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projeto terra de José Ninguém, 2021
projeto eaux des colonies, 2020-2021
- eaux des colonies (les origines), 2020-2021
- eaux des colonies (en construction), 2021
aucune bête au monde, 2019
lanterna mágica, 2012
Río-Montevideo, 2011/2016
corpo extranho africano, 2011
menos-valia [leilão], 2010
matéria de poesia, 2008-2013
a última foto, 2006
apagamentos, 2004-2005
experiência de cinema, 2004
corpo da alma, 2003-2009
bibliotheca, 2002
espelho diário, 2001
série vermelha (militares), 2000-2003
cartologia, 2000
vera cruz, 2000
parede cega, 1998-2000
vulgo/texto, 1998
vulgo [alias], 1997-2003
cerimônia do adeus, 1997/2003
cicatriz, 1996/2023
paisagem de casamento, 1996
hipocampo, 1995/1998
imemorial, 1994
atentado ao poder, 1992
duas lições de realismo fantástico, 1991/2015
paz armada, 1990/2021
anti-cinema (fotogramas), 1989
anti-cinema (discos), 1989
- pequena ecologia da imagem, 1988
Rosângela Rennó, a filosofia da instituição fotográfica
Rosângela Rennó. The philosophy of the photographic institution Na Bibliotheca, a fotografia de turista, viajante ou emigrante cede espaço à ideia de circulação da fotografia da vida privada. A viagem e a sorte dos álbuns, sob a lógica da artista, expõem o caráter mutante das totalizações territoriais e das fronteiras na modernidade e dos deslocamentos de indivíduos e grupos. ABibliotheca constitui um locus de reunião onde as diferenças se ajuntam. Homi Bhabha evoca que num momento de dispersão da gente “na nação dos outros”, ocorre “the gatheting of exiles and emigrés on the edge of the ‘foreign’; gathering at the frontiers; [...] gathering of the past in a ritual of revival; gathering of the present” (1). O vertiginoso fluxo fotográfico global encontra na Bibliotheca a perfeita metáfora da modernidade líquida. A diáspora da fotografia interessa a Rennó como dispersão do simbólico em processo entrópico de assimbolia. A circulação desses álbuns e grupos de slides por sebos e mercado de pulgas é um sintoma da imersão da fotografia no fluxo do capitalismo contemporâneo. Se Zygmunt Bauman adverte que na “sociedade líquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades” (2). Na cartografia líquida da Bibliotheca, os álbuns seriam mensagens de náufragos da memória.
Rennó enfrenta a violência contra a fotografia, onde ela é referente do homem comum. Em que ponto, as fotografias do cotidiano se tornaram descartáveis num rito antropoêmico da memória, por qualquer que seja o motivo, da penúria ao desuso? Desgarrados de seu universo afetivo privado, esses álbuns adquirem a condição de valor de troca quando ultrapassam a fronteira do doméstico. Oferecidos no mercado, os álbuns – e seu conteúdo – se tornam estrangeiros a si mesmos: a natureza indéxica da fotografia toma um sentido relacional na economia política de Rennó. […]
1. The location of culture. Nova York, Routledge, 1997, p. 139.
2. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 2007, p. 7.
HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó, a filosofia da instituição fotográfica (excerto de texto). In Artes Mundi 3. Cardiff: Artes Mundi Prize Limited, 2008, pp. 76-83.
In Bibliotheca, the appropriation of tourist, traveler or emigrant’s photos yields space to the idea of economic circulation of photography from private life. The journey and the fate of the albums, in the logic of the artist, expose the mutating character of the territorial totalizations by boundaries, the frontiers of modernity and human displacements. Bibliotheca constitutes a meeting place where differences gather together. In The location of culture, Homi Bhabha evokes that the dispersion of people “in the nation others”, brings “the gathering of exiles and émigrés on the edge of the ‘foreign’; gathering at the frontiers; [...] gathering of the past in a ritual of revival; gathering of the present” (1). The vertiginous global photographic flux finds in Bibliotheca the perfect metaphor for contemporary liquid modernity. The diaspora of photography interests Rennó as dispersion of the symbolic energy in an entropic process of asymbolia. The circulation of the albums and groups of slides in second-hand book stores and flea markets is a symptom of photography’s immersion in the flow of contemporary capitalism. Zygmunt Bauman warns that in the modern liquid society, individual realizations cannot solidify into permanent possessions because, in the wink of an eye, tangibles turn into intangibles and assets into liabilities (2). In the liquid atlas of Bibliotheca, the albums account for messages of shipwrecked memories.
Rennó confronts the violence against photography, wherever she is the common man’s referent. At what point do photographs of day-to-day life become disposable in an anthropoemic rite of memory, whatever the motive, from penury to disuse? Removed from their private affective universe, these albums gain the condition of exchange value when taken beyond the domestic boundaries. Offered on the market, the albums – and their content – become foreign to themselves. Then, the indexical nature of the photograph takes on a relational meaning in Rennó’s political economy. [...]
1. The location of culture. New York, Routledge, 1997, p. 139.
2. Vida líquida. Translation. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro, Zahar Editor, 2007, p. 7.
HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó. The philosophy of the photographic institution (text excerpt). In Artes Mundi 3. Cardiff: Artes Mundi Prize Limited, 2008, pp. 76-83.
Texto completo
Bibliotheca: ou das possíveis estratégias da memória
Sempre colecionei fotos perdidas; nelas há uma enorme reserva de recordações. Vê esse menino nessa velha foto de família? Voltou da Primeira Guerra Mundial mentalmente transtornado... A foto, claro, é de antes, de quando não sabia o que iria suceder-lhe.
W.B. Sebald
Da obra
Em 1992, Rosângela Rennó comprou, num mercado de pulgas em Bruxelas, um conjunto de seis caixas de slides completas. Não sabia que essa compra caprichosa seria o começo de uma obsessão: a procura tenaz por velhos álbuns de fotos. Pouco a pouco, as aquisições, sempre em brechós, foram se multiplicando com a colaboração de amigos e conhecidos que se dispuseram a aumentar a coleção. Durante dez anos, aqueles álbuns postergados proliferaram no estúdio da artista, cobrindo mesas, abarrotando prateleiras.
No Rio de Janeiro, em 2002, esse material foi organizado por Rennó para se constituir, quiçá, em sua obra mais ambiciosa: Bibliotheca.
A grafia latina do título aponta, ironicamente, para uma obra antiga. Em Bizâncio, no século IX da nossa era, Fócio, que depois seria patriarca de Constantinopla, compilou uma antologia que chamou Bibliotheca ou Myriobiblion. A obra consiste, de acordo com o subtítulo, no Registro e enumeração dos livros lidos por nós, 279 em número, dos quais nosso querido irmão Tarásio, deseja ter um resumo.1
Na Bibliotheca de Fócio, os resumos seguem a evocação da memória do autor. Não há hierarquia, nem sequer a intenção de agrupá-los por assunto ou por ordem cronológica. É importante, porém, destacar que o afeto e a cumplicidade intelectual são os motores desse empreendimento, pois Fócio organiza Bibliotheca atendendo ao pedido do irmão, que desejava conhecer os livros lidos e discutidos durante sua ausência. A antologia nasce, assim, a partir dessa “dolorosa separação”.2
A obra de Fócio, ditada pelo amor fraterno, transforma-se, mais tarde num importante repositório de livros perdidos para sempre.
A Bibliotheca de Rosângela Rennó, construída pelo obscuro amor às imagens, almeja ser um repositório das fotografias perdidas para sempre. A partir dela, nos é possível perceber o fluxo abrumador de fotos vernaculares que são produzidas, arquivadas e descartadas continuamente.
A obra, complexa e dispersa, consiste de uma instalação e um livro de artista. Instalação e livro não convivem no mesmo espaço nem no mesmo tempo. O livro, publicado por uma editora espanhola, pode ser comprado ou consultado em bibliotecas.3 A instalação, apenas contemplada em fotos ou enquanto exibida. Ao ir e vir entre ambos, a experiência do leitor é sempre fragmentária e incompleta, instável como a memória ou como o esquecimento.
Desde seus começos, no final da década de 1980, o trabalho de Rosângela Rennó desliza, ao mesmo tempo, pela elegância formal e pela denúncia social. Através de refinadas estratégias de apropriação, deslocamento e recontextualização, suas obras evocam um acúmulo de sentidos pessoais, sociais e culturais. Referências constantes ao apagamento da identidade, à amnésia social e às memórias familiares ou domésticas ressoam em obras abertas a múltiplas interpretações, nas quais o reconhecimento depende do contexto cultural de cada um. A beleza de uma configuração formal impecável permite que uma voz poética e irônica se faça escutar persuasivamente. Ávidos por contemplar, os espectadores são impulsionados a refletir sobre os assuntos sociais tão delicadamente impregnados em suas obras.
Em Bibliotheca, uma coleção de álbuns de fotos dos finais do século XIX até a década de 1980 é desmontada, editada e remontada para criar uma obra complexa que sinaliza algumas das questões fundamentais da nossa época: o esquecimento generalizado e a necessidade de memória frente às catástrofes e às diásporas do século XX.
Já faz mais de uma década que estamos acostumados a ver, nos jornais ou na televisão, imagens de pessoas que exibem, para quem queira ou possa ver, fotografias de seus entes queridos arrancados do seio da família: a mãe, pedindo por justiça, mostra a foto de sua filha, vítima do terrorismo de Estado, desaparecida em alguma cidade da América Latina; a mulher, desconsolada pela morte do filho adolescente num tiroteio nas favelas do Rio de Janeiro, exibe a imagem de um menino franzino e sorridente; o homem iraquiano brande, ante o fotógrafo estrangeiro, as molduras rebuscadas e, por isso, comoventes que enquadram as fotografias dos seus irmãos, mortos na guerra.
O fato, cada vez mais comum, de exibir publicamente as imagens particulares parece apontar para a dimensão não simbolizável da tragédia, aquela que denuncia seu lado mais obscuro e perverso.4 O álbum de família, repositório dos relatos mais íntimos e pessoais, é saqueado por seus próprios guardiões porque nele residem os únicos testemunhos concretos das suas perdas.
Ao mostrar para nós, que vivemos em outras terras e temos outras línguas, as fotos dos seus, esses desconhecidos se tornam, subitamente, familiares. Olhamos para eles, como eles olhariam para nós, nas mesmas circunstâncias. Nós nos reconhecemos na situação em que essas fotos foram feitas: no grupo escolar, na carteira de identidade, no colo da mãe, na festa de aniversário, nas férias. Essas fotografias são provas de existência que resistem a se incorporar ao campo da representação, pois emergem irrefutáveis, como espelhos do real, detentoras privilegiadas dessa única verdade possível.
Ao reconfigurar os álbuns perdidos, Rosângela Rennó realiza uma operação similar. Apropria-se das memórias dos outros e as levanta, como espelhos, para que nelas possamos ver a nós mesmos.
Da Bibliotheca
Na instalação Bibliotheca, um conjunto de 37 mesas/vitrines contém os cem álbuns de família, viagens e coleções de diapositivos que Rennó colecionou ao longo de dez anos. Um mapa-múndi, um arquivo e uma foto suplementam a obra.
As vitrines são diferentes das que costumamos encontrar nos museus: o que se vê na parte superior das mesas é apenas uma reprodução fiel, em escala 1:1, do conteúdo do pequeno móvel envidraçado. Os álbuns e as caixas de diapositivos são apenas entrevistos através das laterais de vidro.
A artista criou um código de cores para o fundo e a estrutura das mesas, em função da origem das imagens e do lugar de aquisição do objeto. Assim, a agrupação das vitrines, com seus álbuns e suas estruturas coloridas, cria uma nova cartografia, o mapa de um mundo nômade, atravessado por navegações e regressos.
O planisfério mostra o código de cores: vermelho para a Europa, verde para a Oceania, marrom para a Ásia, laranja para a África, azul-escuro para a América do Norte e Central e azul-claro para a América do Sul. Uma centena de alfinetes numerados, da cor correspondente ao continente de origem do álbum, foram fincados nas cidades onde cada um foi adquirido.
No pequeno arquivo de aço negro de duas gavetas conservam-se as fichas que descrevem os álbuns. Em cada uma delas estão registradas as informações sobre o conteúdo de cada um deles. A autora criou também, para cada coleção, um pequeno relato que surgiu a partir da observação dos grupos de imagens conservadas e do modo como foram arquivadas.
Perto do arquivo, uma fotografia de duas faces reproduz a frente e o verso de uma estante que parece conter uma possível bibliografia do trabalho. Em Restante, se alinham livros sobre arquivo, biblioteca, olvido, memória, museu, citação, fotografia vernacular, álbuns de família.
No livro de artista Bibliotheca - que não está na galeria, mas que pode ser adquirido em livrarias ou consultado em bibliotecas - estão reunidas cerca de 350 fotografias que pertencem aos cem álbuns colecionados e fechados para sempre. O livro-objeto, cujo pequeno tamanho pretende preservar o caráter intimista da relação entre o espectador e a imagem vernacular e cujo formato horizontal remete ao dos álbuns convencionais, é, também, uma referência ao livro homônimo de Fócio e se relaciona de imediato com o conteúdo narrativo dos álbuns que jamais serão abertos novamente.
Do colecionador
.
.. para o colecionador [...] a posse é a mais íntima relação que se pode ter com as coisas: não que elas estejam vivas dentro dele; é ele que vive dentro delas.
- Walter Benjamin
- Walter Benjamin
A frase enigmática “Animais (pássaros, formigas), crianças e homens velhos como colecionadores”, localizada no arquivo “H” do Passagen-Werk de Walter Benjamin, parece sugerir um certo biologismo, um impulso primordial de colecionar, que é logo desmentido pelo autor. Porque para Benjamin - ele mesmo colecionador -, cada simples objeto dentro da coleção é tão pleno de sentidos que se transforma numa soma enciclopédica do conhecimento de sua época.5
O colecionador é um ser que mantém uma relação muito misteriosa com os objetos dos quais não prioriza a serventia, “mas que os estuda e os ama como o palco, como o cenário de seu destino”.6 Intérpretes do acaso, os colecionadores olham através das coisas para um passado remoto e retêm o poder de se apossar de algo sem valor e de transformá-lo numa peça valiosa, pelo menos para eles. Essa operação lhes possibilitaria desvelar o significado secreto dos objetos. Colecionar, deste ponto de vista, seria uma forma de exercer a memória prática e ativa e a mais convincente das manifestações profanas de proximidade e presença.7
Porque cada objeto adquirido é ligado a um lugar e a uma data - os de sua incorporação na série -, toda coleção é também um diário, um diário de viagens, mas também um diário de sentimentos e de estados de ânimo, dessa obscura mania que nos leva a organizar o fluir da vida através de uma série de objetos que tentamos resgatar do esquecimento.7
De certo ponto de vista, poderíamos dizer que Rosângela Rennó opera como uma colecionadora. A artista trabalha com as sobras da cultura - fotogramas descartados, arquivos de fotógrafos populares, arquivos penitenciários, álbuns de família esquecidos, lembranças de viagens extraviadas, notícias irrelevantes da crônica social ou policial. A obscura pulsão arquivista que a obriga a reunir e reorganizar múltiplas coleções - de álbuns, de fotos, de textos - parece obedecer à necessidade de deter o correr da própria vida e das próprias imagens, numa série de momentos arrebatados à dispersão no comum esquecimento ou à dissolução na amnésia social.
Em Bibliotheca, Rennó põe em marcha seu vício de colecionadora profissional e nos demonstra os complexos pactos que mantém com a memória. Suas estratégias de exibição e montagem recortam, fragmentam e editam o mais heterogêneo: de um luxuoso álbum do século XIX às vulgares capas de plástico das lojas de fotografia instantânea, de uma coleção de daguerreótipos a caixas de slides da década de 1960. Nesses álbuns sucedem-se caoticamente imagens de desfiles militares, cerimônias de casamento, uma manhã na praia, interiores vazios: os ritos do amor, da loucura, da guerra, as viagens e os regressos, o nascimento e a morte.
Na instalação, a coleção é escamoteada - oculta sob sua imagem plastificada - ou relatada - nas fichas do arquivo. No livro, a artista anula os códigos narrativos preexistentes e, ao destacar as imagens dos seus lugares de origem e remontá-las em uma nova coleção, propõe a invenção de novos sistemas, já que, através da edição dos álbuns ou das imagens, nem sequer nos é permitida a leitura cronológica.
Diante da instalação, avistamos, repetidamente, uma visão fantasmagórica que se mostra e se oculta. A narrativa se despedaça e estamos impedidos de atravessar os vazios; a imagem pontual se concentra em sua máxima intensidade e só nos é permitido ver, na aparente desordem dos signos, uma enumeração infinita de detalhes.
Do álbum de fotos
Não há nenhuma biblioteca viva que não abrigue, em forma de livro, um número de criaturas das regiões fronteiriças. Não precisam ser álbuns de colar ou de família, nem cadernos de autógrafos ou textos religiosos...
- Walter Benjamin
- Walter Benjamin
A palavra latina ‘álbum’ quer dizer ‘branco’ e, entre os antigos romanos, aludia à tábua - em branco -, onde se faziam as transcrições, para serem expostas à leitura pública, frases comemorativas, editais dos pretores, anúncios. Mais tarde passou a designar um livro em branco, destinado ao registro de pensamentos, notas pessoais, poesias, autógrafos, trechos de música, impressões de viagem e, por fim, um livro de folhas de cartolina ou de papel grosso, às vezes luxuosamente encadernado, próprio para colar fotografias ou cartões-postais.
Walter Benjamin o evoca:
“
...os álbuns fotográficos. Eles podiam ser encontrados nos lugares mais glaciais da casa, em consoles ou ‘guéridons’, nas salas de visitas - grandes volumes encadernados em couro, com horríveis fechos de metal, e as páginas com margens douradas, com a espessura de um dedo, nas quais apareciam figuras grotescamente vestidas ou cobertas de rendas.9
Para o filósofo, o álbum se constitui como uma soma da memória da burguesia do século XIX, uma memória estática e, sobretudo, falsificada. O costume de colecionar fotos em álbuns - assinala - surge na mesma época em que o hábito do retoque começa a generalizar-se e o gosto experimenta uma súbita decadência.10 Os fotógrafos, que se contentavam com dispositivos para apoiar a cabeça ou os joelhos, começam a utilizar outros acessórios artísticos: colunas, cortinas, tapeçarias, cavaletes, palmeiras, grandes telas pintadas - simulacros da ficção.
Ainda hoje, em alguns lugares do mundo, o estúdio do fotógrafo, um espaço ambíguo de produção e de representação, imita o salão da burguesia ou inventa paisagens bucólicas de riachos serpenteantes e neves pintadas. A foto, posada nesse cenário kitsch, reproduz uma cena teatral11 vivida deliberadamente em um lugar fictício, para um público determinado. O álbum abrigará essas representações, que serão atualizadas cada vez que o narrador o abrir e relatar suas histórias.
Suas páginas entesouram as imagens de pessoas em suas comemorações mais particulares, cenas íntimas da vida privada: nascimento, batismo, primeira comunhão, casamento; um menino em seu berço, o primeiro dia de aula, a família na praia ou na montanha, pais e filhos, avós e netos, almoços ou cenas em torno da mesa, piqueniques, festas, a construção da casa, o baile de carnaval, o navio, a viagem, o exílio, o regresso.
Uma narrativa por imagens se desfaz entre as páginas do álbum, grossas páginas marrom-escuro ou cinzentas, entre as que se pousava a delicadeza de um papel de seda com relevos de teias de aranhas, de ondas ou de pequenas estrelas... Dentro dele não somente as fotos acumulam-se: há cartões-postais, bilhetes, passagens de trem, recibos de hotel, recortes de jornais e também rastros de corpos: a impressão da planta dos pés dos recém-nascidos, dentes de leite, uma mecha de cabelo cortado presa por uma fita desbotada... Uma voz - em geral feminina - conta as histórias escondidas entre suas páginas. Avós, mães, tias, irmãs mais velhas atualizam um relato que vai sendo pontuado através dessas imagens e desses objetos. O romance familiar, que se condensa nas velhas fotos, se dissemina e se adensa.
Para Bourdieu, o álbum de família expressa o essencial da memória social. Não há nada mais parecido com a introspectiva busca do tempo perdido do que esses arquivos de fotos familiares com seus comentários, a peça principal no ritual de integração a que a família submete seus novos membros. As imagens do passado, postas em ordem cronológica - a ordem lógica da memória social -, evocam e comunicam memórias de eventos que devem ser preservados porque o grupo os vê como um fator de unificação. O álbum de família tem toda a claridade de uma tumba fielmente visitada.12
Se o álbum é, a maior parte das vezes, organizado cronologicamente, as narrativas quase nunca o são. Cada vez que alguém abre o álbum, o faz em busca de uma determinada imagem - o aniversário de 15 anos da menina, o batismo do menino, o casamento - e, depois, vai avançando à deriva segundo a evocação e as recordações. Pulam-se páginas, volta-se atrás. A história vai sendo contada lançando pontes entre os vazios e as falhas, as do álbum e as da memória, porque o álbum demonstra aquilo que já aconteceu, reforça aquilo que está claro, repete o que todos sabem: que a viagem foi inesquecível, que o casamento foi luxuoso, que o menino é muito bonito, que a menina dança balé. A novela pessoal ou familiar que se inscreve nas páginas do álbum trabalha apenas com resíduos, fragmentos de paisagens e de acontecimentos, retratos desfocados que a grande maré da vida deixou sobre a praia. Todo o tempo perdido.
A ampliação do espaço autobiográfico, da memória e do testemunho, não só no campo teórico, mas também no da criação literária e artística marca os últimos anos do século XX. Registrar nossas histórias individuais e coletivas, parece ser o único recurso possível para que possamos criar mitos fundadores que substituam nossos relatos desfocados, nossas identidades falsas. A fotografia, com sua enganosa ilusão de veracidade, perfila-se como o meio mais adequado para atualizar a própria fábula pessoal e propagá-la no interminável presente da arte. A foto extraída do álbum de família configura-se como o arquivo mais enfático e mais próximo de nossa identidade pessoal, geracional e familiar.
Das vitrines
Basta observar um colecionador manuseando os objetos em seu mostruário de vidro. Mal os segura em suas mãos, parece inspirado a olhar através deles para os seus passados remotos.
- Walter Benjamin
- Walter Benjamin
Impossível manusear os objetos nas vitrines de Bibliotheca. O que elas exibem sob o vidro é uma foto em tamanho natural do seu conteúdo. Os belos álbuns de couro ou veludo, as velhas caixas de diapositivos, os pequenos e vulgares álbuns de lojas fotográficas, os maços de fotos amarradas com barbante são vistos, apenas, através das laterais de envidraçadas.
Para a artista, este procedimento, ao impedir a experiência da coisa e oferecer plenamente só uma imagem brilhante e distanciada, profana pela última vez o que já foi dessacralizado e, ao mesmo tempo, propõe uma discussão sobre o papel do museu na cultura de massas.
A operação de Rennó parece também recusar aquele excesso de sentimentalismo que emana dos objetos do nosso passado recente. Os álbuns com suas fotos estão ali, mas se quisermos vê-los, deveremos fazer um esforço. Imagem e referente coexistem, paralelos e próximos, no mesmo espaço sem nunca se encontrarem, sem nunca poderem ser contemplados simultaneamente.
Um código de cores rege a organização das vitrines metálicas. As cores que fazem referencia aos continentes servem de fundo às fotos das coleções e à estrutura superior das mesas. Assim, a vitrine 38, cuja estrutura azul-claro indica que seu conteúdo foi comprado na América do Sul, exibe, sobre fundo laranja, três álbuns com fotos feitas na África.
Na vitrine 32, o fundo e a estrutura azul-claro estão a nos dizer que a procedência e o local da venda dos álbuns é o mesmo: América do Sul. Lado a lado, sobre o azul impecável, um álbum aparentemente dos anos 1950, cuja capa revestida de plástico transparente ostenta um desenho de orquídeas, convive com outro, do final do século XIX, com elegantes porta-retratos, forrados em veludo de seda grená embutidos na capa.
As vitrines agrupam-se em ilhas de três ou quatro e, de forma enigmática, traçam um dos possíveis mapas da nossa época. Nesses estojos coloridos, sob essas fotos brilhantes, estão encerradas, silenciadas e cegas para sempre centenas de histórias individuais: nascimentos e mortes; batismos, comunhões e crismas; namoros e casamentos; formaturas, festas e viagens. A calma das paisagens e o fervilhar das cidades, os rostos indecifráveis dos desconhecidos, a casa paterna, o país distante, a nova pátria.
Do arquivo
Na prática, se há uma contrapartida da desordem de uma biblioteca, seria a ordenação de seu catálogo.
- Walter Benjamin
- Walter Benjamin
Na galeria, o pequeno arquivo plano passa quase despercebido. Nas suas duas gavetas estão depositadas as fichas que descrevem cada um dos álbuns. Nelas enumeram-se as características de cada coleção: unitária ou múltipla, formato, capa, tipo e cor do papel, número de páginas, cantoneiras, entrefolhamento de seda, preenchimento completo ou incompleto, quantidade e formato das fotos. Registram-se, ainda, os locais de procedência e destino das imagens, a existência ou não de inscrições textuais, se se trata de fotos ou slides, o número de ordem do álbum, a vitrine na qual ele se encontra.
O mais comovente do trabalho, porém, reside na pequena narrativa, que sob as rubricas “Assunto” e “Inscrições/Textos” descreve o conteúdo de cada coleção. Nelas, através de uma linguagem aparentemente objetiva, a artista alinhava as minúsculas histórias escondidas em cada álbum. A ficha 26, por exemplo, apresenta um álbum comprado na feira de San Telmo, em Buenos Aires. A peça, cujas capas rígidas revestidas em couro ostentam a bandeira de Israel e a estrela-de-davi ao lado de outros símbolos judaicos, tinha sido desmontada. As imagens foram destacadas do papel cinza claro, deixando marcas no verso das fotografias. Ali se lê:
Assunto
As fotos foram arrancadas do álbum e separadas em 3 “grupos”, unidos, apenas, com um elástico, e narram a história de um sapateiro pobre, judeu alemão que após fugir da Alemanha nazista encontrou a prosperidade como proprietário de uma sapataria em Buenos Aires, ao lado da esposa e dos filhos que chegaram. A história, contada através das fotografias de seu álbum desfeito, é comovente e intraduzível em palavras. Duas imagens simples e poderosas ficam na memória: o Zepelim, muito próximo, com a suástica pintada no leme e o postal em hebraico do navio que trouxe o casal para a América do Sul.
Inscrições / Textos
Não há inscrições sobre as páginas do álbum. As fotografias que se supõe terem sido realizadas na Alemanha apresentam várias inscrições em hebraico. Algumas inscrições em espanhol misturado ao hebraico, no verso das fotografias, sobretudo as que são mais recentes, realizadas na Argentina.
A narrativa elíptica deixa transparecer, entre as lacunas do relato, a história de um dos muitos exílios do século XX. Adivinhamos as imagens escamoteadas: o sapateiro, a esposa, o filho pequeno, a desolada paisagem dos pampas; vemos as imagens escritas: o Zepelim, o navio. Nossa memória nos permite refazer, com fragmentos de imagens outras, os rostos apagados, os sapatos de fivela, o nascimento do filho, a loja pequena na nova pátria.
Na leitura sucessiva das fichas se esboça uma narrativa maior, feita de vazios e deslocamentos, na qual nada está dito por inteiro e que, por isso, avança penosamente através dos interstícios dos seus frágeis encadeamentos. Entre uma história e outra, entre uma ficha e outra, as falhas constroem um espaço de suspensão do qual emergem, desordenados, todos os relatos.
Do mapa
Renovar o mundo velho - eis o impulso mais enraizado do colecionador ao adquirir algo novo...
- Walter Benjamin
- Walter Benjamin
Michel de Certeau afirma que toda narrativa é a narrativa de uma viagem.13 O topos da viagem percorre desde sempre o imaginário ocidental. De Virgílio a Dante, de Marco Polo a Calvino, de Cervantes a Borges, para permanecer apenas na tradição latina, é difícil encontrar um autor que não aborde, de alguma maneira, o tema da viagem. Para Georges Van Der Abbeele, a narrativa, como estrutura linear, determina em si mesma uma viagem; o deslocamento de um ponto inicial até o destino final: uma linha sobre o mapa.14
O motivo literário da viagem atualiza rupturas espaciais e temporais. Deixar o lar em busca de aventuras pressupõe, também, ansiar pelo retorno pois a viagem implica, além de fantasia e mudança, memória, esquecimento, perda, saudade, morte.
O mapa fixado na parede da galeria desenha esses percursos. Sobre um planisfério que exibe na lateral inferior esquerda o código de cores, estão os cem alfinetes já mencionados. Observando com atenção, percebemos que eles são mais numerosos sobre determinadas cidades da América do Sul e da Europa. Nenhum álbum parece ter sido comprado na Ásia e na África, poucos na América do Norte e na Oceania. Sem dúvida, o mapa exibe os roteiros de viagem da artista e de alguns dos seus amigos, nos últimos dez anos. Mas, além de tudo, no embaralhado das cores dos alfinetes, o mapa mostra de maneira muito parcial e também muito aleatória, o trânsito de algumas imagens e de algumas famílias ao longo do século XX.
O conceito de trânsito, central no pensamento de Mario Perniola, supõe uma “experiência de simultaneidade, de disponibilidade e de dilatação do presente que caracteriza a vida contemporânea”.15 Refere-se a um estado de provisoriedade e de indefinição, em que os aspectos estáticos e dinâmicos da vida parecem, paradoxalmente, coincidir.
Os laços com a terra perdida já não serão mais compensados com a esperança de uma terra prometida. De alguma maneira todos carregamos hoje essa consciência de não-pertencimento, de falta de raiz, de alheamento. Por isso, o refugiado e o exilado, aqueles que perderam para sempre o lar, parecem ser as figuras emblemáticas do nosso tempo. Sobre o mapa, cada alfinete colorido sinaliza a história de uma viagem, de uma família, de uma perseguição, de um reencontro, de uma fuga. Uma cartografia de exílios e de regressos pode ser delineada através desses registros aparentemente objetivos.
Da estante
Vocês já ouviram falar de pessoas que adoeceram com a perda de seus livros, de outras
que neste oficio se tornaram criminosas.
- Walter Benjamin
que neste oficio se tornaram criminosas.
- Walter Benjamin
Próxima do arquivo, instalada de maneira perpendicular à parede, uma dupla fotografia mostra a frente e o verso de uma fileira de livros numa prateleira. A foto, que tem por título Restante, não pertence plenamente à Bibliotheca, mas faz parte do grupo de obras que a cercam. Essa existência lateral, marginal, óbvia - afinal, entre todos os objetos é o que mais se aproxima de uma biblioteca - adivinha-se na aparência discreta, quase silenciosa que compartilha com o arquivo. Como um paratexto, nos oferece os protocolos de leitura do texto principal, Bibliotheca.
Na estante, os livros se organizam por assunto: arquivos, biblioteca, esquecimento, memória, museu, citação, fotografia, álbum de família. Ao alinhar obras fundamentais para a compreensão das estratégias museológicas da contemporaneidade, junto de textos de ficção, divulgação e catálogos de arte, a obra faz um sinal de cumplicidade aos leitores contumazes e oferece uma bibliografia ousada e lacunar aos incautos. Mais ainda, Restante, o que restou de uma biblioteca, é, ao mesmo tempo, uma justificativa irônica - entre os livros está a Bibliotheca de Fócio - e uma declaração feroz. Como os álbuns, os livros aparecem fechados, intocáveis, enclausurados em sua imagem brilhante.
Do livro
... toda ordem é precisamente uma situação
oscilante à beira do precipício...
- Walter Benjamin
oscilante à beira do precipício...
- Walter Benjamin
O livro de artista Bibliotheca contém nas suas páginas - suas estantes - apenas fotografias, centenas de fotografias, que se articulam seguindo uma ordem misteriosa.
Antes de clausurar para sempre os álbuns, Rosângela Rennó recortou, de cada um deles, algumas imagens e, com elas, criou um novo arquivo, o livro emblematicamente chamado Bibliotheca. Talvez, a enumeração razoável das imagens que se perderam ao longo do século.
O critério que guiou a seleção foi o de encontrar na foto uma certa estranheza, um ponto cego de sentido que fizesse dessa imagem algo singular e, ao mesmo tempo, múltiplo. Esse ponto, o punctum de Roland Barthes, determinou uma linha com a qual se alinhavaram os relatos fragmentários de cada álbum.
O processo da artista é moroso e complexo: num primeiro momento compra os velhos álbuns esquecidos nos mercados de pulgas. O álbum, que fora em algum momento a narrativa de uma viagem inesquecível, de uma família feliz, de uma vida intensa, foi abandonado no lugar para onde vão as coisas que já não têm utilidade. Ao adquiri-lo, Rennó recupera, discretamente, o valor das memórias sem valor.
O movimento seguinte supõe a lenta contemplação das imagens. Demoradamente, em silêncio, as imagens são interrogadas. Elas contarão a sua história. Por fim, a artista seleciona e refotografa uma quantidade considerável de imagens. Depois, sela para sempre os álbuns. Através dessa operação, a artista devolve às fotografias esquecidas uma visibilidade que lhes estava interditada.
Todas as fotografias do mundo formam um labirinto.16 No centro do labirinto traçado em Bibliotheca se esconde, multiplicadas centenas de vezes, a foto do Jardim de Inverno que Barthes nos ocultou. Aquela foto na qual ele encontrou, para sempre, o rosto perdido de sua mãe. Através dela, o escritor compreende que a mesma devia ser interrogada em relação ao que chamaríamos romanticamente de amor e morte.17 Sempre impregnadas pelo amor ou pela morte, as imagens urdidas pela fotografia são da mesma ordem das que vemos através dos vidros e dos espelhos. Nesse atravessar se instala uma interminável constatação: sendo um acúmulo de instantes inesquecíveis e já esquecidos, as páginas da Bibliotheca, feitas de histórias alheias, nos obrigam, de viés, a reviver a nossa própria história.
Do museu
Museu e mausoléu estão conectados por algo a mais que uma associação fonética. Museus são os túmulos familiares dos trabalhos de arte.
- Adorno
- Adorno
Em 1849, Flaubert escreveu a primeira versão de A tentação de Santo Antonio, a que retomaria em 1856 e em 1872. Em virtude dos seus mecanismos alucinatórios, da interminável progressão de grotescas fantasmagorias, este livro se constitui como o negativo perfeito da prosa discreta, sombria e murmurante do autor de Madame Bovary.18 O texto, uma sucessão de delírios e violências, pesadelos e espectros comoveu seus contemporâneos pela desmedida riqueza de sua fantasia. A Tentação seria, para a literatura, o que as obras de Bosch, Breuguel ou Goya foram para a pintura.
Em Fantasia da biblioteca, Foucault nos adverte que essa obra não é fruto de divagações ou lapsos de imaginação, mas o resultado prodigioso de um apurado trabalho de edição. O filósofo enumera de modo prolixo os livros utilizados por Flaubert na sua pesquisa erudita - a imagem de Diana de Éfeso, por exemplo, com leões em seus ombros e com frutas, flores e estrelas entrelaçadas sobre seu seio e grifos e touros surgindo da boca de um peixe que rodeia firmemente sua cintura é a exata reprodução da prancha 88 do último volume da tradução de Creutzer de Religions de l´Antiquité.19
Percebemos, então, que a região espectral já não se estende pelos domínios da noite ou do sonho da razão. As fantasmagorias, frutos da leitura cuidadosa, da continuada e consciente vigília, residem nas estantes da biblioteca, no rumor das vozes do passado, no exato escandir de suas frases, no acúmulo minucioso dos fatos, na reprodução de reproduções.
A tentação de Santo Antônio pode-se colocar ao lado do Déjeuner sur l´herbe (1863), talvez a primeira tela moderna em que podemos detectar a memória de outras pinturas e de outras tradições pictóricas. Assim como o livro de Flaubert supõe a existência de uma ampla biblioteca, a obra de Manet leva implícito o reconhecimento da nova e substancial relação que as obras de arte estabelecem entre si a partir da existência dos museus de arte.
Num mundo onde os museus começam a surgir, a arte, concebida em constante relação com a memória - Baudelaire fala de uma mnemotécnica do belo -, evoca os seus antecessores para ativar as imagens do passado, transformando-as. A relação inaugural, descrita por Foucault, entre Manet e o museu e Flaubert e a biblioteca, é o início de uma dialética arquivística que alcança, na contemporaneidade, suas consequências mais extremadas.
Para Malraux, essa dialética arquivística proveria meios para rearmar, com os fragmentos dispersos da tradição, uma metatradição global, um museu sem paredes - um museu imaginário - cujo eixo organizador seria a família do homem. Certas formas significativas teriam uma espécie de sobrevida, por isso costumam emergir, uma e outra vez, como espectros do passado. Nesse contexto, o essencial, não se localizaria na intimidade da alma, mas na exterioridade da imagem e da escrita.20
Como muitos trabalhos contemporâneos, Bibliotheca já não pressupõe o museu, nem sequer a biblioteca que lhe dá nome. Bibliotheca, construída com os despojos dos arquivos mais pessoais e mais íntimos, aspira à condição de um novo arquivo, íntimo e público ao mesmo tempo. As memórias fotográficas de pessoas comuns transformam-se nas memórias comuns a todos. Se a arte, hoje mais do que nunca, comporta uma região de sombras na qual se retraem os restos que não se deixam eliminar - o insolúvel, o inquietante, o enigmático -, é nessa zona de penumbra que deve buscar a essência de Bibliotheca. Em suas vitrines/páginas, as imagens perdidas retornam e propagam, para quem queira escutar, que não há uma só história, um só sentido, mas que existem simultaneamente múltiplas histórias, infinitos sentidos.
1. Photius, Biblioteca sine Myriobiblion. p.1. Transcrito por Roger Pearse, Ipswich, UK, 2002. http://www.ccel.org/p/pearse/morefathers/photius_03bibliotheca.htm
2. Idem, p.2.
3. Rennó, Rosângela. Bibliotheca. Barcelona: Gustavo Gilli, 2003.
4. Cf. Silvestri, Graciela. La presencia del ausente. Problemas de representación pública en las artes plásticas. www.bazaramericano.com. e Arfuch, Leonor. Álbum de familia & Arte, memoria y archivo. In Memoria. Antología de Punto de Vista. Buenos Aires: Punto de Vista/ Libronauta, 2001.
5. Benjamin, Walter. Apud Crimp, Douglas. In the museum ruins. Cambridge: The MIT Press, 1995, p.201.
6. Benjamin, Walter. “Desempacotando minha biblioteca”, in Rua de mão única. Obras escolhidas v..2. São Paulo: Brasiliense, 1993, p.228.
7. Benjamin, 1995, p.202.
8. Cf. Calvino, Ítalo. Colección de Arena. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 13 e ss.
9. Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política, in Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas v.1. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 97-98.
10. Benjamin, 1986, p.97-98.
11. Cf. Silva, Armando. Álbum de familia - La imagen de nosotros mismos. Colômbia: Norma, 1998, p.28.
12. Bourdieu, Pierre. Photography. A Middle-brow art. Stanford: Stanford University Press, 2001.p. 31. Tradução da autora.
13. Certeau, Michel de. Apud Van Der Abbeele, Georges. Travel as Methafor: From Montaigne to Rousseau. Minneapolis: University of Minessota Press, 1992, p.xix.
14. op. cit., p.xiii-xxx.
15. Perniola, Mario. Pensando o ritual. Sexualidade, morte, mundo. São Paulo, Nobel, 2000, p.24-25.
16. Barthes, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p.109.
17. Idem, p.110.
18. Cf. Foucault. Michel. “Fantasia of the library”, in Cahiers Renaud-Barrault, n.59, 1967, p.7-30.
19. Idem, p .12.
20. Cf. Malraux, André. The voices of silence. Princeton: Princeton University Press, 1972, p.13-130.
MELENDI, Maria Angélica. Bibliotheca: ou das possíveis estratégias da memória. In RENNÓ, Rosângela. O Arquivo Universal e outros arquivos. São Paulo: Cosac Naify Edições / CCBB, 2003, p. 23-35.
Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda
Even in the clearest of images something unknown remains É uma centena desses álbuns descartados (incluindo várias caixas de diapositivos em variados formatos) que Rosângela Rennó adquiriu em feiras livres, brechós e lojas de antiguidade em cantos diversos e que dispõe na instalação Bibliotheca [2002]. Por meio do confronto visual com essa coleção de arquivos – supostos veículos de esquecimento do que é sutil e incerto –, paradoxalmente busca reconhecer, na fotografia, a função também de ativar a lembrança movente de um fato, e não somente a de admitir, pela certeza que uma imagem trai, sua inequívoca ocorrência passada. A uma primeira visada, porém – em estratégia que só realça a posição que advoga –, a apresentação do trabalho chega a frustrar o olhar, posto que sobre pequenas mesas reunidas em grupos se encontram não os álbuns coletados, mas as fotografias de suas capas impressas em brilhantes superfícies de acrílico, cada uma acompanhada de um número de ordenação, desde o 1 até o 100. Seus referentes – os próprios objetos feitos para colecionar imagens – estão imediatamente abaixo de tais coberturas, aprisionados em paredes translúcidas da mesma matéria e fora do pleno alcance da vista. Invioláveis ao tato e somente obliquamente notados pela visão nessa sorte de vitrine em que se encontram lacrados, eles parecem, de pronto, apenas ser provas de que as cópias fotográficas expostas se referem a originais que não podem ser abertos. Essas mesas-vitrines ainda expressam, em cores que cobrem os seus tampos e frisos, uma ordem construída e imposta aos itens ali colocados, de modo semelhante ao que ocorre em qualquer outra biblioteca. Cada um dos álbuns exibidos é classificado, por meio de código cromático aplicado a esses móveis, em função de uma dupla pertença territorial: o continente em que as fotografias neles contidas foram tiradas (são as cores dos tampos que o informam) e o continente onde foram encontrados (fato ensinado pelas cores dos frisos). Sobre mapas-mundi instalados em paredes próximas a cada agrupamento de quatro ou cinco dessas mesas-vitrines, alfinetes que trazem impressos em suas cabeças os números de registro dos álbuns ali dispostos e as cores que identificam o seu lugar de origem são afixados, precisando o seu correspondente lugar de destino (3).
Ao bloquear o acesso visual às narrativas privadas potencialmente contidas em cada álbum, a artista claramente descose a relação próxima que quaisquer fotografias têm com o lugar e com o momento em que foram tiradas, fazendo-as, por esta imposta cegueira, pertencer a um espaço indistinto e a um tempo impreciso. Oculta imagens, portanto, para que, diante apenas de sua evocação indicial, possam estar disponíveis e ser reinventadas, a partir de referências diversas, nas mentes de quem não as pode enxergar. Essa vontade de resgatar um sentido mnemônico para o meio fotográfico que Rosângela Rennó expressa é asseverada, de maneiras diferentes, por dois outros elementos da Bibliotheca. Um deles é uma caixa-arquivo com fichas catalográficas para cada um dos cem álbuns, onde se podem ler descrições de suas características físicas e de seu conteúdo iconográfico (suspeito ou comprovado), além de indicações renovadas sobre a procedência geográfica das imagens que eles encerram e de sua localização quando foram encontrados. Uma vez mais, há aqui o confronto entre o texto e a fotografia como meios diversos de acercar-se de um fato. Mesmo a consulta mais cuidadosa a tais fichas não iguala, entretanto, a experiência de olhar as cenas contidas nos álbuns lacrados a que remetem. Não somente porque o que está nelas escrito é incapaz de descrever por completo mesmo as imagens mais simples, mas também porque o texto, justamente por sua incompletude descritiva, requer a imaginação do leitor para recriá-las, o que faz escorrer, para o campo dessa re-encenação pensada, a rememoração também das histórias que aquele viveu um dia. O que está contido nas fichas situa-se, portanto, simultaneamente aquém e além do poder narrativo das fotografias não vistas.
1. Almeida, Bernardo Pinto de. Imagem da Fotografia. Lisboa, Assírio & Alvim, 1995.
2. O progressivo arquivamento de fotografias em álbuns digitais não altera a natureza dessa inerente disfuncionalidade. Por permitir maior e mais rápido acúmulo irrefletido de imagens, torna-a somente mais ampla ainda.
3. Segundo esse código cromático inventado, vermelho indica Europa, verde a Oceania, marrom a Ásia, laranja a África, azul-escuro a América do Norte e Central e azul-claro a América do Sul. Uma descrição e uma análise detalhadas desse trabalho são feitas em Melendi, Maria Angélica. “Bibliotheca ou das possíveis estratégias da memória”. In Rosângela Rennó, O arquivo universal e outros arquivos. São Paulo, Cosac & Naify, 2003.
ANJOS, Moacir dos. Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda (excerto de texto). In ANJOS, Moacir dos. Crítica. Rio de Janeiro: Automática, 2010, pp. 242-255.
Rosângela Rennó acquired around a hundred of these discarded albums (including various boxes of slides in various formats) from open markets, junk and antiques stores and exhibit them in her installation Bibliotheca [2002] (library). By way of a visual confrontation with this collection of archives—supposed vehicles for forgetting what is subtle and uncertain—she paradoxically seeks to find in photography the function of activating the shifting memory of a fact, and not only admitting, through the certainty that an image brings, its unequivocal past occurrence. At first sight, however—using a strategy that only highlights the position she espouses—the piece frustrates the eye, as it encounters, laid out on small tables arranged in groups, not the albums themselves, but the photographs from their covers printed on brilliant acrylic surfaces, each accompanied by a number from 1 to 100. The objects referred to—the albums for collecting images—can be seen immediately under these covers, enclosed in a transparent case of the same material and partly concealed from view. Unable to touch them and only obliquely visible in the sort of display case in which they are enclosed, they seem only to serve as proof that the photographs on display relate to originals that may not be opened. These display-cases also express, in the colours with which cover them, an order that is constructed and imposed on the articles placed therein, just as in any other library. Each of the albums on display is colour-coded by way of a double territorial belonging: the continent on which the photographs contained in them were actually taken (indicated by the colours on the lid) and the continent on which they were found (indicated by the colours of the friezes). Maps of the world installed on the wall nearby each group of four or five of these display-cases are marked with pins which inform the ultimate destination of the albums exhibited and whose heads bear their catalogue numbers and the colours identifying their place of origin (3).
By blocking visual access to the private narratives probably contained in each album, the artist clearly unstitches the intimate relation that photographs have with the time and place they were taken, making them, through this imposition of blindness, belong to an indistinct place and an imprecise time. She therefore hides images so that only from the way they are catalogued can they be made available and reinvented, on the basis of various references in the minds of the observers who cannot actually see them. This desire to recover a mnemonic sense for photography, which marks Rosângela Rennó’s work, is expressed in different ways by two other components of Bibliotheca. One is a card-index for each of the one hundred albums, in which it is possible to read descriptions of their physical characteristics and (supposed or proven) iconographic content. The cards also reveal more information on the geographical provenance of the images the albums contain and the locality where they were discovered. Once again, there is here a clash between text and photography as different ways of approaching facts. However careful scrutiny of the cards cannot match up to the experience of actually seeing the scenes contained in the sealed albums to which they refer. Not only because what is written in them is impossible to describe completely even in the case of the simplest of images, but also because the text, precisely through its descriptive incompleteness, requires the reader to recreate the images in imagination, which spills over, into the realm of re-enactment in thought, the remembrance of stories that the viewer him or herself has lived through. The content of the index cards, therefore, simultaneously falls short of and goes beyond the narrative power of the unseen photographs. (...)
1. Almeida, Bernardo Pinto de. Imagem da Fotografia. Lisboa, Assírio & Alvim, 1995.
2. The current trend towards digital photo albums does not alter this inherent dysfunctionality. By allowing for a greater and more rapid unreflecting accumulation of images, these make it even more extensive.
3. According to the colour-coding, red represents Europe, green Oceania, brown Asia, orange Africa, dark blue North and Central America, and light-blue South America. A detailed description and analysis of this work can be found in Melendi, Maria Angélica. “Bibliotheca ou das possíveis estratégias da memória”. In Rosângela Rennó, O arquivo universal e outros arquivos. São Paulo, Cosac & Naify, 2003.
ANJOS, Moacir dos. Even in the clearest of images something unknown remains (text excerpt). In ANJOS, Moacir dos. Crítica. Rio de Janeiro: Automática, 2010, pp. 242-255.
Texto completo
You imagine, as does everybody else for that matter, that our organization has for many years been preparing the greatest document centre ever conceived, an archive that will bring together and catalogue everything that is known about every person, animal and thing, by way of a general inventory not only of the present but of the past too, of everything that has ever been since time began, in short a general and simultaneous history of everything, or rather a catalogue of everything moment by moment. And that is indeed what we are working on and we can feel satisfied that the project is well advanced: not only have we already put the contents of the most important libraries of the world, and likewise the archives and museums and newspaper annals of every nation, on our punch cards, but also a great deal of documentation gathered ad hoc, person by person, place by place.... What we are planning to build is a centralized archive of human kind, and we are attempting to store it in the smallest possible space, along the lines of the individual memories in our brains.
Italo Calvino (1)
Italo Calvino (1)
All the world's photographs formed a Labyrinth. I knew that at the center of this Labyrinth I would find nothing but this sole picture, fulfilling Nietzsche's prophecy: "A labyrinthine man never seeks the truth, but only his Ariadne."
Roland Barthes (2)
Roland Barthes (2)
In his short story "World Memory," Italo Calvino uses the fantasy of the total archive as a setting for a thriller in which reputedly neutral practices of archival organization become not only epistemologically biased but also criminal. The Director-who narrates the story to a man who, like the reader, never responds-defies the authority of the archive and its discriminating and classificatory criteria by surreptitiously introducing discarded little things. But what appears to be the beginning of a subversive intervention to diversify the contents of the archive soon becomes a search for power and control over others. Obsessed with his wife's infidelities, the Director decides to modify the archive to erase all memory of her and her past affairs - a plan that involves, among other things, getting rid of her lovers, who include the story's addressee. Thus, the monumental promises of order and memory embodied by the total archive, which will soon be all that is left of humankind, culminates in contradiction, arbitrariness, and the erasure of the listener to the story by the Director. Calvino's text illustrates another aspect of the relationship between the two conflicting forces that rule archival formation. The centrifugal force that erases, destroys, and expels archival matter is not only the result of unavoidable oblivion and error or the impossibility of undifferentiated inclusion but also the outcome of political and ethical decisions. When it comes to society, the archive always has a dark side, which is linked to its potential for discrimination and erasure against marginal or oppressed groups.
Barthes offers a more poetic approach to the madness of the archive, its secret inconsistencies, its opacities, its lacunae. In his view, the apparent chaos of the total photographic archive - all the images in the world - is not an obstacle but rather an opportunity for creative intervention and for the construction of alternative orderings. Once inside the global labyrinth of pictures, Barthes calls for a participatory form of reception that would allow an opening and activation of the archives buried inside the images, mobilizing their potential meanings. The key is to follow Ariadne by collectively weaving new narrative threads instead of focusing on a predetermined destination.
The Brazilian artist and photographer Rosângela Rennó conceives her work at the intersection of these two fictions about the potential uses of the archive. If Barthes is right and all the images in the world form a single labyrinth, Rennó sees herself as an Ariadne who incessantly complicates the terms of the search for the alleged monster at the center of the walled edifice of archival reason by taking unexpected directions, retracing her steps, questioning accepted filing criteria, introducing anomalous matter into the body of the archive, and incessantly and stubbornly deconstructing the dictates of sovereign power. Defying the laws of the archive, she works against the restricting and discriminating practices of the photographic archive in its different social and political configurations as police file, art museum, family album, and scientific data bank.
The focus of Rennó's interventions is in most cases the derelicta of the archive or the museum and everything that the recording apparatus expels or forgets; bad pictures, forgotten files, discarded or damaged photographs, wounded images-in short, visual garbage. Questioning the modernist understanding of photography in terms of authorship and aesthetic and technical innovation, Rennó considers the medium in terms of its production and reception while acknowledging its inherent reproducibility and deceptiveness. In her work, photographs are signs that acquire their meaning and value depending on the context, in relation to the place they occupy within the larger system of social and cultural coding-that is, in relation to the archive.
As is the case in the work of artists and photographers such as Tacita Dean, Joachim Schmid, Susan Meiselas, and Marcelo Brodskv, Rennó's performative and multimedia projects respond to what Hal Foster calls an archival impulse. In archival art, the figure of the artist joins that of the archivist in that his or her point of departure is the collection. The work is archival not only because it draws on formal and informal archives but also because it produces them "in a way that underscores the nature of all archival materials as found yet constructed, factual yet fictive, public yet private” (3). Furthermore, it often arranges these materials according to an archival logic and presents them in a quasi-archival architecture, usually adopting the format of the installation. According to Foster, the archival impulse assumes anomic fragmentation as "a condition not only to represent but to work through, putting forward new orders of affective association, however partial and provisional" (4).
Within this broader context, Rennó chooses to explore and scrutinize what we may call the “afterlife” of photographs - that is, the quiet existence of images that are no longer in use or circulation. To the extent that they no longer move or signify, they are dormant pictures buried in cemeteries of images. Rennó appropriates photographs and photographic artifacts such as albums and negatives that have become obsolete and recycles them by placing them into new signifying arrangements. They come from all sorts of archival formats, including family albums, public archives, newspapers, and professional photographic studios. Once in Rennó's possession, the photographs are manipulated and altered by digital means, by the addition of a pigment, by enlarging or cropping, by altering the saturation of color or manipulating the contrast between shadows and highlights. Her ever-expanding collection is not limited to conventional visual material. Her ongoing project O arquivo universal (1992-) comprises large numbers of narrative texts from newspapers that offer everyday stories centered on the private and public uses of particular photographs. They are seen as textual images in which photographs become material embodiments of memory, evidence, desire, or witnessing. Renno's archival projects unfailingly produce a blurring effect that calls attention to and at the same time complicates the reading of images, stretching the definition of what photography is and what counts as photography.
Rennó's systematic and irreverent appropriation of existing images channels her critical response to the contemporary overproduction and superficial consumption of images that we can no longer see or read. Confronted with the excess of images and an overgrown transnational archive spilling over every aspect of our existences, she stopped taking photographs and decided instead to focus on awakening the optical unconscious of available but discarded images through the construction of counterarchives. Her art is a series of archival actions in which photography functions as a "workplace" - a site of anamnesiac experimentation and critical recontextualization.
Playing with the intersections between the archive and the library, Rennó frequently realizes her works in at least two formats, as installations and as artist's books. This bifurcating procedure helps make visible different forms of spatial organization according to which the archive can alternate between an architectural structure or an album, a public site or a private scene for semiotic traffic. Splitting the work into parallel formats also opens the possibility of different forms of physical interaction and the active decoding of photographic images, which in Rennó's case remain both accessible and unreachable, always framed by layers of replication and material mediation.
Itinerancy is at the core of Rennó's archival impulse. Not only does her main modus operandi consist of putting images into motion while creating new paths for exchange and interpretation, but all her projects involve some form of movement, including flying to foreign countries and cities, visiting archival sites, trading photos with friends and collectors, and tracing particular types of photographic artifacts in flea markets around the world. More than simply obsolete coins of a common visual currency that has unified all subjects within a single global archival network of valuation and desire, her images transcend national and cultural borders, crossing over different mediums and genres and entering new visual configurations.
An archive of archives, Rennó's art not only involves a large number of visual materials from diverse archival formations but also explores their political power in the organization of private and social life by proposing an archaeology of the dominant visual discourses and apparatuses in modern society. By digging in the ruins of the archive, its hidden nooks and neglected accretions, she seeks to recover the photographic traces of the bodies of those who have been consigned to disappear within the hierarchical order of the archive - the infamous men and women whose lives are defined by their subjection to the disciplinary apparatuses of the state. By recovering the images of their obliterated bodies, her archaeological explorations question what institutional photography remembers and forgets, and for what purpose. In doing so, they destabilize the authority of the modern archive as a neutral technology of remembrance. Given the scope of her rewriting project, Rennó's archaeology is by definition a permanently incomplete task, a project always in progress.
Mimicking archival strategies of preservation and classification, Rennó treats her acquired photographic artifacts with new archival taxonomies in order to make visible the ways in which disciplinary institutions make people and their images "disappear." The archival project Vulgo (Alias, 1998-99), for example, consists of digital photographs made from reproductions of neglected glass negatives that Rennó retrieved from São Paulo's Penitentiary Museum in 1998. Taken with the purpose of putting together an inventory of prisoners' innate physical features, such as cowlicks, the original photographs were supposed to record the stigmata that, according to the grammar of phrenology and physiognomy, corroborated social degeneration and a predisposition to crime. By digitally altering the negatives, blowing them up, and coloring the markers of difference that they were intended to expose, Rennó deconstructs the discriminatory logic of police records, thereby seeking to return to the photographed marginal subjects their human singularity by revealing instead their political vulnerability, even while calling attention to the violent mediation of the photographic apparatus and its blind spots. In its conspicuous iterability, the red mark opens the images of the anonymous infamous men to another reading, beyond objectification.
In Bibliotheca (2002-3), the rescuing and restoring of orphaned images operates in the photographic space of bourgeois self-representation and private collecting. The project grew out of another branch of Rennó's archival impulse, her long-standing interest in and persistent quest for old photo albums and private slide collections, which she began to acquire at a flea market in Brussels in 1992. In the installation format, Bibliotheca treats the assembled archival objects as forgotten material artifacts of a scattered collective library. Organized as thirty-seven sealed vitrines containing one hundred albums and slide collections and covered by 1:1 scale digital color photographs of the vitrines' contents, mounted on Plexiglas, it adopts the architectural design of an archaeological exhibition, complete with a small filing cabinet with cards describing each of the objects on display and with a large world map on a wall marking the sites where they were found and gathered before they traveled to Rennó's studio in Brazil.
In its book format, Bibliotheca is organized according to a conceptual association that equates the book with the world. In dialogic opposition to the project O arquivo universal, a collection of fragmentary visual texts without images, the artist's book Bibliotheca is made of visual "quotations" from photo books, whose contents have been taken apart, reshuffled, rearranged, and replicated according to a visual poetics reminiscent of the compositional technique known as the exquisite corpse, practiced by the Surrealists and the Dadaists (5). But instead of relying on the serendipity induced by partial blindness, Rennó promotes a visual poetics that operates according to visible correspondences between ready-made photographic bodies. Since this technique can be applied indefinitely, at least in potentia, Renno's visual compendium could keep expanding forever.
As a book of books, or a photo archive made of smaller photo archives, Bibliotheca belongs to a genealogy of conjectural objects that, like Borges's spherical Aleph, seek to contain the totality of the universe within a single point or singular object. This genealogical connection already is alluded to in the title of the project. The anachronistic use of the Latin term bibliotheca refers to the Portuguese biblioteca (library) but above all quotes the title of an ancient work, Photius's book archive, written in the ninth century, which lists and summarizes all the books read by the patriarch of Constantinople during his brother's absence. Photius's list traces the eclectic contours of a ghostly library, most of whose contents have disappeared, leaving behind only an entry in his records (6). In a similar way, Rennó's archival photographs constitute the shadowy remains of collections of images and the life stories they conveyed, which, detached from the affective ties that made them signify, have become anonymous and meaningless to us. Even if they have not vanished like the patriarch's books, the fact that their language has fallen into oblivion has made them unreadable. Connecting anew the dormant photographs across time and space, Rennó mobilizes their encrypted meanings by creating new signifying threads and paths across the field of representation that run along repeating visual patterns, figures, and motifs. The results are aleatory sequences and visual correspondences that project the old images onto the screen of an anonymous collective memory: a baby sitting on a large chair looks at the camera next to the image of an old man who, by visual contagion, seems to have lived the rest of the baby's life on his behalf; the ruinous image of a newlywed couple posing for the camera in ceremonial attire next to another, more modern newlywed couple looking in their direction, trapped in an impossible time lag; family members unfailingly disciplined to stand for the camera around tables and family pictures; rows of picture IDs of men, women, and children, conspicuous in their seriality, their bodies dwarfed to the size of focused faces; photos of remote places and cities we would like to see; Venice framed repeatedly as a fixed set of tourist sites; bodies of water from unknown familiar places; diving swimmers frozen in midair for eternity; men in uniform forever at war; Asian women in pairs wearing traditional costumes; rainbows over modern cities that look like other modern cities; planes taking off from or landing in nonplaces; windows and mirrors framing a picture world made of reflections…
Leafing through Rennó's album of visual quotations, we experience the foundational paradox that defines the photographic archive, suspended between the domiciliation of the law and the indeterminacy of the image, which is always on the move, protean and resistant to fixation. The camera captures the world, translating everything into a massive repertoire of frozen images and prosthetic traces of what has already been. But the stillness of the archive is just a deceiving mask. It dissimulates the slow and continuous movement and transformation of images, which, silently and actively, keep entering and exiting the archive through its revolving doors.
1. Italo Calvino, "World Memory," in Numbers in the Dark and Other Stories, trans. Tim Parks (New York: Pantheon, 1995), 135-36.
2. Barthes, Camera Lucida, 73.
3. Hal Foster, "An Archival Impulse," October, no. 110 (fall 2004): 5.
4. Ibid., 22. Foster suggests that the archival desire to connect disparate elements and objects may betray a paranoid dimension. Paranoia would be the other side of a utopian ambition, a "desire to turn belatedness into becomingness, to recoup failed visions in art, literature, philosophy, and everyday life into possible scenarios of alternative kinds of social relations, to transform the no-place of the archive into the no-place of a utopia" (ibid.).
5. Based on an old parlor game, the cadavre exquis (exquisite corpse) was a collective collage put together by several people, each of whom would write one or more words or draw an image on a sheet of paper, fold the paper to conceal part of it, and pass it on to the next player for his contribution. This compositional method got its name from the resulting phrase obtained in initial playing among the Surrealists: "Le cadavre / exquis / boira / le vin /nouveau" (The exquisite corpse will drink the young wine).
6. For an insightful and detailed reading of Rennó's Bibliotheca as an apparatus of memory and mnemonic strategies, see María Angélica Melendi's excellent essay "Bibliotheca; or, On the Possible Strategies of Memory," in Rosângela Rennó: Bibliotheca (Barcelona: Gustavo Gili, 2003), 37-49.