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cartologia, 2000
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círculos viciosos (472 casamentos cubanos), 1995
imemorial, 1994
atentado ao poder, 1992
a bela e a fera, 1992
duas lições de realismo fantástico, 1991/2015
as diferentes idades da mulher, 1991
obituários, 1991
paz armada, 1990/2021
anti-cinema, 1989
Para reler o vermelho e o negro
Rereading the red and the blackTexts linked to the work red series (military men)
Todo crepúsculo que se preza, aquele que anuncia o dia, ou a noite, tem vermelho. É o crepúsculo da imagem e a noite da palavra que Rosângela nos entrega. Ela quer um olho pele, tátil, capaz de tocar as palavras e as imagens. São palavras cegas e imagens em surdina que ela nos oferece. Palavras não precisam ser vistas; precisam ser lidas, e isto Rosângela quer. E para isso estão submetidas são submetidas à inversão: estão suntuosas, negras, ocultas, sobre as almofadas de veludo preto. Textos como pequenas jóias. Adornos do sentido que se escondem na escuridão em relevo e despertam nossa curiosidade. / A imagem que ela diz guardar de seu algoz é a de um homem que confundia seus interlocutores quando assumia o comportamento frio, decidido e muito objetivo nos interrogatórios. Vinte anos depois, E.M., 41 anos, ex-militante do MR-8, ficou trêmula ao ver a fotografia recente do delegado D.P. e não teve dúvida em afirmar: “É ele mesmo! Essa fisionomia ficou muito forte para mim”. / O drama e a tragédia estão rebaixados e contidos. Existem simplesmente, são partes do mundo. Vê-se logo, são políticos. / Y., o homem misterioso favorito do país, só se deixa fotografar mascarado. Seus traços mais conhecidos são o nariz protuberante, os olhos brilhantes - que alguns repórteres dizem ser verdes e outros, castanhos claros -, e o seu talento para escrever. Até agora, foram frustradas todas as tentativas de detectar sua identidade. Na segunda-feira, quando se iniciaram as conversações de paz entre o governo e os guerrilheiros, Y. roubou o espetáculo. Usando seu eterno gorro de esquiador e cartucheiras a tiracolo, Y. pôs-se de pé, desfraldou uma bandeira do país e a manteve sobre a mesa, criando uma fascinante imagem de patriotismo para a guerrilha. / Palavras lidas não são palavras vistas. Nosso mundo, o mundo da publicidade, tudo rápido, veloz, misturou as coisas: nós, da escrita fonética, passamos a ver palavras, não mais lê-las. Poetas, concretistas, gostaram disso. Entretanto, palavras lidas não são palavras vistas. / A demissão do ministro que, há sete anos, acompanha o presidente em diversas funções públicas foi provocada por uma foto publicada no mês passado, na revista Notícia. Ex-membro da Suprema Corte, M., 49 anos, cabelos ralos e barba branca, estava quase irreconhecível: bem mais jovem, com o rosto liso, e o braço direito levantado, numa clara saudação ao ídolo de sua adolescência. Acusado de ter pertencido a organizações de extrema direita que, nos anos 60, cometeram mais de uma centena de ataques contra judeus e comunistas, M. não tentou negar. Apenas perguntou: – Quem não comete erros aos 14 anos de idade? / Palavras vistas erram sem alvo e, muito mais, espalham-se em estilhaços, são bombas primárias, perversas. A palavra lida é a flecha do arqueiro zen: é o alvo. Só tem partida e chegada, sem trajeto. Os mais afoitos diriam: certeza quântica. Gosto disso, das palavras de Rosângela que, mesmo escondidas na sombra, dormem acordadas, vigilantes, certas que são alvos. Essas palavras noturnas, escolhidas no fait divers, amanhecem nas imagens.
Depois da noite das palavras, nesse lusco-fusco banhado na cor sangue, vejo jovens estudantes militares posando. Ninguém esquece a disciplina da pose. Num átimo, somos todos militares. Uma suástica no braço e uniformes no estúdio doméstico do fotógrafo. Um senhor de fardão posa orgulhoso, mas sem exagero, como se seus bordados em ouro fossem pinturas sobre a pele de um autêntico guerreiro índio. O antropólogo moderno também sabe: depois das seduções das estruturas, não se transpõe o sentido, a história não se repete, o bordado nunca será a tatuagem.
Temos em negro, recortes de textos, notícias. Em sangue, poses, de homens vestidos. O vermelho e o negro, de novo. Essas roupas de cores – luto e sangue – com que Rosângela os vestiu, textos e imagens, os despiram. Com muito pudor, com o véu das cores, a artista nos entrega a nudez do texto e da imagem. Mas sempre haverá quem pense que se trata de gravura e de fotografia. Se for assim, então, para quê tanta poesia? Observo, há dez anos, por contatos esparsos, a experiência da artista e, por isso, penso que Rosângela nos oferece, agora que todas as barreiras entre os gêneros foram rompidas, o romance possível. Um pequeno grande romance de colagens de textos e imagens: a planície mágica que relê o vermelho e o negro.
DUARTE, Paulo Sergio. Para reler o vermelho e o negro. In Rosângela Rennó, folder de exposição. Rio de Janeiro: Laura Marsiaj Arte Contemporânea, 2001.
Whether it announces day or night, any twilight worth its salt contains red. Such are the twilight of the image and the night of the word that Rosângela delivers to us. Her eye is skin-like, tactile, able to touch words and images. She offers us blind words and muted images. Words need not be seen, they must be read, and this is what Rosângela wants. To such a purpose they are submitted to an inversion: embossed ornaments of meaning hiding in the dark to awaken our curiosity. / The image of her jailer she remembers is that of a man who confounded his interlocutors during interrogation with his cold, determined and highly objective behavior. Twenty years later, E. M., aged 41, a former militant of the MR-8, trembled when she saw e recent photograph of commissioner D. P. and did not hesitate to declare: “It’s him alright! I’ll never forget that face”. / Drama and tragedy are reduced and contained. They exist simply as parts of the world. One soon realizes that they are political. / Y., the country’s favorite mystery man, only allows himself to be photographed wearing a mask. His most well-known features are a prominent nose, shining eyes which some reporters describe as green and others as light-brown, and a talent of writing. To date, all attempts to uncover his identity have ended in frustration. On Monday, when peace talks between the government and the guerillas began, Y stole the show. Wearing his perennial ski mask, with his cartridge-belt slung over one shoulder, Y stopped up and unfurled a national flag upon the table, creating a fascinating image of patriotism for the guerilla. Words read are not words seen. Our world, the world of advertising, all speed and swiftness, has confused things; we who write phonetically have come to see words rather than read them. The concretist poets appreciate this. Still, words read are not words seen. / The dismissal of the minister who, for seven years, stood by the president at various public functions was triggered by a photograph published last month in News magazine. In it, the balding, white-bearded M., a 49-year-old former member of the Supreme Court, was nearly unrecognizable, his younger face clean-shaven, his right arm raised in clear salutation to his childhood idol. M. made no attempt to deny accusations that he had belonged to extreme right-wing organizations which, during the Sixties, committed over one hundred attacks jews and communists. He asks only: “Who does not make mistakes at fourteen?” / Seen words miss their target. Beyond that, they splinter – they are perverse, rudimentary bombs. A word read is the Zen archer’s arrow: it is the target. It has no trajectory, only departure and arrival. The more eager among us might say: a quantum certainty. I like Rosângela’s words, vigilant as they hide in shadow, awake in their sleep, sure of been targets. These nocturnal words, selected in the fait divers, awaken in the images.
After the night of words, I see young military students posing in a twilight bathed in the color of blood. No one forgets the discipline of posing. Before a camera, we are all military for an instant, a swastika on one arm, uniforms in the photographer’s home studio. A gentleman in uniform poses proudly yet without affectation, as though his gold braid were paintings on the skin of the authentic Indian warrior chief. The modern anthropologist knows, too: after the seduction of structures, meaning is not transposed, history does not repeat itself, embroidery will never become tattoo.
In black, we have clippings of texts, news. In blood, poses of clothed men. The red and the black again. The colored clothing - mourning and blood – in which Rosângela has dressed them, texts and images, has undressed them. With great modesty, behind the veil of colors, the artist delivers to us the nakedness of text and image. Yet there will always be someone who believes it is merely a matter of engraving of photography. If that were so, what could be the reason for such poetry? For ten years, intermittently, I have observed the artist’s experiment and this is why I think that Rosângela offers us (now that all the barriers betting genres have been broken down) a possible novel. And all this is only party of a big little novel of encounters between texts and images: the magic plain that rereads the red and the black.
DUARTE, Paulo Sergio. Rereading the red and the black. In Rosângela Rennó, exhibition folder. Rio de Janeiro: Laura Marsiaj Arte Contemporânea, 2001. Translated from Portuguese by Stephen Berg
Corpo e Gênero em Rosângela Rennó
Texts linked to the work red series (military men)
"Ninguém esquece a disciplina da pose. Num átimo, diante da câmera, somos todos militares. Uma suástica no braço e uniformes no estúdio doméstico do fotógrafo. Um senhor de farão posa orgulhoso, mas sem exagero, como se seus bordados em ouro fossem pinturas sobre a pele de um autêntico guerreiro índio. O antropólogo moderno também sabe: depois das seduções das estruturas, não se transpõe o sentido, a história não se repete, o bordado nunca será tatuagem.” (2)
A imagem militar, seguramente, possui conotações e regras rígidas e duradouras, mas ela pode ser compreendida através das colocações apresentadas acima. Em Série Vermelha, é o apagamento que mais chama a atenção do espectador, anunciando uma crítica dos usos destas imagens como referencial simbólico do masculino. Virilidade, autoridade, força e rigidez: em sua névoa vermelha, essas construções acerca da imagem militar são dissipadas e tornam-se os espectros longínquos desses homens e meninos. A ironia de seu apagamento vem acompanhada de uma sensação contraditória de afeto por estes indivíduos, que surgem numa espécie de prisão eterna das organizações sociais, repetindo incansavelmente gestos viris que muitos outros já repetiram. Esta sensação perante a série não pertencia ao propósito inicial de Rennó, que pretendia apagar qualquer tentativa de glorificação associada à pose típica do portrait bourgeois, pois o que mais pesou no momento de reunir e escolher as imagens “e que de certa forma ridicularizava a idéia de ‘glória’”, segundo a própria artista, “era a questão da vaidade masculina associada ao uso de uniformes”. De maneira irônica ela explicita sua ambição crítica inicial: “Homem gosta de uniforme, acredita que ele lhe confere poder”. (3)
Rennó produz uma espécie de esgotamento de possibilidades de enxergarmos esses indivíduos criando uma dificuldade prática (através da manipulação das fotos) que sugere a incapacidade mesma de compreensão do masculino. Poeticamente, a obra captura as formas de representação constantemente tidas como naturais e as reverte, apresentando suas densidades e complexidades. Esse esgotamento vem acompanhado de um plano intenso, muito belo, forjado por uma artista que parece ser capaz de enfrentar os vazios das representações e de formular novas perspectivas para o diálogo entre as subjetividades, masculinas, femininas...
Reler as imagens, mas também seus tons; repensar os dramas e intensidades do vermelho e do negro numa cultura bastante rígida, e não só para o feminino. Rennó destaca a tragédia da guerra e o luto das mulheres; o sangue, o amor e o sexo, mas também a morte. E se o negro, em Rennó, é o ponto culminante da filtragem da luz, onde todas as imagens possíveis aparecem mergulhadas no mar do esquecimento, ele parece nos colocar frente a frente com uma questão implacável: a necessidade mesma de relermos as cores com as quais pinta-se o mundo. O romance possível, ainda que existam muitas barreiras a desfazer, surge do enfrentamento com aquilo que mais violentamente nos revolta; da delicadeza com a qual Rennó mostra o esgotamento de possibilidades de nos reconhecermos em imagens, revelando a intensidade muda e enigmática da própria condição humana. Ao nos confrontar com nossa própria face encoberta por névoas, cores e sombras, Rennó parece desconfiar das superfícies claras que proclamam assegurar a estabilidade e a ordem: desfaz nosso rosto e nos deixa com a grande interrogação, com a inquieta experiência de não-saber.
1. CHIARELLI, Tadeu, “Apropriação/ Coleção/Justaposição”, In Catálogo para a exposição Apropriações/ Coleções, Porto Alegre, Santander Cultural, 2002.
2. DUARTE, Paulo Sérgio, “Para reler o vermelho e o negro”, In Catálogo para a exposição Apropriações/ Coleções, Porto Alegre, Santander Cultural, 2002.
3. RENNÓ, Rosângela Rennó: depoimento, op. cit, p. 20.
TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Corpo e Gênero em Rosângela Rennó(excerto de texto). In Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero (UFSC), 2007, disponível em: http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/fg7/artigos/L/Luana_Saturnino_Tvardovskas_49.pdf