonies Project

          [...] Antes do lockdown imposto pela COVID-19, Rosângela Rennó havia sido convidada para participar do “Artist Meets Archive”, um programade residência artística localizado em Colônia, Alemanha, como parte da Internationale Photoszene Köln. Estava programado para 2020, quando ela pesquisaria no Stiftung Rheinisch- -Westfälisches Wirtschaftsarchiv zu Köln, o Arquivo da Fundação Econômica do Reno-Vestefália, em Colônia (RWWA). Embora seus planos originais tenham mudado radicalmente em razão da pandemia, ela expôs um projeto par- cialmente baseado nos arquivos da RWWA no Museum für Angewandte Kunst (MAKK), o Museu de Artes Aplicadas, entre 21 de maio e 5 de julho de 2021. Confinada em casa no Brasil, Rennó pesquisou remotamente para retraçar as origens e histórias da água de Colônia, “inventada” na cidade alemã de mesmo nome. A artista montou Eaux des Colonies [Águas das colônias] (2020-2021), uma extensa linha do tempo, sem final definido, alocada em uma longa parede da galeria, expondo como a invenção do perfume foi contestada, apropriada e se tornou motivo tanto de guerras comerciais como de antagonismos nacionalistas ou regionais. A linha do tempo foi acompanhada por uma instalação feita de de jarros e garrafas de vidro parcialmente preenchidos com álcool, representando todos os países que foram colonizados em algum momento de suas histórias. Rennó declarou: Quando os documentos se tornam imagens e são acessíveis por meio da internet, experimentamos uma espécie de efeito de equalização da informação. Para o bem ou para o mal. Arquivos históricos, blogs de história, as histórias de perfumes em sites de vendas, tudo junto... parece uma atualização do conceito do “museu imaginário”, criado por André Malraux. Esse efeito é perverso e parece ter se consolidado de uma vez por todas.

          O que a artista identifica como a “equalização dos efeitos da informação” é, na verdade, um paradoxo definidor geralmente aplicado à fotografia. Nesse sentido, a observação de Thierry de Duve sobre o contexto sempre arbitrário da imagem pode ser útil para provar que o topos do arquivo não é o da web (embora opere dentro de seus limites):

          A fotografia costuma ser vista de duas maneiras: como um evento, mas nesse caso um evento estranho, uma gestalt congelada que comunica muito pouco, ou quase nada, a fluidez das coisas que ocorrem na vida real; ou é tida como imagem, como uma representação autônoma que pode, com efeito, ser emoldurada e pendurada na parede, mas que depois curiosamente deixa de se referir ao evento particular do qual foi retirada.

          Além da descontextualização das imagens em relação aos eventos a que se referem, a divulgação e circulação da imagem de um documento particular na web deixa de residir em um lugar determinado ou a ele pertencer. Seu conteúdo também se separa de seu significado.

          Como Rennó acertadamente observou, a falta de um local de armazenamento condena o documento à desintegração e ao esquecimento virtual. Jacques Derrida, que escreveu sobre o tema quando do surgimento da internet, afirmou que os arquivos só existem quando domiciliados, pois isso marca a passagem do privado para o público. Um corpo de conhecimentos fragmentados em imagens e discursos requer a estabilidade hermenêutica de um lugar onde possa ser abrigado e escondido sob uma autoridade que forneça uma identidade, uma unidade e, em última instância, uma classifica- ção aos documentos, para eventualmente transformá-los em arquivo.

          Apesar das dificuldades devidas às restrições de viagens e pesquisa impostas pela pandemia, a autor- refencialidade do projeto Eaux des colonies, bem como suas fronteiras que se estendem para além de uma genealogia, compromete-se a proporcionar algum fundamento à questão do arquivo em tempos de peste, quando o corpo e seus sentidos são atacados pela COVID-19.


          RANGEL, Gabriela. Três esquivas rumo ao arquivo de Rosângela Rennó (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 117-127.
          [...] Before the COVID-19 lockdown, Rosângela Rennó was invited to participate in “Artist meets Archive,” an art residency program located in Cologne, Germany, as part of the Internationale Photoszene Köln.
          It was scheduled to take place in 2020, when she would research in the Stiftung Rheinisch-Westfälisches Wirtschaftsarchiv zu Köln, the Rhenish- Westphalian Economic Archive Foundation in Cologne (RWWA). Although her original plans changed radically due to the pandemic, she exposed a project partially based
          on the RWWA files at the MAKK, the Museum for Applied Arts, between May 21 and July 5, 2021. Confined in Brazil, Rennó dug remotely to tracethe origins and histories of the Eau de Cologne, which was “invented” in the city of Cologne. The artist assembled Eaux des colonies [Waters from Colonies] (2020-2021), an extensive open-ended timeline, which has been displayed on a long wall at a gallery space, exposing how the invention of the perfume was disputed, appropriated, and became a token for both commercial wars and nationalist or regional antagonisms. The timeline was accompanied by an installation of glass jars and bottles partially full of alcohol, representing all the countries that were colonized at some point in their respective histories. Rennó stated: When documents become images and are accessible through the Internet, we experience a kind
          of equalization effect of the information. For better or for worse. Historical archives, history blogs, perfume history within sales sites, all together... it all seems like an updating of the concept of the “imaginary museum,” created by André Malraux. This effect is perverse and seems to have been consolidated forever.

          What the artist identified as “the equalization effect of information” is, in fact, a defining paradox that is generally applied to photography. In this sense, Thierry de Duve’s observation about the always arbitrary context of an image may be useful to prove that the archival topos is dislocated from the web (although operates within its confines): 

          Photography is generally taken in either of two ways: as an event, but then as an odd looking one, a frozen gestalt that conveys very little, if anything at all, of the fluency of things happening in real life; or it is taken as a picture, as an autonomous representation that can indeed be framed and hung, but which then curiously ceases to refer to the particular event from which it was drawn. 

          In addition to the decontextualization of images from the event that they refer to, an image of a particular document released and circulated on the web ceases to dwell in or belong to any place. Its content is also separated from its meaning. 

          As Rennó aptly pointed out, lacking a guarded space condemns the document to a virtual disintegration and oblivion. Jacques Derrida, who wrote about the topic upon the arrival of the internet, asserted that archives only take place in their domiciliation, as that marks the transition from private to public. A body of knowledge fragmented in images and discourses requires the hermeneutic stability of a place to be sheltered and concealed under an authority who would provide an identity, a unity, and, ultimately, a classification to the documents to transform them eventually into an archive.

          Despite the difficulties due to the pandemic’s travel and research restrictions, the Eaux des colonies project’s self-referentiality, as well as its over-extended boundaries beyond a genealogy, pledges to bring some grounding to the question of the archive in times of the plague, when the body and its senses are attacked by the COVID-19. 


          RANGEL, Gabriela. Three Sidesteps to Rosângela Rennó's Archive (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 117-127.


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          Rosângela Rennó: Good Apples Bad Apples


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          Texts linked to the work Good Apples | Bad Apples

            Na Galeria Cristina Guerra, Good Apples Bad Apples de Rosângela Rennó (Belo Horizonte, 1962) surge, nas paredes, como uma configuração reticular. Uma teia tricolor (vermelho, branco, negro) de sequências, de linhas, uma malha de movimentos. Ou, antes, um texto, a uma certa distância, indecifrável que se espalha sobre o espaço em ritmos distintos, quase opostos. De uma posição mais próxima, esse texto (ou desenho) dá lugar a uma constelação de imagens fotográficas entre si ligadas por um motivo repetido: a representação de Vladimir Lenin em monumentos e estatuária no espaço público. É a imagem do líder histórico e revolucionário, comunista e soviético que as imagens reproduzem, num mapeamento que cruza países, cidades e épocas diferentes. À medida que se observa, mais detalhadamente, o conjunto de composições, revela-se uma origem e um sentido. Grande parte das fotografias foi recolhida na Internet em sites e blogs antes da artista proceder ao seu emolduramento e manipulação. Rosângela Rennó viu, selecionou, compôs. Interveio sobre as imagens encontradas, ressignificando-as, libertando-as da circulação opaca e silenciosa do domínio digital. São estas atividades que permitem recortar de Good Apples Bad Apples questões como o arquivo — representado na Internet, essa grande síntese da alta e da baixa cultura — a história política das utopias, a relação que os indivíduos estabelecem com os monumentos políticos.

            Antes de se transformar numa pesquisa, o trabalho teve o seu princípio num episódio mundano: um amigo ofereceu à artista um conjunto de postais turísticos da era soviética. Realizados em várias cidades da ex-URSS, todos se encontravam visualmente dominados pela presença semidivina, incontornável, dinâmica de Vladimir Lenin. Feita tal descoberta, seguiu-se outra, mas agora no interior do vasto e imaterial espaço da internet: a de que a representação escultórica de Lenin ainda existe, precisamente aí. Ou, reformule-se, ainda circula na rede como ícone, personagem, fantasma, símbolo pixelizado. Foi dessa premissa e realidade que a artista trabalhou, tornando material, concreto (emoldurando, imprimindo, comentando pela escrita) o que se tornara da ordem do imaterial: a própria imagem fotográfica, neste caso de uma figura história representada pela escultura. Interrompendo a sua circulação, Rosângela Rennó resgatou-a da produção e do consumo que está implícito no seu trânsito veloz e invisível, para que a possamos ver. E vemo-la no que pode ter de pungente, singular, desarmante: enquanto instante (se não retrato) das relações que as pessoas estabelecem com a estatuária na sua acepção mais política e cultural.

            Organizadas numa trama, as fotografias aparecem em colunas organizadas alfabeticamente. A cada letra corresponde uma cidade e em cada coluna é possível ver estátuas que existem ou existiram nas cidades identificadas. A menção a diferentes tempos verbais é importante. Algumas estátuas já não existem — vemo-las a serem derrubadas e destruídas — outras ainda permanecem no seus plintos e praças, como tivessem resistido, indiferentes, à violência dos sismos políticos. As primeiras são enquadradas por molduras negras e encontram-se “classificadas” pelo carimbo de uma maçã preta, as segundas são delimitadas por molduras vermelhas e têm um carimbo da mesma cor. Com humor e até alguma candura, Rosângela Rennó alude ao facto de a história, na sua transigência, decidir sobre o destino de ideologias e sistemas políticos e sobre a permanência simbólica e a memórias das suas principais figuras. Nos países ex-comunistas (Ucrânia, Polónia, Roménia, etc.), esse juízo, que corresponde também à posição de maioria, por mais contingente que seja ou tenha sido, foi severo e iconoclasta, enquanto noutras latitudes (Vietname, Cuba, Rússia) tomou a forma de indiferente benevolência ou de uma reservada consideração.

            Numa mesma coluna, é possível encontrar momentos de iconofilia e de iconoclasta, cerimónias oficiais e momentos de destruição e purga. Entre uns e outro, a artista introduz com frequência outro tipo de molduras. Umas, brancas, documentam o modo como as pessoas se apropriaram das estátuas, pintando-as, vestindo-as, deslocando-as. Desaparecida a legitimidade e a autoridade que o regime impunha, Lenin passou a ser apenas mais uma estátua ou um busto, uma figura humana escupida em bronze ou ferro, vulnerável, desprotegida, movível, sujeita a toda o tipo de ações. Em muitas dessas fotografias, o que se testemunha são situações em que a estátua não é mais do que um motivo carnavalesco, cuja ressonância política e simbólica, embora sem desaparecer (e com efeito, por vezes regressa) se vai tornando difusa e distante. Noutras, pelo contrário, as imagens documentam a violências dos conflitos, os efeitos das mudanças do regime no culto passado das figuras.

            Finalmente, restam o outro tipo de molduras, aquelas sem imagem, vazia, como se deixando interrogações sem resposta, imagens não encontradas, hiatos não preenchidos na história de certa escultura ou de monumento. Esta alusão à dificuldade de saber e documentar afirma os limites da pesquisa e por isso a sua natureza artística e em certo sentido, também, iconoclasta. Rosângela Rennó comenta com humor as poses das esculturas, a fisionomia impressa nos bustos, os Lenine pintados ou transformados.

            A irreverência das palavras, contudo, nunca se confunde com caricatura ou sarcasmo, não sugere qualquer julgamento político. A artista aponta e informa, mencionando a origem das imagens, as suas fontes. A esmagadora maioria das fotografias foi realizada na Internet, circulam na internet, mas na galeria aparecem para ser seguidas, vistas, lidas. O exercício pode ser cansativo, até exasperante. Há a tentação de percorrer rapidamente as imagens, quando o que o trabalho nos pede é que nos detenhamos, que observamos com atenção as cenas, os monumentos, os lugares onde estiveram ou ainda estão. Desse trabalho de observação, emergem detalhes surpreendentes: um busto no fundo do Mar Negro, uma escultura no jardim em Seattle, um plinto vazio, um monumento de escala gigantesca e pose hierática, uma escultura que existiu em nome da arte (como a criada para o filme do cineasta, O Olhar de Ulisses de Theodoros Angelopoulos).

            Ao salvar da Internet, ao tornar objetuais, como superfícies hápticas, as fotografias, a artista permite ao espectador ver gestos e situações que são particulares da esfera política. Tal fazer pode ser interpretado à luz do atual contexto político e social no Brasil na sequência da eleição da Jair Bolsonaro. É também nesse domínio onde a artista intervém, mas sem didatismo ou qualquer atitude panfletária. A sua provocação é a de uma inteligência que recusa qualquer sacralização das figuras políticas, mas, pelo contrário, lembra a sua inevitável fugacidade. O lugar de Rosângela Rennó não é o da idolatria ou da iconofilia, mas o do trabalho com a fotografia. Esta prática é nuclear na exposição em termos visuais, conceituais e, até existenciais. Note-se o outro conjunto, onde vemos representadas imagens que aludem à câmera fotográfica. Parecem inusitadas na galeria, mas não são. Enfatizam precisamente aquilo que imagens de Lenin, ao serem retiradas da Internet, também nos parecem dizer: que a imanência indexical da fotografia não aparece apenas para nos assombrar, também instiga a compreensão do que acontece. E como imanência também comporta uma materialidade.


            MARMELEIRA, José. Rosângela Rennó: Good Apples Bad Apples. In Contemporanea #3, 2019, disponível em: https://contemporanea.pt/edicoes/06-07-2019/rosangela-renno-good-apples-bad-apples


            Arquivo e entropia


            Textos relacionados ao trabalho


            Texts linked to the work Good Apples | Bad Apples

              As questões em torno da relação entre fotografia e percepção da história têm estado no cerne das motivações artísticas e reflexivas de Rosângela Rennó. O interesse pelos processos de memorização, com destaque para a noção de arquivo (como sistema de acumulação e regulação discursiva), e correlativamente sobre as possíveis articulações conceptuais, morais e estéticas entre história, arte e política, permitem situar o seu trabalho no contexto de tendências artísticas que reclamam uma atitude analítica e crítica perante a situação contemporânea, apelando à memória dentro da atualidade e à compreensão da atualidade dentro da história.

              Esta exposição é coerente com esse conjunto de preocupações, agora escrutinadas à luz de fenómenos recentes, designadamente, as mudanças tecnológicas, mediáticas e socioculturais que parecem estar a induzir alterações significativas no modo como nos habituamos a perceber o devir histórico através das imagens fotográficas. Uma das primeiras razões para este momento reflexivo e autocrítico advém do fato da fotografia ter passado, desde o final do século XX, por um inelutável processo de superação tecnológica. Desde logo, porque todo um sistema de técnicas, métodos e equipamentos de produção fotográfica foi sendo substituído por uma outra superestrutura de modos e dispositivos (de base electrónica, ou digital, como se vulgarizou dizer) que mudaram e ampliaram de forma avassaladora as possibilidades de captação, edição e circulação da imagem.

              Das obras presentes na exposição, comecemos por A imagem persistente, uma composição de fotografias que configura um olhar sobre objetos, brinquedos, gadgets e imagens que remetem para uma cultura técnica e material já notoriamente obsolescente. A artista convoca uma memorabília que nos relembra o anterior apego popular pela parafernália da fotografia analógica, sintomas que nos dirigem para uma arqueologia da fotografia moderna. Cabe-nos perguntar: o que ainda resta deste imaginário e dos regimes visuais que a fotografia foi sedimentando ao longo dos últimos dois séculos? Como será possível repensar e atualizar a prática do arquivo neste novo sistema digital e virtual, onde tudo tende a ser sujeito à indexação algorítmica e alocado algures numa nuvem?

              É importante salientar que as consequências desta (r)evolução digital não se confinam às alterações desencadeadas por uma nova tipologia de produção fotográfica. Na verdade, os seus efeitos são ainda mais radicais se pensarmos no impacto que têm tido num plano societal mais vasto, constituindo-se como uma parte essencial de um novo paradigma comunicacional caracterizado pela profusão de fluxos de trocas e de partilhas de dados e de signos visuais. Como nunca antes, vivemos cercados de imagens, ainda que a maior parte delas nos sejam invisíveis, simplesmente porque a atenção que lhes dirigimos ser cada vez mais rara e fugaz. Daí a dúvida de saber o que vale a imagem no singular quando ela parece ser um elemento mínimo condenado à irrelevância no seio de uma rede superabundante e imparável de mercadoria imaginária.

              Hoje, fotografamos com câmeras fotográficas (que, sintomaticamente, permitem captar e editar fotografias e filmes), mas com maior frequência com smartphones. Tudo (imagens, palavras, objetos, lugares...) parece destinado à sua transcodificação cibernética. É um sistema que se organiza no primado da ubiquidade, facilidade processual, conectividade, extrema fluidez e circulação. O que dizer, quando dados recentes, referem que todos os dias são carregadas 1,8 biliões de novas imagens na internet, o que perfaz um total anual de 657 biliões, um cenário que não estava provavelmente nas melhores (ou piores) cogitações de Jean Baudrillard quando no início dos anos de 1980 elaborava o seu seminal livro, Simulacros e Simulação.

              A maior peça da exposição é Good Apples | Bad Apples [proposal for a document-monument], uma instalação de aproximadamente 700 imagens, retiradas maioritariamente da internet. As imagens representam os monumentos escultóricos dedicados a Lenin, em vários países, que foram destruídos após a dissolução do bloco soviético, bem como os que persistem nos locais públicos, embora muitos deles tenham sido reposicionados em outros locais menos relevantes da paisagem urbana. Também se incluem algumas fotografias históricas que mostram as esculturas nos seus locais originais.

              Cada umas das imagens foi intervencionada com escritos à mão, proporcionando informações complementares a cada imagem. A autoria das fotografias e o local onde foram publicadas aparecem escritos sobre as próprias molduras. Além disso, a escolha da cor de cada moldura obedece a uma codificação que tem em conta o estado físico do monumento: as molduras vermelhas contêm as fotografias que mostram a totalidade do monumento no seu local de assentamento original; as molduras pretas abrangem imagens com manifestações de iconoclastia; as brancas apresentam os locais para onde os monumentos foram deslocados, ou alguma outra situação de releitura ou ressignificação desses monumentos. As fotografias são organizadas pelo nome da cidade, numa ordem alfabética (de A a Z ou de Z a A, conforme o movimento do visitante), espalhando-se horizontalmente no espaço expositivo. Por fim, é de notar também a existência de carimbos sobre as imagens de maçãs de cor vermelha, preta e branca. Marcações ambíguas que implicam o espectador nesta aferição especulativa sobre como entender a figura de Lenin, entre o mito e a infâmia – ou como distinguia a popular metáfora, entre ser uma “boa” ou uma “má” maçã.

              Do monumento ao anti-monumento, a figura de Lenin é sujeita ao confronto entre idolatria e iconoclastia. A escolha desta figura está longe de ser casual. É inevitável discernir nesta instalação uma reação à crise política, institucional e social que afeta o Brasil, nomeadamente, no decurso do processo histórico que conduziu ao impeachment de Dilma Rousseff e à recente eleição de Jair Bolsonaro. Ao convocar a figura de Lenin, a artista parece suscitar a questão: o que aconteceu à esquerda? O que resta, o que prevalece do seu legado? Uma escultura com duas sandálias Havaianas do pé direito, com a data 2019, indicia uma resposta vazia, pessimista, desolada. À entropia da imagem a artista associa a entropia do discurso político. Com efeito, vivemos em condições mediáticas, tecnológicas e culturais que exacerbaram os fenómenos de erosão do sentido das coisas, das imagens, das palavras, das ideologias. É neste contexto que a artista procura reafirmar uma das mais prementes funções do artista visual contemporâneo: coligir, (re)posicionar, (re)montar as imagens, reformular o seu sentido e o seu estatuto, assumindo-se cada vez mais como figura de compromisso entre o criador, o arquivista, o editor, o historiador e o crítico do fenómeno das imagens, alguém que entende que o seu trabalho está efetivamente no meio, entre a prática e a teoria, entre arte e a realidade social, entre as genealogias da arte e a atual cultura mediática e cibernética.


              MAH, Sérgio. Arquivo e entropia. In Cristina Guerra (2019). Disponível em: https://www.cristinaguerra.com/exhibition/rosangela-renno---good-apples-bad-apples/


              Rosângela Rennó


              Textos relacionados ao trabalho


              Texts linked to the work Good Apples | Bad Apples

                […] A reprodução de informações visuais de circulação massiva pode revelar significados que se enraizaram no imaginário coletivo. Exibida acima da entrada, na fachada vermelha do edifício, está a silhueta negra de um homem em pose enfática. A imagem circulou amplamente por todo o mundo durante mais de cem anos, tanto em homenagem ao homem como nas suas críticas; muitos visitantes irão reconhecê-lo como Lenin. Dentro da galeria, ao nível do solo, está Good Apples/Bad Apples (2019), composto por mais de 800 fotografias emolduradas de monumentos erguidos ao líder soviético. Rennó descreve estas fotografias, resultado de um projeto de pesquisa de dois anos, como “observações baseadas no ato de coletar fotografias de estátuas de Lênin”. Mostram o que aconteceu aos monumentos ao longo dos anos, durante e após a queda da União Soviética. Cada imagem inclui notas manuscritas de Rennó e o desenho de uma maçã que lembra o logotipo da gigante tecnológica americana, um emblema do capitalismo. […]


                WERNECK, Sylvia. Rosângela Rennó (excerto de texto). In ArtNexus #116, 2021, pp. 100-101.
                […] The reproduction of massively-circulating visual information can tease out meanings that have taken root in the collective imaginary. Exhibited above the entrance on the building’s red façade is the black silhouette of a man in an emphatic pose. The image has circulated widely all around the world for more than one hundred years, both in the man’s honor and in his criticism; many visitors will recognize him as Lenin. Inside the gallery, at ground level, is Good Apples/Bad Apples (2019), comprised of more than 800 framed photographs of monuments erected to the Soviet leader. Rennó describes these photographs, the result of a two-year research project, as “observations based on the act of collecting photographs of statues of Lenin.” They show what happened to the monuments over the years, during and after the fall of the Soviet Union. Each image includes Rennó’s manuscript notes and the drawing of an apple resembling the American tech giant’s logo, an emblem of capitalism. […]


                WERNECK, Sylvia. Rosângela Rennó (text excerpt). In ArtNexus #116, 2021, pp. 100-101.


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                Rosângela Rennó


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                Texts linked to the work Exercices on 3D (transparency)

                  […] A superexposição midiática de certas imagens é trabalhada na obra-provocação Exercícios de 3D (transparência), (2019). Pequenos textos descrevendo fotografias famosas estão pregados na parede e, sobre uma prateleira, fica à disposição um aparato antigo para visualizar imagens em 3D que, no entanto, mostra um trecho descritivo desconfortável de ler pela movimentação das letras. O material faz parte do Arquivo Universal, que a artista começou em 1992. São descrições jornalísticas de fotografias disseminadas pela imprensa internacional de maneira tão intensa que a leitura permite à memória (na maioria dos exemplos) associar a descrição à imagem correspondente, incorporada ao repertório visual da maioria das pessoas com acesso a jornais e revistas de grande circulação. […]


                  WERNECK, Sylvia. Rosângela Rennó (excerto de texto). In ArtNexus #116, 2021, pp. 100-101.
                  […] Rennó’s artwork-provocation 3D Exercises (Transparency), (2019) deals with the overexposure of specific images in the mass media. Short texts describing famous photographs are nailed to the wall. At the same time, an old device for visualizing 3D images, accessible on a shelf, presents a descriptive passage with letters that shift, making reading uncomfortable. The material is part of the Universal Archive that Rennó began in 1992. It collects descriptions of photographs so intensely circulated in the international press that reading the texts is (in most instances) is enough for our memory to bring forth the corresponding image. Such images are incorporated into the visual repertoire of most people with access to general circulation newspapers and magazines. […]


                  WERNECK, Sylvia. Rosângela Rennó (text excerpt). In ArtNexus #116, 2021, pp. 100-101.


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                  Rosângela Rennó


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                  Texts linked to the work Aucune Bête au Monde

                    [...] Em Aucune Bête au Monde (No Beast in the World, 2019), o procedimento de Rennó é análogo à sua intervenção na fachada. O título francês da obra vem de um livro de 1959 sobre a Independência da Argélia, travada entre 1954 e 1962. O livro inclui fotografias e histórias da guerra e foi de autoria de dois oficiais do exército francês. Os rostos dos autores foram mascarados com tinta cinza e todas as palavras foram cortadas. Sem a individualização proporcionada pelos rostos, o fato de se tratar de uma ação armada permanece uma evidência. Se se trata de uma guerra, de uma missão humanitária, de um resgate ou de um exercício de treino, já não pode ser determinado, nem pode ser estabelecido em que parte do mundo ocorreu. No entanto, algumas constatações são inevitáveis: as armas são reconhecíveis, mesmo em linhas gerais, pois fazem parte da experiência quotidiana de qualquer pessoa que viva numa sociedade complexa, e o seu aparecimento implica imediatamente a proximidade do perigo. O agressor e a vítima não são identificados e não há justificativa ou explicação para a hostilidade entre eles. O confronto, por outro lado, é universalmente compreendido. [...]


                    WERNECK, Sylvia. Rosângela Rennó (excerto de texto). In ArtNexus #116, 2021, pp. 100-101.
                    [...] On Aucune Bête au Monde (No Beast in the World, 2019), Rennó’s procedure is analogous to her intervention on the façade. The work’s French title comes from a 1959 book on the Algerian Independence was, fought between 1954 and 1962. The book includes photographs and stories from the war and was authored by two officers in the French army. The faces of the authors have been masked under gray ink, and all the words have been cut out. Without the individualization provided by the faces, the fact of this being an armed action remains evidence. Whether it is a war, a humanitarian mission, a rescue, or a training exercise can no longer be determined, nor can it be established where in the world it took place. Yet, some realizations are inevitable: the weapons are recognizable, even in outline, as they are part of everyday experience for any person living in a complex society, and their appearance immediately implies the proximity of danger. The aggressor and the victim are not identified, and there is no justification or explanation for the hostility between them. Confrontation, on the other hand, is universally understood. [...]


                    WERNECK, Sylvia. Rosângela Rennó (text excerpt). In ArtNexus #116, 2021, pp. 100-101.


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                    Pequena ecologia da imagem: um glossário em construção 

                    Little Ecology of the image: a glossary under construction

                    Textos relacionados ao trabalho


                    Texts linked to the work Hercule & Hippolyte

                      […] Quem jaz nessas tumbas? Ninguém, pois os mortos são ninguéns, eles já não existem e, portanto, não jazem em lugar nenhum. O que guardam esses túmulos são despojos, os despojos de quem, então? De Hippolyte Bayard (1801-1887) e de Hércules Florence (1804-1879), dois pioneiros da foto- grafia pouco reconhecidos na sua época. O apoio de François Arago (1786-1853), secretário da Academia de Ciências da França, fez que Louis Daguerre (1787-1851) patenteasse seu invento, ficando outros pesquisa- dores sem crédito. Bayard divulga, pouco tempo depois, uma espécie de “protesto-fotográfico” - um autor- retrato em que Bayard fingia ter cometido suicídio. Com o torso nu, olhos fechados, as mãos e o rosto escurecidos, o fotógrafo está apoiado numa parede. No verso, escreve: 

                      O cadáver que aqui vê é o de M. Bayard, inventor do processo que acabou de vos ser mostrado. Até quanto sei, este incansável experimentador andou ocupado por cerca de três anos com a sua descoberta. O governo, que por um lado tem sido muito generoso com o Senhor Daguerre, disse que nada poderia ser feito em prol do Senhor Bayard; assim o pobre desgraçado afogou-se. Ah os caprichos da vida humana...! 

                      Em Campinas (SP), Hércules Florence, cientista francês radicado no país, cunhou o termo fotografia e inventou a impressão fotográfica. Suas descobertas foram resgatadas do esquecimento quase um século depois de sua morte. 

                      Agora, os dois jazem lado a lado, nesse trabalho (Hercule & Hippolyte #2, 2019), nestas duas caixas chinesas que guardam outras caixas, as caixas-fotografias que exibem as caixas-túmulos onde restam os resíduos humanos dos corpos que foram Hippolyte e Hércules... Dois homens postergados. Mas também duas câmeras fotográficas, caixas fechadas, que contêm... […]


                      MELENDI, Maria Angélica. Pequena ecologia da imagem: um glossário em construção (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 129-162.
                      […] Who lies in these graves? Nobody, because the dead are nobodies, they no longer exist and therefore lie nowhere. These graves hold the remains—but of whom? Of Hippolyte Bayard (1801-1887) and Hercule Florence (1804-1879), two pioneers of photography who gained little rec- ognition in their time. Louis Daguerre (1787-1851) patented his invention with the support of François Arago (1786-1853), secretary of the French Academy of Sciences, and no other researchers got any credit. Soon afterwards, Bayard released a kind of “protest-photograph”—a self-portrait in which he pretended to have committed suicide. With a naked torso, closed eyes, blackened hands and face, the photographer is leaning on a wall. On the back, he writes: 

                      The corpse you see here is that of Mr. Bayard, inventor of the process that has just been shown to you. As far as I know, this tireless experimenter busied himself for about three years with his discovery. The government, which on the one hand has been very generous to Mr. Daguerre, said that nothing could be done for Mr. Bayard; so the poor wretch drowned himself. Ah! the vagaries of human life...! 

                      In Campinas (SP), Hercule Florence, a French scientist living in Brazil, coined the term photography and invented photographic printing. His discoveries were rescued from oblivion almost a century after his death. 

                      Now both lie side by side in this work (Hercule & Hippolyte #2, 2019), in two Chinese boxes that hold other boxes, the photo-boxes that display the tomb-boxes containing the human remains of the bodies that were Hippolyte and Hercule... Two men who were left behind. But also two cameras, two closed boxes, which contain...  […]


                      MELENDI, Maria Angélica. Little Ecology of the image: a glossary under construction (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 129-162.


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