site em reconstruçãosite under reconstruction

Rennó ou a beleza e o dulçor do presente


Textos relacionados ao trabalho

  • Atentado ao Poder


Texts linked to the work Outrage against Power


    […] No início de sua carreira, a jovem Rosângela Rennó usará também muitos objetos lúdicos, alguns provenientes de sua própria vivência infantil. Diz a artista que Alice (1987/1988), obra feita no ano em que se formou na Escola Guignard em Belo Horizonte, “é uma série de oito fotos, anterior a Conto de Bruxas, na qual comecei a reciclar meu próprio arquivo. Usava a imagem de uma boneca gigante que fazia as vezes de Alice para mim” (1). Em Conto de Bruxas (1988), Rennó recuperava imagens de histórias infantis dos anos 40 para serem vistas no aparelhinho view-master, com seu disquinhos para ver em três dimensões. “Para mim, é o primeiro trabalho de apropriação de fotos pra valer”, diz a artista (2). Ampliadas em preto e branco em grande formato (1,50 x 1,00 m), os inocentes bonequinhos viram monstros, porque sendo muito toscos e, ademais, atacados por fungos, revelam-se na ampliação criaturas abjetas. Daí a obra enfrentar a impossibilidade de reiterar sua origem como contos de fada. Entre as partes de Conto de Bruxas estão as cenas Da Capo al Fine, A Encarnação do Verbo, A Grande Cilada, Mea Culpa, Mulheres Violentas, A Última Promessa, Falsas Promessas. São imagens arquetípicas, como A Encarnação do Verbo, na qual Cinderela está como que ajoelhada e recebe a visita da fada, que tem asas. Como um Fra Angélico brutalizado por uma pane tecnológica, a imagem original da cena em view-master corresponde, na história da arte, à importante tradição iconográfica da Anunciação. O verbo que se fez carne e habitou entre nós é a fotografia, que, com sua pretensão de absoluto duplo do real, dispensaria, enquanto evidência, a própria palavra. Já o título Mulheres Violentas foi deliberadamente retirado de duas obras de Duane Michals: Women Fighting (Mulheres Brigando) e Men Fighting (Homens Brigando), ambos de 1993, duas verdadeiras lutas de anjos. Ambas são fotografias construídas e, abertamente, assumem sua teatralidade. O confronto engendrado na fotografia abjeto de Mulheres Violentas, com sua cena obtida com a precariedade (a simplicidade das transparências do aparelho view-master) e os sofrimentos (fungo) da imagem fotográfica, resulta na produção da fantasmática. A obra de Rennó cria atormentadoras histórias de bruxa, verdadeiros pesadelos estéticos, em contraposição à atmosfera de transparências oníricas, através da qual Michals, com seus anjos, penetra suavemente em regiões igualmente profundas dos embates do ser com sua identidade e dúvidas (3). [...]


        1.    Depoimento ao Autor em 10 de agosto de 1996. 
        2.    Depoimento ao autor em 9 de junho de 1996. 
        3.    Duane Michals, Duane Michals, Renaud Camus (introdução), Paris, Centre National de la Photo- graphie, e Nova Iorque, Pantheon Books, 1986. Ver também The Fallen Angel (O Anjo Caído), de Duane Michals. 


    HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In Rosângela Rennó. Edusp: São Paulo, 1996, pp. 115-191.


    Texto completo



    As Identidades Fotográficas em Rosângela Rennó 


    Textos relacionados ao trabalho

    • Hipocampo


    Texts linked to the work Hippocampus


      […] FILTROS DE LUZ 

      Uma perspectiva feminista singulariza, subverte e diz o lugar de sua fala, ou seja, marca-se principalmente pela atitude ética de construção de novas formas de sentir, pensar e agir na contemporaneidade, buscando outros modos de constituição das subjetividades. Problematizando os rumos do feminismo em nossos dias, Margareth Rago afirma: 

      [...] a feminista teria uma função social especial no sentido de ajudar a refazer as sociabilidades públicas, cada vez mais desgastadas e destruídas pela privatização do cotidiano, isto é, pela desvalorização da política e pela sobreposição, no mundo público, do modelo da amizade constituído pela referência familiar, isto é, na esfera da vida privada. (9)

      Rosângela Rennó, no começo de sua carreira, concebe imagens que questionam a submissão feminina, a aura de apagamento que permeia a construção da subjetividade das mulheres e o imaginário que as mantém em estereótipos como de princesas e bruxas. Posteriormente, aborda criticamente todo um universo de práticas opressoras sobre os corpos e as subjetividades, expressando um posicionamento político que caracteriza um novo modo de ação artística feminista. Nas artes, nas ciências ou na política, uma atitude feminista revela-se através do modo diferenciado de olhar, na denúncia das estratégias do poder masculino e na busca de novas configurações para a vida em sociedade. Não se trata, aqui, de formular uma identificação da artista com a militância, mas de observar em suas obras como os ecos de uma abordagem de caráter feminista estão presentes.
A artista produz uma crítica refinada à produção de imagens na atualidade, principalmente as fotográficas. Observando como nossa cultura lida com as imagens fotográficas de modo obsessivo, ela parece perceber que o ato de olhar já está suficientemente condicionado na contemporaneidade e que as imagens não nos são mais necessárias para tanto. 

      Para a artista, a fotografia apropriada permite a observação das imagens que foram ou deveriam ser descartadas. Deste modo, essa artista também trabalha com figurações que, produzidas aos milhares, acabaram por ter seu propósito original banalizado, tanto nas fotografias policiais ou naquelas produzidas na esfera privada. Um questionamento acerca do esvaziamento da experiência na contemporaneidade apresenta-se: qual o propósito de construir uma imagem de si, para si mesmo, por exemplo, nos retratos de família ou autorretratos, que irá se perder num oceano de imagens vazias? 

      Ao considerar que ver não é algo neutro, mas um comportamento cultural permeado de significados, Rennó utiliza uma prática restrita, tanto por apropriar-se de textos e imagens antigos, quanto por dificultar nossa leitura e visão a um ponto tão extremo que interfere na própria naturalidade com a qual costumamos utilizar nosso olhar. 

      É interessante notar como é constituído o olhar sobre o feminino na obra de Rosângela Rennó. As figuras femininas em suas imagens aparecem sempre no tenso limite entre a nebulosidade e a transparência. Ainda no início de sua carreira, Rennó utilizou objetos lúdicos, alguns que eram de sua vivência infantil (10). Na série Conto de Bruxas (1988), utilizou imagens de histórias infantis dos anos 1940, feitas para serem vistas em aparelhos de view-master, ampliando-as em grande formato (1,50 x 1,00) e transformando os bonequinhos quase em monstros, devido também aos fungos que as atacaram. Tais imagens subvertem sua própria origem enquanto contos de fadas, apresentando cenas arquetípicas como em Encarnação do Verbo (1988) (11), onde Cinderela, sentada, recebe a visita de uma fada. 

      Por meio dessa reapropriação de elementos infantis, Rennó “cria atormentadoras histórias de bruxa, verdadeiros pesadelos estéticos”, segundo Paulo Herkenhoff (12). O título “encarnação do verbo”, que corresponde à tradição iconográfica da Anunciação na história da arte, aqui parece ser transmutado em uma crítica às definições de gênero que mantém as mulheres presas definidas em opostos simbólicos do “anjo do lar” e da bruxa. Conto de Bruxas sugere uma crítica aos lugares femininos tradicionais, sustentados por um imaginário de conto de fadas, veiculados em livros de histórias infantis. Falsas promessas (1988), título de outra fotografia da série, mostra um príncipe e uma princesa numa situação de tensão. Ao ironizar as virtudes femininas idealizadas, como a passividade e a amorosidade, Rennó faz desiludir da espera por um príncipe encantado. 

      Do repertório da artista, essas obras iniciais em sua carreira são as que se orientam mais abertamente pela discussão de gênero, apresentando os temas clássicos do universo feminino, transmutados em imagens fantasmagóricas e sombrias. Rennó, pelo que parece, busca desconstruir a delicadeza e a fragilidade desses arquétipos femininos, sublinhando, nessas obras, a dimensão assujeitadora dos mesmos.  [...]


      TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. As Identidades Fotográficas Em Rosângela Rennó (excerto de texto). In TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Figurações Feministas Na Arte Contemporânea Brasileira. Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó. São Paulo: Editora Intermeios, 2021, pp. 150-236.


      Texto completo