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Texts linked to the work Matter of Poetry


     A instalação de Rosângela Rennó para a 22ª Bienal de São Paulo utiliza fotos de álbuns de família e textos colhidos em jornais, articulando o papel da singularidade das histórias pessoais com os fatos aparecidos nos meios de comunicação de massa. As fotos, ampliadas e escurecidas, justapõe-se a textos com referências a fotografias em fragmentos de notícias onde se revelam a fragilidade e as misérias humanas, para criar um espaço a ser experimentado em seu silêncio branco e preto. Evoca uma vida, intensamente privada, secreta e íntima, recorrendo, no esforço de dar-se à contemplação, a curiosidade natural de todos nós pela vida do outro. Propõe uma reflexão sobre a imagem, o processo criativo e a experiência de viver em um mundo onde tudo já foi inventado e está saturado de imagens e informações. Procura instaurar, através da experiência do lugar em que se alojam, alguma possibilidade de singularidade, de individuação da existência.

    Não se trata de escrever biografias ou uma autobiografia. Ao contrário, a instalação se propõe a ficar longe de qualquer definição ou afirmação da realidade para criar uma situação de interação com o espectador, este sim, capaz de inventar uma realidade a partir dos interstícios das imagens e dos textos. Mas há mais que a indeterminação das referências: textos e imagens aparecem como reprocessando memórias tanto quanto fragmentos de uma história, de qualquer história, inclusive a da própria fotografia. Rennó, desde o início de sua carreira, vem se dedicando a uma investigação sistemática sobre os efeitos do tempo, do esquecimento e das mudanças sociais e psicológicas como transformadores da memória registrada pela fotografia, que por sua vez, é um processo de transformação da experiência em memória. 

    Qual é o sentido destas imagens e textos descontextualizados? Minha hipótese é de aqui o olhar para o passado, para o já acontecido, é usado como estratégia deliberada de disfarce infinitamente mais complicada que uma simples nostalgia ou que qualquer apelo de caráter ideológico. Questionando os códigos de identificação, as fotografias não são simples reproduções auto evidentes do real – Rennó justamente se interessa pela imperfeição da memória e da fotografia, pois ambas são vivências fragmentárias e aproximativas – mas são construções, produtos de um modo de olhar que enreda o espectador numa política do olhar, que evidencia o espectador como senhor do observado.

    Os textos escavados ao lado das imagens seriam ao mesmo tempo parâmetro e comentário, que levariam o espectador a buscar no interior deles as chaves para a compreensão do ambiente criado pela artista. Entretanto, eles estabelecem uma distância primordial entre texto e imagem. Não concedem uma explicação que pudesse ser manipulada como constituinte de um sentido que jogasse luz sobre o que estamos tentando ver. Ao contrário, distanciando-se fisicamente da imagem eles acentuam o espaço de indefinição. O suporte narrativo transcende a literalidade das palavras e do gesto que os escolhe, veiculando noções de estado, de estatuto e de identidade que exprimem a precariedade do implícito.

    Rennó não está preocupada com a oposição entre texto e imagem como outros artistas contemporâneos. A justaposição de textos e imagens, onde cada um deles é carregado de indefinição, não é suficiente para conferir-lhes um sentido, pois as duplas não são agentes da construção de uma possível interpretação. Esta tarefa é deixada ao espectador que deverá construir um sentido para eles.

    Fotografias e textos, justapostos no interior do ambiente, não são “vazios” apenas porque não podemos saber exatamente a que eles referem. Há muito mais que a indeterminação das referências. Ao serem apresentados fora de seus contextos, eles (fotos e textos) reafirmam sua condição de passado e revelam com leveza sua condição inicial de instaurar uma outra situação, uma outra inscrição, outros significantes. Se o que eles apresentam não está claramente identificado, há um sentido preciso de para onde eles se dirigem: para fora do quadro, para um espaço além da superfície onde estão apoiados, para a própria percepção. Porque eles fazem parte do registro de uma história a respeito do processo de esvaziamento da imagem, pois ela não vem mais sozinha e nós somos deixados com a responsabilidade de estabelecer as pontes entre imagem e texto. A instalação de Rennó pretende possibilitar uma espécie de memória futura do presente, num jogo com o tempo, onde passado e presente se unem, se sobrepõe e se confundem. A artista não nos lança em busca de um sentido para essas fotos e imagens tanto quanto nos convida a criar uma imagem e fundar uma memória.


    MESQUITA, Ivo. Sem Título. In Seis Artistas na XXII Bienal de São Paulo. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1994, p.34-35. 
    Rosângela’s Rennó’s installation for the Twenty-Second International São Paulo Biennial uses photographs from family albums and texts gathered from newspapers to articulate the singularity of personal histories with facts which appear in the mass communication media. Blown up and darkened, the photographs are juxtaposed with texts which refer to photographs in news fragments, texts where human frailty and wretchedness are revealed for the creation of a space to experienced in black and white silence.

    They evoke an intensely private life, secret and intimate, and in the effort of allowing themselves to be contemplated they resort to our natural curiosity about the lives of the others. They propose meditations on the image, the creative process and the experience of living in a world where everything has already been invented and is saturated with images and information. Trough an experience of the place where they lodge themselves, they seek to establish some possibility of singularity, of the individuation of existence.

    It is not a question of writing biographies or an autobiography. On the contrary. The installation proposes to keep away any definition or affirmation of reality so as to create an interaction with the spectator, who is capable of inventing a reality from the interstices of image and texts. But there is something beyond the indetermination of references: texts and images appear as though they were reprocessing memories in addition to fragments of a history, of any history, including that of photography itself. Since the beginning of her career Rennó has dedicated herself to a systematic investigation of the effects of time, forgetting, and social and psychological changes as transformers of memory recorded by photography, in its own right a process of transforming experience into memory.

    What is the meaning of these decontextualized texts and images? I propose here to look at the past, to what has already happened, and is used as a deliberate strategy of disguise, infinitely more complex than mere nostalgia or any appeal of an ideological nature. Questioning the codes of identification, photographs are not merely self-evident reproductions of the real – Rennó is interested precisely in the imperfection of memory and photography, as they both fragmentary and approximate lived experiences -, but they are constructs, the product of a way of seeing which ensnares the spectator in a politics of the gaze, proof of the observer as master of the observed.

    The texts appearing alongside the images would be at once parameter and commentary, which might lead the spectator to seek within himself for the keys to an understanding of the environment created by the artist. And yet they establish a primordial distance between the text and the image. They concede no explanation which might be manipulated to constitute a meaning or shed light on what we are attempting to see. On the contrary, in phisically distancing themselves from the image they emphasize the space of indefinition. The narrative support transcends the literalness of words and gesture which selects them, channeling notions of state, statute, and identity which express the precariousness of the implicit.

    Rennó is not concerned with the opposition between text and image in the manner of other contemporary artists. The juxtaposition of texts and images, where each is charged with indefinition is not enough to bestow meaning, for the pairs are not agents of the construction of a possible interpretation. This task is left to the spectator who must construct a meaning for them.

    Photographs and texts juxtaposed within an environment, are not “empty” only because we cannot know exactly to what it is that they refer.

    There is much more beyond the indeterminacy of references. On being presented out of their contexts, they (photographs and texts) reaffirm their condition as things past and reveal with lightness their initial condition for the establishment of another situation, another inscription, other sgnifiers. If what they present is not clearly identified, there is a precise meaning for the place to where they are going: outside the picture, to a space beyond the surface upon which they are supported, to their own perception. Because they are part of the record of a history about the process of the emptying of the image, for it no longer appears unaccompanied and we are left with the responsibility of establishing the connections between image and text.

    Rennós installation intends to enable a sort of future memory of the present in a game with time, where past and present unite, are superimposed and are confused. The artist does not shed us in search of a meaning for these photographs’ ad images as much as she invites us to create an image and found a memory. 


    MESQUITA, Ivo. Untitled. In Seis Artistas na XXII Bienal de São Paulo. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1994, p.34-35. 


    O que é bom para o lixo é bom para a poesia: uma aproximação com a matéria poética de Rosângela Rennó


    Textos relacionados ao trabalho


    Texts linked to the work Matter of Poetry


      “O mundo vai sempre ter fotografias demais... Acho que devemos reaprender a ver, passar por uma espécie de reencantamento. De uma forma geral as fotografias não nos encantam mais” (RENNÓ, 2003, p. 13). Nesse depoimento (1), Rosângela Rennó se refere à demasiada quantidade de imagens fotográficas, o que faz com muitas delas acabem esquecidas. A artista – que raramente atua como fotógrafa –, desde o início de sua carreira, optou por trabalhar com as sobras da cultura, com o que estava destinado ao lixo, adquirindo, recolhendo e colecionando objetos diversos (fotogramas, arquivos pessoais, arquivos de fotógrafos populares, álbuns de família, notícias de jornais, negativos, slides). Sua matéria-prima são as imagens periféricas, memórias do indivíduo comum que, em algum momento, foram registradas e, posteriormente, abandonadas, perdidas, esquecidas, vendidas ou doadas (2). 

      Rosângela Rennó parece estar o tempo todo lidando de maneira crítica com a própria história da fotografia, que para ela não é a das grandes imagens, mas uma possibilidade de reconhecimento crítico da sociedade. “Para Rennó, o fotógrafo não é aquele que torna algo visível, mas o artista que torna a fotografia criticamente cognoscível em sua circulação social.” (HERKENHOFF, 1998, p. 152). Nesse procedimento de apropriação, geralmente relacionando imagens com textos, numa espécie de intertextualidade visual, estaria Rosângela Rennó pretendendo resgatar a memória ou mostrar a impossibilidade de sua recuperação na contemporaneidade? Ou estaria propondo uma alternativa para tratar desse excesso de imagens, ressignificando-as de maneira a propor novas leituras e interpretações? Neste caso, qual o papel da fotografia hoje: ser uma simples reprodução da realidade, do que algum dia existiu, ou produzir outras relações baseadas no subjetivo, na vida e também (por que não) nos sonhos do espectador? 

      Neste artigo, analisaremos, especificamente, a série Matéria de Poesia (para Manoel de Barros), realizada entre 2008 e 2013, na qual, após mais de vinte anos de carreira, Rosângela Rennó faz uma espécie de síntese de sua trajetória artística. Nessa série, realizada com slides recolhidos em diversas partes do mundo, a artista compõe novas imagens a partir da sua sobreposição, resultando numa aparente opacidade e numa montagem que possui uma atmosfera de sonho, quase surreal, provocando novas e múltiplas interpretações, incertezas, dúvidas e questionamentos. 


      SOBRE FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E ESQUECIMENTO 

      Para Susan Sontag (2004), a fotografia não é apenas uma imagem, mas também um vestígio de alguma coisa que existe na realidade; é sinônimo de aquisição, de posse de algo, o que daria a ela um caráter de objeto único. Entretanto, quando algo é fotografado, também passa a fazer parte de um sistema de informação, com classificações e armazenamento. A exploração e a duplicação fotográficas fragmentam continuidades e distribuem os pedaços num dossiê que nunca tem fim. 

      As fotos, que brincam com a escala do mundo, são também reduzidas, ampliadas, recortadas, retocadas, adaptadas, adulteradas. Elas envelhecem, afetadas pelas mazelas habituais dos objetos de papel; desaparecem; tornam-se valiosas e são vendidas e compradas; são reproduzidas. Fotos, que enfeixam o mundo, parecem solicitar que as enfeixemos também. São afixadas em álbuns, emolduradas e expostas em mesas, pregadas em paredes, projetadas como dispositivos. Jornais e revistas as publicam; a polícia as dispõe em ordem alfabética; os museus as expõem; os editores as compilam (SONTAG, 2004, p. 15). 

      Embora a contribuição de Sontag seja interessante por apontar a questão fragmentária da fotografia e a sua possibilidade de reconstrução por meio do seu recolhimento e arquivamento, ainda está baseada na fotografia como uma imagem que se refere a algo real, a um índice. 

      Philippe Dubois (1993) explica melhor essa definição da fotografia como índice (impressão, traço, marca, registro de algo). Para ele, o ato fotográfico pretende destacar a condição indicial da imagem fotográfica, na qual haveria uma conexão física entre a imagem captada pela fotografia e o objeto existente (referente), o que não pressupõe, entretanto, a representação física (ou mimética) do objeto. O autor destaca três características dessa concepção teórica: a singularidade, a atestação e a designação. A singularidade é a própria gênese do índice; o traço fotográfico é singular e tem origem na unicidade do referente, ou seja, há uma relação única entre o signo e objeto. Outra característica é a atestação, ou seja, a fotografia não significa, mas testemunha, certifica, autentica, remete à existência do objeto do qual procede. A fotografia tomada como índice “é por natureza um testemunho irrefutável da existência de certas realidades.” (DUBOIS, 1993, p. 74, grifo do autor). A designação está ligada à atestação e nos remete ao referente; o traço indiciário não afirma, mas designa, indica, sublinha a relação singular com uma situação referencial determinada. 

      André Rouillé (2009) escreve contra a abordagem da fotografia baseada na noção de índice – defendida por Dubois e utilizada, por exemplo, no isso foi de Roland Barthes (1984) –, que ele considera demasiadamente abstrata, essencia- lista e redutora, principalmente nos tempos atuais, quando ocorrem novas relações com as imagens. Para ele, também devemos perguntar o que foi que se passou?, dando um caráter interrogativo e não apenas constatativo à fotografia. “Na realidade, a fotografia é ícone, referência e composição, aqui e lá, atual e virtual, documento e expressão, função e sensação” (ROUILLÉ, 2009, p. 197). O autor propõe um enfoque mais global da fotografia no qual se deve reconhecer o papel que se estabelece entre o passado virtual da memoria e o presente atual da matéria, ou seja, devemos conjugar nossas percepções com a realidade física das coisas e as lembranças imateriais; e sempre que nos voltarmos para o passado, o elemento da subjetividade estará presente. Se o percurso da impressão material é da ordem da repetição, o da memória conduz à diferença e à criação. Portanto, “A imagem fotográfica nunca é repetição sem ser diferença” (ROUILLÉ, 2009, p. 223). 

      O uso da fotografia por Rosângela Rennó – assim como por Christian Boltanski (1944–) e Alfredo Jaar (1954–) – está ligado à sua tradição histórica e cultural; porém, ela é vista como ilusão do real. As obras desses artistas indicam que a fotografia hoje possui uma indeterminação referencial, uma multiplicidade de sentidos que se desdobram em direções diversas. Não há mais, na fotografia, certeza daquilo que foi, como afirmava Barthes. Ela não é garantia de memória. No seu conjunto, o trabalho de Rennó perpassa alguns questionamentos da memória no século XX, tanto a pessoal/ individual, como a coletiva, observando-se nas obras mais recentes a presença das duas memórias, como pequenos arquivos, os quais ela está sempre (retro)alimentando. 

      Na obra de Rennó, a utilização de objetos e meios obsoletos talvez demonstre sua consciência de que é impossível tudo armazenar, mesmo após a revolução documental pelos meios digitais; porém, o que interessa à artista não é a quantidade, mas a qualidade. Trabalhar com coisas que estão no lixo ou vão para o lixo a faz pensar (como ela afirma) em que medida se pode determinar o seu valor: “[...] em fotografia, pode-se falar de valor estético, valor documental, valor simbólico, valor sentimental, e por aí vai... então, quando se destinou uma imagem ao lixo, significa que ela perdeu muita coisa.” (RENNÓ, 2003, p. 15). 

      Andreas Huyssen (2000) nos diz que vivemos seduzidos pela memória ao mesmo tempo em que acusa a cultura contemporânea de amnésia e apatia, pela rapidez com que tudo se torna obsoleto, fazendo com que percamos os vínculos com os objetos. A memória (dotada de um caráter transitório) e o esquecimento são, portanto, parte de um mesmo processo. Os discursos sobre a memória e o esquecimento estão presentes, tanto na preocupação com a visualidade que demonstraram alguns poetas quanto no uso da palavra pelos artistas. 


      MATÉRIA DE POESIA OU POESIA DE MATÉRIA? 

      Rennó recontextualiza imagens perdidas, senão recuperando o que restou dos seus significados, abrindo-as para novos sentidos, lutando constantemente contra o esqueci- mento e a efemeridade do mundo contemporâneo. A artista cria maneiras para dar nova visibilidade às imagens; propõe estratégias para que possam ser vistas de novo, em outro contexto e com outro papel. O espectador não seria um sujeito passivo, mas ajudaria a reelaborar a imagem a partir da sugestão de uma narrativa que pretende desafiá-lo, fazendo com que ele formule suas próprias conexões; realize suas próprias intertextualidades; associe a fotografia ao seu repertório de imagens, e, enfim, veja o que deseja ver. 

      Vilém Flusser (1985) – que, de certa forma, atualiza as ideias de Walter Benjamin e seu estudo sobre a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica – afirma que esquecemos como decodificar imagens após o estabelecimento do que ele chama de imagens técnicas. 

      O caráter aparentemente não-simbólico, objetivo, das imagens técnicas, faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas, e não imagens. O observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos, quando critica as imagens técnicas (se é que as critica), não o faz enquanto imagens, mas enquanto visões do mundo (FLUSSER, 1985, p. 14). 

      Portanto, a aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois elas são tão simbólicas quanto qualquer outra imagem e devem ser decifradas por quem deseja captar os seus significados, revelando não o mundo, mas determinados conceitos relativos a ele. Para Flusser, as imagens são mediações entre o homem e o mundo, porém têm um caráter mágico, essencial para sua compreensão. Ele destaca ainda, nesse processo, a importância da atitude crítica do observador, que deve ser capaz de decodificar as imagens. Nesse sentido, Rennó estaria então propondo uma problematização da relação da imagem com o espectador, provocando respostas críticas. A própria artista explica o seu processo: 

      A maneira que encontrei para tentar promover esse reencantamento [da imagem] foi forçar uma falsa opacidade na imagem. Com ela provoco uma dificuldade de decodificação, um ruído, um curto-circuito, que faz com que o espectador não fique diante de uma imagem precisa. [...] Ele é forçado a voltar-se para os seus referenciais e reconstrói a imagem mentalmente, desviando-se do puro estímulo visual (RENNÓ, 2003, p. 13). 

      [...] minha estratégia é provocar uma espécie de apagamento do primeiro referencial para que você possa entrar numa viagem com o personagem e assim fazer com que essas imagens ganhem visibilidade, mas de uma nova forma, pois não faz sentido repetir o que está feito (RENNÓ, 2003, p. 15). 

      O uso do texto aliado à imagem fotográfica torna-se um elemento fundamental para alcançar esse objetivo. Como a artista afirmou em entrevista, no início teria sido uma espécie de brincadeira com títulos que pudessem remeter a algo ou provocar um estranhamento no espectador, porém aos poucos ela foi percebendo que era um mecanismo poderoso que poderia ativar um universo paralelo, mais ficcional do que documental, portanto, diferente da fotografia convencional ou tradicional (RENNÓ apud SCHENKEL, 2011, p. 182). Na mesma entrevista, Rennó diz que é muito rigorosa com a forma como o texto é utilizado, variando conforme a obra. Muitas vezes, ele entra com força; em outras ocasiões, ele é simples, quase transparente. 

      Essa simplicidade é o caso de Matéria de Poesia (para Manoel de Barros) (3), onde Rosângela Rennó retoma a intertextualidade da imagem e do texto, utilizando a poesia de Manoel de Barros (1916 – 2014). 

      Para cada poema, a artista combina uma seleção de seis imagens, criadas a partir da sobreposição de slides (encontrados ou comprados em antiquários ou briques) e ampliadas em grande formato, mantendo de alguma forma uma relação temática e/ou por tonalidade entre si. Há um conjunto para cada letra do alfabeto e eles estão identificados em Grupos de A a Z. Cada série tem um subtítulo que é composto pelos trechos dos poemas, sendo geralmente uma afirmação contundente, de alguma forma relacionada com a arte. Os poemas, com a referência bibliográfica completa e o mesmo tamanho do conjunto dos slides originais utilizados para compor a imagem, são apresentados dispostos em caixas acrílicas, ao lado das impressões. 

      O texto tem uma sobriedade e um tamanho precisos, um recato. Ele tem a escala do conjunto dos slides que foram usados para formar as imagens. É para ser lido em silêncio, o que é muito diferente da forma como você vê a imagem que corresponde a ele, que é uma imagem preta enorme. Ele é pequenininho, quase como um segundo momento da mesma coisa (RENNÓ apud SCHENKEL, 2011, p. 190). 

      Se os poemas indicam pistas ao espectador, também deixam em aberto as interpretações e as relações, principalmente porque o resultado do trabalho de sobreposição cria figuras opacas, nas quais predominam tons escuros, não havendo definições claras das imagens originais utilizadas. A opacidade da imagem em tamanho grande, em contraste com os poemas em tamanho reduzido, é mais um artifício que a artista usa para desafiar o espectador, chamar a sua atenção, promover a imaginação. 

      As imagens não têm a menor relação com os textos, são um mero pretexto para você procurar. [...] É um emaranhado de imagens no preto, então você pode achar ali o que quiser, o que você procurar. E às vezes você não vai achar nada, vai olhar e pensar: nossa, eu não vi nada daquilo. É para te provocar. Agora, os textos foram escolhidos a dedo, porque, na verdade, todos têm a ver com a coisa do nada, do vazio, do singelo, que é uma coisa característica do Manoel, essa construção a partir do ínfimo, da qual ele fala. 

      [...] O que é bom para o lixo, é bom para a poesia. Começou daí. Como eu estava lidando com esse território de imagens que não serviam para nada hoje em dia, que as pessoas jogam fora, eu tentava resgatar a poesia que tinha naquilo, porque elas já não cumpriam função nenhuma. O hábito de celebrar o ver imagens, compartilhar ao mesmo tempo em que você vê, que era o grande barato das sessões de slide, hoje você não tem mais (RENNÓ apud SCHENKEL, 2011, p. 192). 

      Esses slides funcionaram em determinado momento como um rito social, utilizando a expressão de Susan Sontag (2004); eram produzidos para ser vistos em conjunto e compartilhados; por meio deles foram construídas crônicas visuais de indivíduos, da família, de determinados grupos, de viagens, etc. A artista junta os restos de memórias de diversas pessoas em diferentes lugares e aponta para uma nova construção, a partir da observação de cada um. Ao utilizar slides sobrepostos, ela está utilizando imagens diversas, que juntas, acabam formando uma nova, porém mantendo a sua condição fragmentária. Seria como se a aura (nos termos de Benjamin), ou o punctum (de Barthes), que um dia existiu de alguma maneira para alguém naquelas fotografias, se reconfigurasse em diversas e múltiplas outras possibilidades, dependendo da experiência pessoal e de vida dos diferentes espectadores. Conforme Camila Schenkel (2011, p. 156), Rosângela Rennó 

      [...] trabalha com a perda da função social da fotografia que se torna uma superfície opaca, ao se distanciar de seu referente, deslocar-se de um álbum, perder-se de seu dono, escapar de um arquivo. Rennó sublinha essa tendência da fotografia à deriva e ao desvio de seus usos originais, ao associar essas imagens a novos textos e vozes, dando-lhes novos rumos, ora mais ficcionais, ora mais críticos. 

      Rennó nos mostra que aquelas imagens aparentemente mortas e apagadas estavam na verdade adormecidas, à espera de olhares que possam, não apenas vê-las, mas observá-las e reinterpretá-las. O que parecia invisível se torna novamente visível, embora de maneira diferente. Há uma relação entre a imperfeição da própria fotografia e da memória, no sentido em que ambas são fragmentárias e não podem dar conta de uma totalidade, de uma verdade, de uma certeza. 


      O (RE)ENCANTAMENTO DO OLHAR 

      Vejamos este trecho de um poema de Manoel de Barros (4). 

      Não tenho bens de acontecimentos.
      O que não sei fazer desconto nas palavras.                                                                                           Entesouro frases. Por exemplo:                                                                                                                     – Imagens são palavras que nos faltaram.
          – Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
          – Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
      Ai frases de pensar!
      Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
      Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)                                                                       Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
      Outras de palavras.                                                                                                                                     Poetas e tontos se compõem com palavras. 

      Percebe-se, pela citação acima, como a sua poesia é instigante, desafiadora e original. Entre as características do universo literário do poeta, sobressai a reinvenção do cotidiano, a partir do lixo, desviado do sentido usual e o desejo de explorar o não sabido. Apesar de lidar com temas da natureza, da região pantaneira propriamente dita, portanto regional, o seu fazer poético possui uma dimensão global, por contemplar problemas inerentes à condição humana. Ele não utiliza as formas tradicionais de representar a realidade, aposta no trabalho poético de desconstruir o mundo e reconstruí-lo por meio da imaginação, dando espaço para a interpretação, para o sonho, para o delírio, num processo onde o leitor não é apenas um receptor passivo, mas um construtor participativo. 

      É impossível não ver semelhanças entre a poesia de Manoel de Barros e o trabalho artístico de Rosângela Rennó que estamos tratando neste texto. Ambos tomam sua matéria-prima do lixo e constroem universos poéticos que poderíamos chamar de mágicos, cada um à sua maneira. Os dois tratam de questões da contemporaneidade, do caráter multicultural das sociedades contemporâneas, das novas articulações entre o local e o global, não mais polarizados, mas como uma rede de relações de troca, onde as identidades culturais não são mais fixas, mas estão em constante reinvenção. 

      No caso específico de Rosângela Rennó, se em alguns trabalhos anteriores foi privilegiada a noção ou definição de uma identidade – como nas séries Cicatriz (1996) e Vulgo (1998), por exemplo – em Matéria de Poesia, a artista constrói um caleidoscópio de memórias e identidades diversas e as junta, possibilitando um cruzamento e um encontro que não seria possível na realidade. Seu trabalho tem como resultado um aspecto onírico, de sonho, que mistura realidades passadas, borradas, que não existem mais, com uma ficção que não é dada pela artista, mas construída pelo olhar do espectador. 

      Matéria de Poesia é a colocação em prática da afirmação de Rennó que diz que “a fotografia sempre cria um mundo paralelo” (RENNÓ, 2003, p. 21) e também reafirma a possibilidade de que a arte possa despertar emoções e sentimentos. “Muitas vezes, o trabalho pode ser melodramático e provocar lágrimas. Por que não? Eu gosto disso, eu preciso disso e sinto falta disso nas práticas contemporâneas.” (RENNÓ, 2003, p. 17). 

      Pode-se afirmar ainda que Rosângela Rennó atua como artista pensando a fotografia de forma multifacetada, como na proposição de André Rouillé (2009, p. 449): “[...] no plural, entrecruzando as imagens, as práticas, os usos, as formas, os territórios, e suas variações contínuas”. Isso só é possível a partir do declínio da utilidade prática da fotografia e também devido à grande quantidade de sua produção, permitindo que seja resgatada através de um olhar mais livre e crítico. 

      Em praticamente todo o seu trabalho, durante sua trajetória e, particularmente, neste que é tema do presente artigo, Rennó problematiza o entendimento da fotografia como duplicação do real, liberando-a da representação e da imitação. O que mais parece interessá-la é a possibilidade de tornar visível o que, em algum momento, perdeu o seu valor, suas funções e significados iniciais, num processo que, mesmo afirmando e demonstrando em princípio a sua opacidade, permite a abertura para novas e diversas interpretações. Em Matéria de Poesia, a artista nos mostra que é possível reaprender a ver e nos reencantarmos com fotografias e imagens, mesmo na contemporaneidade. 

          1.    Nascida em Belo Horizonte (MG), em 1962, a artista plástica Rosângela Rennó formou-se em Arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1986, e em Artes Plásticas pela Escola Guignard, em 1987. Em 1997, recebeu o título de doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA – USP). Radicada no Rio de Janeiro desde o final dos anos 80, a artista trabalha com apropriações de fotografias, produz vídeos e instalações. As primeiras obras de Rennó remetem à memória pessoal, familiar, íntima, a partir de fotografias da família. O hábito de colecionar fotos alheias iniciou-se com os fotogramas encontrados nas lixeiras próximas às salas de montagem na ECA-USP. Rennó passou a vasculhar também os antigos estúdios de retratos do centro do Rio de Janeiro e os chamados mercados de pulgas ao redor do mundo. Essas coleções resultaram em obras como Cerimônia do Adeus (1997 – 2003), Bibliotheca (2002), Menos Valia (2005), entre outras. A artista também busca material em acervos institucionais, como nos arquivos do Museu Penitenciário Paulista, nas séries Cicatriz (1996) e Vulgo (1998); na Biblioteca Nacional com a obra 2005-510117385-5 (2009); no Arquivo Público do Distrito Federal, com Imemorial (1994); nos jornais, como em Atentado ao Poder (1992), Espelho Diário (2001), Arquivo Universal (desde 1992), entre outros trabalhos. 
          2.    A artista, num depoimento a Paulo Herkenhoff (1998, p. 123), diz que optou pela história dos vencidos contra a história dos vencedores. 
          3.    Manoel de Barros nasceu no Beco da Marinha, beira do Rio Cuiabá em 1916; morreu em 2014. Foi advogado, fazendeiro e poeta. Escreveu seu primeiro poema aos 19 anos. É autor de inúmeros livros e ganhador de vários prêmios. Seus poemas se destacam pela temática que envolve a natureza e o cotidiano; pela busca de uma nova linguagem, inventando novas expressões e significados nas palavras; pela criação de neologismos e figuras poéticas a partir do prosaico, do simples, do chulo, do infantil, do lixo e do nada. 
          4.    Trecho do poema Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada, do livro O Guardador de Águas. Disponível em: <http://www. revista.agulha.nom.br/manu.html#retrato>. Acesso em: 20 jun. 2014. 


      ROSSI, Élvio. O que é bom para o lixo é bom para a poesia: uma aproximação com a matéria poética de Rosângela Rennó. In Ícone. Revista Brasileira de História da Arte, v. 1, n. 1, 2015, pp. 8-21.