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selected texts
projeto terra de José Ninguém, 2021
projeto eaux des colonies, 2020-2021
- eaux des colonies (les origines), 2020-2021
- eaux des colonies (en construction), 2021
aucune bête au monde, 2019
lanterna mágica, 2012
Río-Montevideo, 2011/2016
corpo extranho africano, 2011
menos-valia [leilão], 2010
matéria de poesia, 2008-2013
a última foto, 2006
apagamentos, 2004-2005
experiência de cinema, 2004
corpo da alma, 2003-2009
bibliotheca, 2002
espelho diário, 2001
série vermelha (militares), 2000-2003
cartologia, 2000
vera cruz, 2000
parede cega, 1998-2000
vulgo/texto, 1998
vulgo [alias], 1997-2003
cerimônia do adeus, 1997/2003
cicatriz, 1996/2023
paisagem de casamento, 1996
hipocampo, 1995/1998
imemorial, 1994
atentado ao poder, 1992
duas lições de realismo fantástico, 1991/2015
paz armada, 1990/2021
anti-cinema (fotogramas), 1989
anti-cinema (discos), 1989
- pequena ecologia da imagem, 1988
Algumas anotações sobre viajantes e turistas
She did not think of herself as a traveler; she was a tourist.
Kit, Port e Tunner: Os viajantes
Nos começos do século XVII surge na Inglaterra o costume de enviar jovens nobres para fazer longas viagens por vários países do continente: o Grand Tour, e assim aumentar suas experiências. No século seguinte começam a se organizar, sempre na Inglaterra, excursões entendidas como ‘viagens de recreação’. Aparece, então, a categoria ‘turista’, que de alguma maneira se opõe à de ‘viajante’. Talvez a melhor definição da diferença entre viajante e turista seja a que Paul Bowles põe na boca de Port, um dos protagonistas de The Sheltering Sky:
Enquanto o turista geralmente se apressa para voltar a casa, ao final de umas poucas semanas ou meses, o viajante, que não pertence mais a este lugar que ao próximo, move-se lentamente, em períodos de anos, de uma parte da terra a outra. (1)
A lenta deriva levaria o viajante a se transformar num ser nômade, que vaga de território em território, sem se fixar em lugar nenhum. O nomadismo e a inércia contribuiriam para apagar as diferenças entre um lugar e outro, entre um povo e outro. Na opinião enfastiada de Kit, esposa de Port:
As pessoas de cada país se parecem com as pessoas de todos os países. Elas não têm caráter, nem beleza, nem ideais, nem cultura – nada, nada. (2)
A indiferença é desconcertante, pois os viajantes do romance –Port e Kit Moresby, e George Tunner–, vagam por um deserto povoado de pessoas cuja língua e cujos costumes desconhecem e com os quais não conseguem estabelecer nenhuma relação. Para Port, Kit e Tunner, viajar parece ser o resto de uma religião vazia, um ritual sem mito que os leva a uma errância inelutável. No final, há muito pouco a fazer.
Depois da morte de Port, Kit, aterrorizada pelo deserto e os árabes que o habitam, adentra-o e, extraviada, é acolhida por uma tribo nômade, na qual sobrevive, vestida de homem. Sem fala, comunicando-se apenas através de seu corpo, se anula no desconhecimento dos outros: É impossível entrar nas suas vidas e saber o que eles pensam realmente (3).
Mario de Andrade: O turista aprendiz
Tem momentos em que eu tenho fome, fome estomacal de Brasil agora.
Até que enfim sinto que é dele que me alimento! (4)
Até que enfim sinto que é dele que me alimento! (4)
O turista aprendiz Mario de Andrade fará duas viagens pelo Brasil –em 1927 e em 1928-1929. À diferença de sua Viagem da Descoberta do Brasil através das cidades históricas de Minas Gerais, na Semana Santa de 1924, em companhia de seus amigos modernistas, estas jornadas são as mais demoradas e extensas de sua vida de poucas viagens. (5)
Na primeira, em 1927, vai na companhia de D. Olívia Penteado, idealizadora do projeto, e de duas jovens –Mag, sobrinha de D. Olívia, e Dolur, filha de Tarsila do Amaral. Visitam os estados do Amazonas e Pará, chegam a Porto Velho, a Iquitos, no Peru, e alcançam a fronteira da Bolívia. Viajam em barco a vapor e em embarcações locais pelos grandes rios e igarapés; fazem um percurso, também, no trem da Madeira-Mamoré.
Na segunda jornada, Mario percorre o Nordeste: Alagoas, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Em ambas as viagens, escreve diários e tira fotografias... muitas fotografias, com sua câmara Codaque, de nome abrasileirado como o verbo que inventa: ‘fotar’.
O diário imagético, de acordo com Telê Ancona López, mostra o cotidiano dos turistas a se divertirem numa ficção disfarçada de lazer. Assim, numa foto, o turista aprendiz e a filha de Tarsila se fantasiam de índios; em outra, Mario se prepara para uma Aposta de Ridículo com luvas e leque, comendo bananas. Mas, por baixo de todas essas irreverências, flui o imenso amor de Mario pelo Brasil desconhecido e por conhecer.
Seus diários dialogam com o de seu avô Leite Moraes –Apontamentos da viagem de São Paulo à capital de Goiás, desta ao Pará pelos rios Araguaia e Tocantins e do Pará à Corte, de 1883– e com os diários de viagem do naturalista Von Martius pelo Amazonas. As imagens do Brasil, as que vê, as que ‘fota’ e as que lhe enviam o fascinam. Turista aprendiz na própria terra, o Mario paulistano se alimenta das visões do seu país desconhecido.
Francis Alÿs: Turista
A foto que vemos (Turista, 1994) é a documentação de uma ação executada no Zócalo da Cidade de México. O artista a identifica da seguinte maneira: Em 10 de março de 1994 fui até o Zócalo e estive no meio de uma fila de carpinteiros, encanadores e pintores de casas oferecendo meus serviços como turista. (6)
No Centro da Cidade do México, no Zócalo, apoiados contra a grade lateral da Catedral, reúnem-se, todos os dias, trabalhadores autônomos ou desocupados que oferecem seus serviços. São humildes operários da construção civil que encontraram nesse lugar um local adequado para conseguir trabalho. Na foto que registra a ação, destaca-se a figura de Francis Alÿs –um homem branco, alto e longilíneo, de blazer e com óculos de sol–, tendo a seus pés um cartaz manuscrito com a palavra turista, e ladeado por dois operários mexicanos, atarracados, morenos e em mangas de camisa, os quais fitam o observador. Os cartazes aos pés deles explicam: eletricista, encanador geral, pintor e gesseiro.
No seu vagar pela cidade de México –cidade-espetáculo, cidade-aventura, cidade-cenário–, se trama a história pessoal de Francis Alÿs, que chegou ali nos anos 1980 e nela ficou. O universo de Alÿs, muito próximo do espírito surrealista, manifesta-se com fervor nos espaços urbanos, fragmentados, descontextualizados, lugares de aparição do irreal ou do extraordinário.
Junto a pedreiros, encanadores, eletricistas e pintores, o turista que nos oferece seus serviços –afinal, o que serventia tem um turista? – é um intercessor do extraordinário. A imagem também uma farsa, porque apesar de sua gritante alteridade, Francis não é um turista.
Rosângela Rennó: A turista transcendental
Para Rosângela Rennó, turista transcendental seria, então, aquele que, ao viajar para um lugar, carrega na memória as imagens de outros lugares. Na mente da turista transcendental as lembranças pululam e proliferam, e cada lugar, cada objeto, cada monumento atrai e superpõe todos os lugares, todos os objetos, todos os monumentos. Assim, as imagens –as lembranças–, se deslocam, se confundem e se sedimentam em camadas diacrônicas.
Ao afirmar que não é viajante, mas turista, Rennó –tal como Francis Alÿs quando oferece seus préstimos de turista na cidade em que habita–, não mente, mas também não diz a verdade. Ela nos dá a ver sobre a paisagem registrada no seu tour, uma nova paisagem, uma paisagem mental. Como se a vista –o Salar de Uyuni, a costa do Bosforo ou as pirâmides de Teotihuacán–, se estilhaçassem no centro de um turbilhão de imagens/memória.
Sobre o branco contínuo do chão de sal e o azul interminável do céu sem nuvens, Rosângela procura traçar uma mediatriz que foge. Ao verticalizar a horizontalidade do campo de sal, as dimensões do mundo escorregam. A respiração que titubeia e falha no subir cadenciado pelas escarpadas escadarias da Pirâmide do Sol, desce sofregamente as da Pirâmide da Lua.
Em Nasca, na costa sul do Peru, a turista sobrevoa as planícies e grava em vídeo as linhas gravadas no chão, mas, a distância embaralha os desenhos sobre a pele da terra. As imagens, de 11 anos atrás, são trémulas e rarefeitas: sobre a pálida superfície do deserto, distinguem-se apenas um emaranhado de riscos. Foram feitos removendo a camada superior de seixos avermelhados para revelar o solo cinza. Entretanto, um tatuador prepara a pele clara do pé direito da artista para traçar, sobre ela, o que se perfila como a imagem de uma arvore sem folhas. O barulho do motor confunde-se com o da máquina do tatuador. E, se nunca vemos os desenhos de Nasca, linhas confundidas com às linhas orgânicas da paisagem, também não vemos a árvore concluída, só a caneta deixando uma marca indelével sobre a pele. Afinal, as figuras formam-se fora da tela, num espaço mental, onde persistem, separadas de Nasca, separadas de Rosângela. A imagem tatuada, apesar de ser uma incisão, é tão invisível como os geoglifos no deserto. O olho, a câmara, o texto e a montagem agem sucessivamente e ao mesmo tempo, porque o corpo da artista está no centro, no dentro e no através.
A turista tentou fazer uma viagem pelo tempo e, dela voltou sem imagens, apenas com palavras, que deslizam como as legendas de um filme impossível, em que o som e a imagem foram rasurados e somente restaram as letras vazias a narrar uma história quase esquecida, mas repetida infinitamente. A viagem da turista a Pindorama, em 1500, registrada em Veracruz, só oferece riscos e restos interrompidos pelas legendas das vozes dos invasores.
Turista transcendental, a artista Rosangela Rennó não se extravia como o viajante no deserto, nem coleciona os exotismos de sua própria terra, nem oferece sarcasticamente seus serviços. Apenas reúne imagens residuais, lembranças que nunca foram registradas, que nunca fizeram parte da memória porque jamais foram fixadas como percebidas, e as articula com as imagens de lugares pelos quais passa: a Ilha de Reunião, o Salar de Uyuni,
Teotihuacán, Chipre, o interior da estátua da Liberdade ou os altiplanos de Nasca
Paradoxalmente, a acumulação das imagens não produz uma sensação de saturação, mas de falha. Como se entre as imagens, as palavras e os sons alguma fresta se abrisse, soturna e fugidia. Uma fratura que devora os signos, mas que exige que eles sejam constantemente restituídos.
- BOWLES Paul. El cielo protector . Madri: Alfaguara, 1988 , p.37.
- Idem, p.176.
- Idem,p. 198.
- ANDRADE, Mario de. Em correspondência a Câmara Cascudo, 1926. Apud ANCONA LÓPEZ, Telê. O turista aprendiz na Amazônia: a invenção no texto e na imagem. Anais do Museu Paulista, jul-dez, v.13, n.2. USP, 2005, p.135-164.
- Cf. ANCONA LÓPEZ, 2005.
- ALŸS, Francis. Diez quadras alrededor del estudio. Textos de Cuauhtémoc Medina (catálogo). México: Antiguo Colegio de San Ildefonso, 2006.
MELENDI, Maria Angélica. Algumas anotações sobre viajantes e turistas, 2o11/2024. Catálogo da exposição. Coleção moraes-barbosa. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1FR33ecDi_qCweHqFGaO4ugEv-zFNoJ71/view
Texto originalmente publicado em RENNÓ, Rosângela. Notas de viagem de um Turista Transcendental. Catálogo da exposição. Caixa Cultural, 2011.
O espírito de Rosângela Rennó
Sabemos que o turista é a figura exemplar do consumidor apressado de paisagens e culturas, sempre visando um resultado diante daquilo. Daí a necessidade de tudo fotografar e postar, mesmo que jamais tais imagens sejam revistas algum dia. O turista seria o oposto do viajante do século XIX, para o qual o percurso era mais importante do que o destino final. A grande instalação Turista transcendental, que ocupa todo o segundo andar do Oi Futuro, encarna uma mescla de ambos. Ao longo de dezenas de projeções acompanhadas de textos e áudios, somos levados a uma imersão por diferentes paisagens do mundo. Valendo-se de uma voltagem crítica que faz uso do humor e da ironia, Rennó edifica um admirável pensamento poético que se apropria da figura do turista para, a partir daí, sinalizar o que seriam novos e inauditos modos de nos relacionarmos com o tempo, o espaço, e com aquilo que é da ordem do intangível.
O turista transcendental seria uma espécie de utopia de nosso tempo. Munidos de celulares, podemos facilmente nos somar à legião de zumbis ventríloquos na era das selfies, nos tornando parte da engrenagem sintomática que o filósofo italiano Giorgio Agamben batizou de “vida nua”. A hipótese do “turista transcendental” seria justamente o reverso disso; como diz a artista:
O turista transcendental é, então, aquele que, ao viajar para um lugar, traz junto consigo a memória de outro lugar. No plano teórico, se sua mirada é prospectiva, funciona como se, ao contemplar o mar, se preocupasse mais em demonstrar que aquela imensidão azul é a mesma que toca todos os demais continentes. De maneira oposta e retrospectiva, seria como olhar para um seixo rolado tentando mapear todas as pedras espalhadas pelo mundo que foram nascidas da mesma rocha. Na prática, ao documentar uma paisagem exótica, ele agrega, de forma alegórica, dados pertinentes a outros povos e lugares, como se construísse entre eles pontes delicadas, multidirecionais, permitindo-se novas travessias e amalgamando tudo isso a sua própria noção de paisagem. O foco de sua câmera de vídeo é ao mesmo tempo preciso e difuso e convida a todos a imaginar experiências muito além do mundo material. [...]
DUARTE, Luisa. O espírito de Rosângela Rennó. In Zum, 2017. Disponível em: https://revistazum.com.br/radar/espirito-de-tudo/.