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Seu espelho, um caleidoscópio

Her mirror, a kaleidoscope

Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Eaux des Colonies Project

    [...] De ritual de devoração do inimigo à metáfora de incorporação de traços de alteridade, o canibalismo subjaz como uma maneira de disputar narrativas e enfrentar heranças do pensamento colonial. “Só me interessa o que não é meu”, declarou o Manifesto Antropófago de 1924, abrindo um flanco de práticas no contexto da arte moderna que se desdobram ainda na contemporaneidade. Um dos projetos mais recentes de Rosângela Rennó vai nessa direção e se presta a canibalizar a própria ideia de colônia, dando visibilidade à origem do termo e a como seus usos o impregnam de conotações geo-políticas. Eaux des colonies [Águas das colônias] (2021) divide-se em duas partes. Les origines [As origens], a primeira, consiste em um dossiê em construção sobre a história da água de Colônia, que passou de elixir mágico a sinônimo para qualquer tipo de perfume. 

    Essa história coincide com o crescimento das rotas mercantis na Europa e, por isso, carrega o espírito expansionista que está no cerne do colonialismo. Inventada na Europa no século XVII, na Itália, sob a designação de Aqua Mirabilis, a fórmula foi levada para a cidade de Colônia, Alemanha, importante entreposto comercial na época. Ali, também passou a ser produzida e foi rebatizada por soldados franceses como Eau de Cologne. A água de Colônia tornou-se objeto de desejo e começou a ser falsificada em diversos lugares da Europa e, logo, do mundo. Para além de uma discussão sobre autorias, as cópias correspondem à busca por pertencer a um estrato social por meio da reprodução de hábitos de consumo. Ao mesmo tempo, elas também demonstram a importância da lógica pirata, que viabiliza o acesso a esses lugares de desejo a partir da quebra de patentes e da reinvenção de centralidades. 

    A obra reúne fatos importantes dessa história em uma extensa linha do tempo, na qual se pode perceber a mescla de fontes físicas e virtuais, notas editoriais manuscritas em post-it e carimbos de indexação dos conteúdos, além de lacunas inerentes a uma pesquisa em andamento. O gesto de canibalização da artista se deu na medida em que ela promoveu um desvio de narrativa. No decorrer da leitura, logo se percebe que contar a história do produto virou um pretexto para falar sobre modelos de colonização. 

    O dossiê culmina na segunda parte do projeto, En construction [Em construção], que deflagra um processo de identificação de águas das colônias, não uma, mas muitas, diversas, plurais, fruto de outras agências e protagonismos. Sobre uma base retangular branca, marcada com um corte ao meio que remete à Linha do Equador, são posicionadas 207 garrafas de vidro, cada uma correspondente a um país que já foi colonizado. Os tamanhos dos frascos são proporcionais à extensão dos territórios e
    sua distribuição na base remonta à sua localização no mapa mundi. Para fazer uma água de colônia, costuma-se usar cerca de 94% de base alcoólica e a essência ocupa o percentual restante. A instalação apresenta as garrafas preenchidas apenas com o álcool. Em texto, a artista informa sobre essa falta crucial no conteúdo e, ainda assim, convida a admirar a incompletude como um estado de espera. Rennó pretende realizar uma enquete com pessoas naturais das ex-colônias em questão e pedir-lhes que respondam à pergunta: “qual aroma melhor define hoje o seu país?”. 

    Essas escutas reservam a definição de traços ou essências de identidade aos sujeitos e a suas comunidades, nunca a terceiros. Nelas e em outras dinâmicas afins estariam os caminhos para suspender representações políticas que mantêm intactas as cartografias do poder. Ou seja, nelas estariam as chances de, pelo contrário, defender o estabelecimento de políticas representativas que devolvam acento e voz a quem a história colonial silenciou. [...]


    MAIA. Ana Maria. Seu espelho, um caleidoscópio (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9-35.
    [...] From a ritual of devouring the enemy to a metaphor for incorporating features of otherness, cannibalism has been an ongoing underlying presence that disputes official narratives and confronts the legacies of colonial thought in Brazil. “I am only interested in what is not mine,” declared the Manifesto Antropófago [Anthropofagic Manifesto] of 1924, opening up a stream of modern art practices which still runs nowadays. One of Rosângela Rennó’s most recent projects goes in this direction and lends itself to cannibalizing the very idea of a colony, showing where the term comes from and how its uses impregnate it with geopolitical connotations. Eaux des colonies [Waters from the Colonies] (2021) is divided into two parts. The first one, Les origines [The Origins], comprises an ongoing report on the history of Eau de Cologne itself, which was originally a magic elixir and has now become almost a synonym for any kind of perfume. 

    This history coincides with the growth of trade routes in Europe and therefore carries the expansionist spirit that is at the heart of colonialism. Invented in Europe in the 17th century as Aqua Mirabilis, the formula was taken from Italy to the city of Cologne, an important trading post at the time in Germany. It began to be produced there and was renamed Eau de Cologne by French soldiers. This “Cologne Water” became an object of desire and began to be counterfeited in several places in Europe and soon around the world. The copies go beyond a discussion on authorship and correspond to the quest for belonging to a certain social stratum through the reproduction of consumption habits. At the same time, they also demonstrate the importance of the logic of piracy, which enables access to these places of desire by breaking patents and reinventing centrality. 

    The work gathers important facts of this history in an extensive timeline, in which one can perceive a mix of physical and virtual sources, handwritten editorial notes on post-it note pads and stamps for indexing the contents, besides the inevitable gaps that characterize any ongoing research. The artist’s gestures can be considered as a form of cannibalism to the extent that she has promoted a detour of the narrative. In the course of reading, one soon realizes that telling the story of the product becomes a pretext to talk about colonization models. 

    The report culminates in the second part of the project, En construction [Under Construction], which sets off to identify the waters of the colonies— not one, but many, diverse, plural, the product of other agencies and leading roles. On a white rectangular base, with a cut in the middle to suggest the Equator, Rennó positions 207 glass bottles. Each one corresponds to a country that was once colonized. The bottle sizes are proportional to the countries’ size, and their distribution goes back to their location on the world map. Eau de Cologne is usually about 94% alcohol, while the rest are essential oils. In the installation, the bottles have alcohol only, and Rennó reveals this crucial absence in her text, while at the same time inviting one to admire this incompleteness as if it represented a waiting status. She states her intention of conducting a poll with people from the former colonies and asking them to answer the question: “Which aroma best defines your country today?” 

    In these hearings, the definition of identity traits or “essences” belong to the subjects and their communities, never to third parties. In these and other similar dynamics lies the way to discontinuing all political representations that safeguard the cartographies of power. On the contrary, it would be possible to defend representative policies that give back a voice and a local accent to those who have been silenced by colonial history. [...]


    MAIA. Ana Maria. Her mirror, a kaleidoscope (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9- 35.


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    Três esquivas rumo ao arquivo de Rosângela Rennó


    Three Sidesteps to Rosângela Rennó's Archive

    Textos relacionados ao trabalho


    Texts linked to the work Eaux des Colonies Project

      [...] Antes do lockdown imposto pela COVID-19, Rosângela Rennó havia sido convidada para participar do “Artist Meets Archive”, um programade residência artística localizado em Colônia, Alemanha, como parte da Internationale Photoszene Köln. Estava programado para 2020, quando ela pesquisaria no Stiftung Rheinisch- -Westfälisches Wirtschaftsarchiv zu Köln, o Arquivo da Fundação Econômica do Reno-Vestefália, em Colônia (RWWA). Embora seus planos originais tenham mudado radicalmente em razão da pandemia, ela expôs um projeto par- cialmente baseado nos arquivos da RWWA no Museum für Angewandte Kunst (MAKK), o Museu de Artes Aplicadas, entre 21 de maio e 5 de julho de 2021. Confinada em casa no Brasil, Rennó pesquisou remotamente para retraçar as origens e histórias da água de Colônia, “inventada” na cidade alemã de mesmo nome. A artista montou Eaux des Colonies [Águas das colônias] (2020-2021), uma extensa linha do tempo, sem final definido, alocada em uma longa parede da galeria, expondo como a invenção do perfume foi contestada, apropriada e se tornou motivo tanto de guerras comerciais como de antagonismos nacionalistas ou regionais. A linha do tempo foi acompanhada por uma instalação feita de de jarros e garrafas de vidro parcialmente preenchidos com álcool, representando todos os países que foram colonizados em algum momento de suas histórias. Rennó declarou: Quando os documentos se tornam imagens e são acessíveis por meio da internet, experimentamos uma espécie de efeito de equalização da informação. Para o bem ou para o mal. Arquivos históricos, blogs de história, as histórias de perfumes em sites de vendas, tudo junto... parece uma atualização do conceito do “museu imaginário”, criado por André Malraux. Esse efeito é perverso e parece ter se consolidado de uma vez por todas.

      O que a artista identifica como a “equalização dos efeitos da informação” é, na verdade, um paradoxo definidor geralmente aplicado à fotografia. Nesse sentido, a observação de Thierry de Duve sobre o contexto sempre arbitrário da imagem pode ser útil para provar que o topos do arquivo não é o da web (embora opere dentro de seus limites):

      A fotografia costuma ser vista de duas maneiras: como um evento, mas nesse caso um evento estranho, uma gestalt congelada que comunica muito pouco, ou quase nada, a fluidez das coisas que ocorrem na vida real; ou é tida como imagem, como uma representação autônoma que pode, com efeito, ser emoldurada e pendurada na parede, mas que depois curiosamente deixa de se referir ao evento particular do qual foi retirada.

      Além da descontextualização das imagens em relação aos eventos a que se referem, a divulgação e circulação da imagem de um documento particular na web deixa de residir em um lugar determinado ou a ele pertencer. Seu conteúdo também se separa de seu significado.

      Como Rennó acertadamente observou, a falta de um local de armazenamento condena o documento à desintegração e ao esquecimento virtual. Jacques Derrida, que escreveu sobre o tema quando do surgimento da internet, afirmou que os arquivos só existem quando domiciliados, pois isso marca a passagem do privado para o público. Um corpo de conhecimentos fragmentados em imagens e discursos requer a estabilidade hermenêutica de um lugar onde possa ser abrigado e escondido sob uma autoridade que forneça uma identidade, uma unidade e, em última instância, uma classifica- ção aos documentos, para eventualmente transformá-los em arquivo.

      Apesar das dificuldades devidas às restrições de viagens e pesquisa impostas pela pandemia, a autor- refencialidade do projeto Eaux des colonies, bem como suas fronteiras que se estendem para além de uma genealogia, compromete-se a proporcionar algum fundamento à questão do arquivo em tempos de peste, quando o corpo e seus sentidos são atacados pela COVID-19.


      RANGEL. Gabriela. Três esquivas rumo ao arquivo de Rosângela Rennó (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 117-127.
      [...] Before the COVID-19 lockdown, Rosângela Rennó was invited to participate in “Artist meets Archive,” an art residency program located in Cologne, Germany, as part of the Internationale Photoszene Köln.
      It was scheduled to take place in 2020, when she would research in the Stiftung Rheinisch-Westfälisches Wirtschaftsarchiv zu Köln, the Rhenish- Westphalian Economic Archive Foundation in Cologne (RWWA). Although her original plans changed radically due to the pandemic, she exposed a project partially based
      on the RWWA files at the MAKK, the Museum for Applied Arts, between May 21 and July 5, 2021. Confined in Brazil, Rennó dug remotely to tracethe origins and histories of the Eau de Cologne, which was “invented” in the city of Cologne. The artist assembled Eaux des colonies [Waters from Colonies] (2020-2021), an extensive open-ended timeline, which has been displayed on a long wall at a gallery space, exposing how the invention of the perfume was disputed, appropriated, and became a token for both commercial wars and nationalist or regional antagonisms. The timeline was accompanied by an installation of glass jars and bottles partially full of alcohol, representing all the countries that were colonized at some point in their respective histories. Rennó stated: When documents become images and are accessible through the Internet, we experience a kind
      of equalization effect of the information. For better or for worse. Historical archives, history blogs, perfume history within sales sites, all together... it all seems like an updating of the concept of the “imaginary museum,” created by André Malraux. This effect is perverse and seems to have been consolidated forever.

      What the artist identified as “the equalization effect of information” is, in fact, a defining paradox that is generally applied to photography. In this sense, Thierry de Duve’s observation about the always arbitrary context of an image may be useful to prove that the archival topos is dislocated from the web (although operates within its confines): 

      Photography is generally taken in either of two ways: as an event, but then as an odd looking one, a frozen gestalt that conveys very little, if anything at all, of the fluency of things happening in real life; or it is taken as a picture, as an autonomous representation that can indeed be framed and hung, but which then curiously ceases to refer to the particular event from which it was drawn. 

      In addition to the decontextualization of images from the event that they refer to, an image of a particular document released and circulated on the web ceases to dwell in or belong to any place. Its content is also separated from its meaning. 

      As Rennó aptly pointed out, lacking a guarded space condemns the document to a virtual disintegration and oblivion. Jacques Derrida, who wrote about the topic upon the arrival of the internet, asserted that archives only take place in their domiciliation, as that marks the transition from private to public. A body of knowledge fragmented in images and discourses requires the hermeneutic stability of a place to be sheltered and concealed under an authority who would provide an identity, a unity, and, ultimately, a classification  to the documents to transform them eventually into an archive.

      Despite the difficulties due to the pandemic’s travel and research restrictions, the Eaux des colonies project’s self-referentiality, as well as its over-extended boundaries beyond a genealogy, pledges to bring some grounding to the question of the archive in times of the plague, when the body and its senses are attacked by the COVID-19. 


      RANGEL. Gabriela. Three Sidesteps to Rosângela Rennó's Archive (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 117-127.



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