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projeto terra de José Ninguém, 2021
projeto eaux des colonies, 2020-2021
- eaux des colonies (les origines), 2020-2021
- eaux des colonies (en construction), 2021
aucune bête au monde, 2019
lanterna mágica, 2012
Río-Montevideo, 2011/2016
corpo extranho africano, 2011
menos-valia [leilão], 2010
matéria de poesia, 2008-2013
a última foto, 2006
apagamentos, 2004-2005
experiência de cinema, 2004
corpo da alma, 2003-2009
bibliotheca, 2002
espelho diário, 2001
série vermelha (militares), 2000-2003
cartologia, 2000
vera cruz, 2000
parede cega, 1998-2000
vulgo/texto, 1998
vulgo [alias], 1997-2003
cerimônia do adeus, 1997/2003
cicatriz, 1996/2023
paisagem de casamento, 1996
hipocampo, 1995/1998
imemorial, 1994
atentado ao poder, 1992
duas lições de realismo fantástico, 1991/2015
paz armada, 1990/2021
anti-cinema (fotogramas), 1989
anti-cinema (discos), 1989
- pequena ecologia da imagem, 1988
Ars Combinandi
Ars CombinandiAs fotos, retiradas por Rosângela Rennó do arquivo da Academia Penitenciária do Estado de São Paulo (ACADEPEN), parecem ter obedecido a uma suposta tentativa de estudo fisionômico ou frenológico. Não havendo um redemoinho igual a outro, esses poderiam constituir-se como traço definitório de uma identidade individual.
O olhar carcerário, que intenta atribuir sentidos e criar categorias, fragmenta, retalha e classifica os indivíduos. Os condenados da sociedade – a ralé – humilhados pelo duplo peso do crime e da culpa, oferecem, à mirada do outro, a nuca vulnerável, quase à espera da lâmina do carrasco. Separadas do corpo, estranhamente anônimas e, ao mesmo tempo, familiares, as cabeças ostentam, no desenho espiralado, o punctum da imagem e do indivíduo. Não foi uma faca de guilhotina que decepou as cabeças, mas uma câmara fotográfica. Através da objetiva da máquina, o poder multiplica seu olhar identificador e o lança, como uma rede, sobre os indivíduos. Rostos de frente e de perfil, impressões digitais, marcas, sinais, cicatrizes, redemoinhos. Tudo é indicio, tudo é índice.
Rennó aponta que o fato de fotografar os redemoinhos seria talvez o ápice da ideia de panóptico. Invisível, o olho do poder submete aos dominados a uma visibilidade total. Não basta o 3x4, não basta o perfil nem as digitais. O indivíduo é fragmentado através do registro de suas mínimas particularidades, que são exibidas e vasculhadas como se a partir delas fosse possível detectar as pulsões mais íntimas e secretas.
No centro da sala, no vídeo-objeto, uma lista de palavras sucede-se ininterruptamente sobre um pequeno vidro retangular despolido. O objeto é pequeno, discreto e seu design permite uma certa flexibilidade de operação. Um suporte dotado de rodinhas, um eixo, que permite modificar a altura do projetor, e uma delicada haste regulável que suspende o despolido na frente da lente permitem às palavras projetadas (back projection) surgir como num sussurro... O aparelho de vídeo, onde gira o fluxo das palavras, está escondido. O restante do mecanismo permanece aparente, assim, o objeto apresenta-se despojado, sem artifícios. A atenção do espectador, porém, fica pressa às letras que se combinam através de um processo de animação digital, numa proliferação ficcional de puros significantes.
Sobre o vidro fosco, as palavras, como nos [antigos] painéis de aeroportos, nos caça níqueis, ou nas antigas caixas registradoras, são geradas pela rotação das letras. Sobre o despolido, as palavras – letras que rodam infinitamente, combinando-se uma e outra vez – enumeram uma lista de alcunhas. No proliferar das palavras projetadas, um apelido de mulher é sinalizado por uma estrelinha que pisca no final da palavra; um nome de gangue cresce e diminui num movimento de zoom. Na trilha sonora, o piscar da estrela – PLIM! – e o ativar do zoom – VOOOOM! ou o estalar de um chicote – interrompem o som baixo e monótono, como de ‘catracas’ girando lentamente, que acompanha a rotação dos signos. A artista usa três diferentes sons de ‘catracas’, as vezes parece que a máquina está dando defeito, as vezes o som se adapta ao ritmo do das palavras girando – diz. Nesses sons, retorna, irônica, a ideia da caça-níqueis ou da caixa registradora. Nessa operação inútil, porém, ninguém será premiado, ninguém receberá o troco.
Abóbora, Dentinho, Lube-lube, Miquimba, que nomes são esses que ocultam próprio? Keko, Café, Babalu, It, como o escamoteiam, o apagam, o corrigem? Onde se localiza a identidade do indivíduo que aceita e assume a negação do seu próprio nome? Malucão, Ricardo Coração de Leão, Ze Maru, Mano Brown... Comando Vermelho, Falange Satánica, Batedores, Conexão Corumbá, Mavoca, Vida Bandida, Young Fla... No arquivo textual de Vulgo [texto], os nomes de gangues, misturados aos apelidos, recolocam e ampliam a questão da identidade e da sobre-nomeação. A gangue, locus privilegiado de fixação e negociação de identidade, opera como o substituto da família, do clã. Dessa maneira, num processo de desidentificação e reidentificação do sujeito, o nome da gangue ocupa o lugar do patronímico extraviado ou renegado.
O nome próprio – nome de batismo e sobrenome – , recebido dos pais, apoia-se levemente sobre a criança: José, Joaquim, Maria da Silva. A caminhada da vida os fará Zezinho do Ouro, Quequé, Batatinha. Não qualquer José da Silva – há tantos – mas aquele, o Zezinho do Ouro. Ao apontar para uma característica do sujeito, o apelido – nome inscrito sobre o nome – é adjetivo. Chocolate, Cafezinho, Pelé e Feijõzinho são, com certeza, negros. Parrudo, Muleta, Dente de Lata, apontam para características muito específicas. Mas, por quais avatares da vida um bandido chega a ser chamado de Abajur (e seu comparsa, Abajurzinho)? Pão-com-Ovo alude a a uma preferência alimentar? Como você imagina Sexta-Feira-Treze? e Zé Florzinha?
A crônica popular, o grupo social ou mesmo a imprensa costumam colar, sobre o nome do marginal, um outro nome, um vulgo; como se fosse necessário apagar, nesse ser à margem, as marcas da estirpe humana. Assim, o apelidado sai do elenco das pessoas comuns para adquirir contornos míticos e excludentes. Um nome outro é inscrito sobre o antigo, uma alcunha que qualifica o sujeito e apaga a inscrição primeira. Assim, o nome metonímico rasura a inscrição do registro civil e recoloca o renomeado numa crônica da infâmia, na qual circulam, lado a lado, Jack the Ripper, Landrú, o Vampiro de Dusserdolf, El Pibe Cabeza, o Bandido da Luz Vermelha, El Ángel de la Muerte, o Motoboy.
Por outro lado, a artista sinala que a alcunha pode ser alterada com facilidade. Num mundo de identidades mutantes, as identidades marginais deslocam-se interminavelmente. Se na carteira de identidade, um número e um nome são associados a uma fotografia, selo imutável e precário que nos identifica como cidadãos, o registro dos vulgos é dinâmico e infinito. Como uma ladainha profana, os atributos proliferam nos arquivos da infâmia. Escolhidos pelos próprios indivíduos ou criados pela comunidade, aderem como um ectoplasma à denominação primeira. Fugindo da polícia ou aumentando suas façanhas, José da Silva pode vir a ser Zezinho do Ouro e depois Zé Pretinho, e depois Zé Maru e Playboy, e Diamante e Sabonete... Na vertigem dos signos, a identidade desliza porque sempre haverá a possibilidade ou a necessidade de uma outra sobrenomeação.
As fotos das cabeças dos presos do arquivo do Carandiru são anônimas. O que pretendia ser um índice de identificação – o redemoinho avermelhado – é um sintoma do extravio da pulsão identificatória. O fracasso da tentativa de categorização torna-se evidente: o lugar onde o pensamento positivista queria achar semelhanças, apresenta-se como uma soma infinita de diferenças.
Em Vulgo [alias], de Rosângela Rennó, as cabeças cortadas, cegas e surdas, testemunham a infinita renovação dos signos que se superpõem e se sucedem. Os possíveis detentores dos apelidos dão as costas. Sem rostos visíveis, sem nomes próprios, só existem na fuga infinita das letras que giram e giram sem parar. Imagens, palavras e sons interagem, nunca plenos, nunca finitos, nunca totais. As alcunhas de traficantes e marginais e os nomes de gangues misturam-se com apelidos de torturadores, rappers e radialistas. Arquivos de imagem, arquivos de texto e arquivos de som operam simultaneamente.
O que está em jogo, novamente, é a rasura do conceito de identidade. O trabalho da artista deixa evidente o fracasso de qualquer tentativa de identificação. Uma sensação de vertigem, assinala Rennó, porque na busca dos dados que definam o Outro, o que se encontra é uma falta, um vazio, uma falha amnésica que impede nomear. No registro obsessivo das particularidades operado através do olho da câmara e do registro dos apelidos, sempre há algo que se perde, sempre há algo que escapa, escamoteado nos interstícios do interminável proliferar de palavras, de imagens e de sons. Objeto conjectural, como aquelas máquinas que pretendiam esgotar todas as possíveis combinações de letras para assim achar o nome secreto do deus, Vulgo [texto] re-encena também um último capítulo da Ars combinandi.
Sendo a arte um dos modos de reflexionar sobre a vida, a condição para a experiência artística é a capacidade que a obra tem de convocar ao espectador para essa reflexão. Na galeria, imagens fixas, palavras cambiantes e sons aleatórios deixam vislumbrar, através das frestas e dos intervalos, a promessa de uma totalidade que resista a irreversível fragmentação da experiência contemporânea..
María Angélica Melendi, 1999.
Photographs, taken by Rosângela Rennó, from the file of Prison Academy of the State of São Paulo [ACADEPEN] seem to have followed an attempt at a physiognomic or phrenologic study. Since no two whirlwinds are the same, they could be the defining feature of individual identity.
The prison gaze, which intends to provide feelings and create categories, fragments, cuts and classifies individuals. Those condemned by society – the scum – humiliated by the double weight of crime and guilt, offer to the look of the other, the vulnerable back of the neck, almost waiting for the executioner’s blade. Separated from the body, strangely anonymous and, at the same time, familiar, the heads show, in their spiraled design, the punctum of the image and the individual. It was not the blade of the guillotine that cut off the heads, but the camera. Through the lens of the machine, power multiplies its identifying look and throws it like a net, over the individuals. Faces facing forward and sideways, fingerprints, marks, signs, scars, whirlwinds. Everything is an indicator, an index.
Rennó shows that the fact of photographing the whirlwinds might be the apex of the idea of panoptic. Invisible, the eye of power submits those dominated, to a total visibility. The small photograph, the profile, the fingerprints are not enough. The individual is fragmented by the registration of his minimal specifics, which are shown and examined as if from them it was possible to detect the most intimate and secret pulsations.
At the center of the room, in the object-video, a list of words follows uninterrupted on a small translucent rectangular glass. The object is small, discreet and its design allows some flexibility in operation. A support with little wheels, an axle which makes it possible to adjust the height of the projector, and a thin adjustable bracket that holds the translucent glass in front of the lens allows the projected words (back projection) to appear as in a whisper... The video machine, where the flow of words runs, is hidden. The rest of the mechanism is visible, therefore, the object appears plain, without artifice. The attention of the spectator, however, is held by the letters which combine through a process of digital animation, in a fictional proliferation of pure signifiers.
On the opaque glass, the words, like [old] panels in airports, on slot machines or the old cash registers, are generated by rotating the letters. On the translucent glass, the words – letters which spin infinitely, combining time and again – list nicknames. In the proliferation of projected words, a woman’s nickname is signaled by a star which flashes at the end of the word; the name of a gang grows and shrinks in a zoom movement. On the sound track, the flash of a star – PLIN! – and the activation of a zoom – VOOOOM! – interrupt the low and monotonous sound, as of a slowly turning turnstiles, which follows the rotation of the signs. The artist uses 12 different turnstile sounds, sometimes it seems the machine is faulty, sometimes the sound adapts to the rhythm of the spinning words – she says. Everything is very fast, in 25 minutes of projection while 500 names are formed, there are various sounds of turnstiles, different acute timbres which follow the flashing of the little stars and the cracking of the two whips while zooming in on the name of the gang. The idea of the slot machine or the cash register returns ironic in these sounds. In this useless operation, however, nobody will be rewarded, nobody will receive change.
Abóbora [Pumpkin], Dentinho [Toothy], Lube-lube, Poleca, what names are these which hide their real name? Keko, Café, Babalú, It, how do they camouflage, hide or correct him? Where is the identity of the individual who accepts and assumes the denial of his own name? Malucão [Big Crazy], Ricardo Coração de Leão [Richard the Lion Heart], Zé Maru, Mano Brown [Brown Bro]... Comando Vermelho [Red Command], Falange Satânica [Satanic Division], Batedores [Beaters], Corumbá, Mavoca, Vida Bandida [Bandit Life], Young Fla... In the textual files of Vulgo [text], the names of gangs mix with nicknames, replace and widen the issue of identity and renaming. The gang, the privileged site of the fixation and negotiation of identity, operates like the substitute of family, clan. In this way, in a process of un-identification and reidentification of the subject, the name of the gang takes the place of the waylaid or renegade family name.
The name – given name and surname – received from the parents, lies lightly upon the child: José, Joaquim, Maria da Silva. The walk of life will make them into Zezinho do Ouro [Gold Jo], Quequé, Batatinha [Small Potato]. Not just any José da Silva – there are so many – but that one, Zezinho do Ouro. By pointing out a feature of the subject, the nickname – the name inscribed over the name – is an adjective. Chocolate, Cafezinho [Small Coffee], Pelé and Feijãozinho [Small Bean] are, certainly, black. Parrudo [Strong Guy], Muleta [Cruch], Dente de Lata [Tin-Tooth], indicate very specific features. But, by what avatars of life does the bandit get to be called Abajur [Lampshade - and his buddy, Abajurzinho – “Little Lampshade”]? Does Pão-com-Ovo [Bread-with-Egg] alude to some eating preference? What do you think Sexta-Feira-Treze [Friday-Thirteenth] looks like? And Zé Florzinha [Jo Flower]?
Popular story-telling, the social group, or even the press, tend to stick another name, an alias, over the name of the outlaw; as if it were necessary to wipe out, from this outlawed being, the marks of human kind. Therefore, the nickname leaves the cast of common people, and takes on mythical and excluding contours. Another name is written over the old one, a by-name that qualifies the subject and hides the first inscription. Therefore, the metonymic name smudges the inscription of the name on the official register and replaces the renamed person into a chronicle of infamy, in which are found, side by side, Jack the Ripper,Landrú, the Vampire of Dusseldorf, El Pibe Cabeza, the Red Light Bandit, El Ángel de la Muerte, Motoboy.
On the other hand, a nickname can be altered very easily. In a world of mutant identities, outlaw identities shift endlessly. If on the identity card, a number and a name are associated to a photograph, unchanging and precarious seal which identifies us as citizens, the register of aliases is dynamic and infinite. Like a profane song, attributes proliferate in the files of infamy. Chosen by the individuals themselves or made up by the community, they stick like ectoplasm to the frist name. Escaping from the police or increasing their exploits, José da Silva [Jo Smith] may become Zezinho de Ouro [Gold Jo] and then Zé Pretinho [Blackie], and then Zé Marú and Playboy, and Dadinho [Little Dice] and Sabonete [Soap]... In the spin of the signs, identity slides because there is always the possibility or the need for another ‘over-naming’.
The photographs of the heads of the prisoners in the Carandiru prison file are anonymous. That which was meant to be the index of identification – the reddish whirlwind - is a symptom of the loss of the identifying pulse. The failure in the attempt to categorize becomes clear: the place where positivist thinking would find similarities, there are an infinite number of differences.
In Vulgo [Alias], by Rosângela Rennó, the cut, blind and deaf heads witness the infinite renewal of signs which overlap and succeed each other. The possible holders of nicknames turn their backs. Without visible faces, without names, they only exist in the infinite flight of letters that spin and spin without end. Images, words and sounds interact, never complete, never finite, never total. The nicknames of drug traffickers and outlaws and the names of gangs mingle with the nicknames of torturers, rappers and radio broadcasters. Image files, text files and sound files run simultaneously.
What is at stake, once again, is the smudging of the concept of identity. The work of the artist makes clear the failure of any attempt at identification. “A sense of dizziness”, Rennó says, because in the search for the data that define the Other, what is found is a lack, an emptiness, an amnesic gap which makes it impossible to name. In the obsessive register of the specifics operated through the eye of the camera and the register of nicknames, something is always lost, something always escapes, hidden in the crevices of the unending proliferation of words, images and sounds. Conjectural object, as those machines which intended to produce all possible combinations of letters in order to find the secret name of god, Vulgo [text] also reenacts a last chapter of Ars Combinandi.
Since art is one of the ways to reflect on life, the prerequisite for artistic experience is the capacity that the work of art has, to call the spectator to this reflection. In the gallery, fixed images, changing words and random sounds make it possible to see through the cracks and gaps, a promise of a totality that resists the irreversible fragmentation of contemporary experience.
María Angélica Melendi, 1999.
Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda
Even in the clearest of images something unknown remains [...] Na série intitulada Vulgo [1998-1999], Rosângela Rennó apresenta retratos extraídos e ampliados de um outro arquivo fotográfico com o qual pôde trabalhar. São novamente cabeças humanas (dessa vez, apenas homens) que põe à mostra também como integrantes de um conjunto maior de imagens, embora em uma coisa estas difiram, de imediato, das apresentadas em Imemorial: em vez da frontalidade ostensiva dos retratos 3 x 4, são quase somente as nucas e os cocurutos dos retratados que são dados a ver agora, sob cabelos invariavelmente cortados quase rentes à pele. Em apenas uma delas se vê uma testa e parte de uma face, ainda assim voltadas para baixo, em aparente submissão a quem visualmente as anota. Essas fotografias possuem, ademais, dimensões muitas vezes maiores do que as de seus referentes, concedendo, assim, a oportunidade de um escrutínio detalhado das imagens deles mostradas, cuja ênfase, realçada em tons de vermelho sobre o branco e preto de origem, são os redemoinhos que os cabelos formam. Exame que deixa perceber, ainda, breves anotações feitas às margens dos retratos, sugerindo tratar-se de indivíduos cujas vontades são submetidas a algum tipo de controle institucional e que estão, além disso, sujeitos a procedimentos de análise, como ocorre a internos de sistemas psiquiátricos e prisionais. De modo análogo ao uso de imagens em arquivos laborais, essas fotografias certamente se prestaram, algum dia, a conferir autoridade ao poder disciplinar que funda e justifica sistemas de regulação. Poder que já se valeu de tipologias fisionômicas para atestar o que governaria o comportamento transgressor na vida em comum, como os formatos dos crânios e rostos dos que se desviam de normas socialmente acordadas.
O arquivo fotográfico de onde essas imagens foram subtraídas não é, portanto, um arranjo neutro de informações visuais coletadas, servindo antes – através da escolha, da acumulação e da comparação desses retratos – à afirmação de modelos menos ou mais arbitrários de explicação e manejo de uma dimensão da realidade. Embora abrigue representações de vidas singulares, simultaneamente as torna equivalentes e indistintas, meros elementos arrolados para a comprovação empírica de enunciados discursivos genéricos (1). Ao recontextualizar parte desse arquivo específico em seu trabalho, a artista uma vez mais demonstra, então, como o uso do meio fotográfico pode velar o que supostamente exibe sem escapar, porém, de informar o que nele não se enxerga de imediato. Como contraponto à geração institucional do anonimato que essas imagens atestam, aproxima delas uma projeção em vídeo – Vulgo/Texto [1998] – em que centenas de alcunhas verdadeiras se sucedem (dente de lata, zé penetra, escadinha, diabo louro, marcinho maluco, beira-mar, jacaré, mau-mau, ferrugem, mão santa...), fornecendo indícios mais claros da condição de internos do sistema prisional dos retratados e explicitando um modo usual de rejeição e resistência à perda imposta de alteridade. Essa estratégia defensiva não logra, entretanto, recuperar laços sociais partidos, posto que tais apelidos são logo também capturados em ainda outros arquivos e também eles privados de uma relação unívoca com sujeitos quaisquer, como prova, paradoxalmente, sua apresentação nesse trabalho. Antes, Vulgo e Vulgo/Texto dão testemunho, como Imemorial igualmente já dera, do lugar difuso a que frações da sociedade são destinadas, na memória coletiva, pelo poder da imagem fotografada (2). [...]
1. Sekula, Allan. “Reading an Archive: Photography Between Labour and Capital”. In Brian Wallis (ed.), Blasted Allegories: An Anthology of Writing by Contemporary Artists. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1987.
2. Alguns outros artistas têm contestado, na contemporaneidade, a suposta neutralidade dos conhecimentos históricos que os arquivos fotográficos geram. O francês Christian Boltanski (1944), por exemplo, tem demonstrado, por meio de fontes arquivais diversas, o lugar de oblívio a que, ao longo do século XX, grupos étnicos ou sociais foram relegados. Também a norte-americana Carrie Mae Weems (1953) recontextualizou fotografias etnográficas de escravos e de seus descendentes, feitas nos Estados Unidos no século XIX, para acentuar seu papel na construção de identidades raciais discriminadas.
ANJOS, Moacir dos. Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda. In ANJOS, Moacir dos. Crítica. Rio de Janeiro: Automática, 2010, pp. 242-255.
[…] In the series entitled Alias [1998-1999], Rosângela Rennó presents blown-up portrait photographs from another archive. Again they are human heads (this time only men) and are also clearly part of a larger collection of images. It is immediately apparent, however, that these photos are different from those ofImmemorial: instead of the stark frontal view of the passport photos, these show only the backs of the neck and the crown of the head, with hair that is always cropped very close to the scalp. In only one image can a forehead and part of a face be seen, and even in this case, looking down, as if in submission to the observer. These photographs are also much larger, thereby providing for detailed scrutiny of their content. The originally black and white images are highlighted in red around the swirls made by the hair. The size also reveals brief notes made in the margins of the portraits, suggesting that these were individuals under some kind of institutional control and that they are being studied in some way, like psychiatric patients or prisoners. In a way that is analogous to the official company photos, these certainly once served to confer authority on some disciplinary power that founded and justified system of regulation. This power is known to have drawn on physiognomic types, such as the shape of the skull and face, which supposedly governed the behavior of those who transgressed socially-agreed norms.
The photographic archive from which these images are taken is, however, a neutral collection of visual information, serving—through the selection, combination, and comparison of the portraits— not the affirmation of more or less arbitrarily chosen models, but an explanation and manipulation of one dimension of reality. Although the images depict unique lives, they also make them equal and indistinct, a mere list of elements to provide empirical proof of generic discursive statements (1). By recontextualizing a part of this specific archive of her work, the artist once again demonstrates how the photographic medium can veil what it supposedly reveals, without, however, failing to provide information on what is not immediately visible. As a counterpoint to the institutional generation of anonymity to which these images attest, they are accompanied by a video – Alias/ Text [1998] – in which hundreds of real nicknames are shown (metal mouth, white devil, mad dog, bad boy, rusty...), providing clearer indication that the images are of prison inmates and making explicit one common way of rejecting and resisting the imposed loss of alterity. This defensive strategy does not, however, succeed in recovering the broken social ties; as such nicknames are soon also listed in their other files and deprived of an unequivocal relation to individual subjects, as is paradoxically evidenced by their appearance in this piece. Alias and Alias/Text bear witness, like Immemorial, to the diffuse place that some segments of society are destined in the collective memory through the power of the photographic image (2). [...]
1. Sekula, Allan. “Reading an Archive: Photography Between Labor and Capital”. In Brian Wallis (ed.), Blasted Allegories: An Anthology of Writing by Contemporary Artists. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1987.
2. Some other contemporary artists have contested the supposed neutrality of the historical knowledge generated by photographic archives. The French artist, Christian Boltanski (1944), for example, has drawn on a variety of archives to show the oblivion to which some ethnic or social groups have been consigned in the course of the 20th century. The US artist, Carrie Mae Weems (1953), has also recontextualized ethnographic photographs of slaves and their descendants taken in the USA in the 19th century, to highlight their role in constructing racially discriminated identities.
ANJOS, Moacir dos. Even in the clearest of images something unknown remains. In ANJOS, Moacir dos. Crítica. Rio de Janeiro: Automática, 2010, pp. 242-255.
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Arquivos do mal / Mal de arquivos
Archives du mal / Mal d’archive... o Mal de Arquivo lembra sem dúvida um sintoma, um sofrimento, uma paixão: o arquivo do mal, mas também aquilo que arruina, deporta ou arrasta inclusive o princípio do arquivo, a saber: o mal radical.
Derrida (1)
Derrida (1)
... porque el olvido es una de las formas de la memoria, su vago sótano.
Borges (2)
Borges (2)
I.
Em 2 de outubro de 1992, no Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Complexo Penitenciário do Carandiru, São Paulo (SP), uma briga entre dois presos - por causa de um varal de roupas - gerou uma revolta que atraiu a Polícia Militar ao presídio. O resultado dessa intervenção foi o massacre de 111 detentos, que deixou ainda um saldo de 153 feridos, sendo 130 detentos e 23 policiais.
As imagens dos corpos nus, estendidos nos caixões de zinco, com um número pintado como meio de identificação - sobre a pele, persistem na memória de quem as viu estampadas sob as manchetes dos jornais.
Inaugurado por volta de 1920, como uma unidade modelar, Complexo do Carandiru compõe-se hoje de quatro unidades autônomas: o Centro de Triagem, a Penitenciária Feminina, a Casa de Detenção (onde aconteceu o massacre) e a Penitenciária do Estado. Nesta última, encontra-se a Academia Penitenciária do Estado de São Paulo (Acadepen) e nela, o Museu Penitenciário Paulista. O governo do estado de São Paulo prometeu desativar o Complexo do Carandiru. Até hoje não foi tomada nenhuma medida nesse sentido (3).
II.
Em 1995, Rosângela Rennó soube da existência de uma grande quantidade de negativos fotográficos de vidro na Academia Penitenciária do Estado. Em maio daquele ano, a artista solicitou permissão para ter acesso a esse arquivo com o objetivo de restaurar, organizar e, mais tarde, utilizar as imagens desses negativos no seu trabalho. Num primeiro momento, a solicitação foi negada com base em uma regulamentação que protege a identidade dos detentos e das suas famílias durante um período de cem anos. Rennó, porém, conseguiu a autorização em fevereiro de 1996, depois de descobrir que algumas dessas imagens tinham sido publicadas num tratado sobre criminologia.
Sem nenhum critério de organização nem de preservação, quase 15 mil negativos de vidro estavam amontoados em caixas de papelão nos porões da Acadepen. Danificados pelo tempo e pela umidade, os restos do arquivo tinham permanecido inacessíveis, esquecidos por mais de meio século. Com a colaboração da Funarte, da USP e da Associação de Arquivistas Brasileiros, Rennó instalou um estúdio na Acadepen, onde limpou, restaurou e catalogou os negativos.
A maior parte das imagens eram fotos identificatórias – rosto de frente e de perfil - e signaléticas – nus de corpo inteiro, frente, perfil e costas. Havia também umas 3 mil fotos de tatuagens, marcas e cicatrizes, algumas fotos de doenças e anomalias e trinta fotos de cabeças de costas.
As fotografias em preto e branco eram usadas para ilustrar as fichas pessoais dos internos da penitenciária. O levantamento fotográfico que se estendeu entre 1920 e 1940, no setor de Psiquiatria e Criminologia da Penitenciária do Estado de São Paulo, pretendia identificar os prisioneiros por número, características físicas (feições, cor da pele, altura, peso e deformidades corporais) e marcas (tatuagens e cicatrizes propositais ou acidentais). O dr. José de Moraes Mello, médico responsável pela operação, não deixou nenhuma documentação sobre algum uso ulterior do arquivo. Não há registro do nome do fotógrafo.
III.
Desde 1992, Rosângela Rennó seleciona e organiza o Arquivo universal, constituído por textos de jornais que narram "histórias ordinárias sobre gente e fotografia" (4). Da coluna social à página policial, o Arquivo universal compõe-se de textos em que a imagem fotográfica se torna prova, fetiche, objeto de desejo, lembrança, testemunho. No acervo textual do Arquivo universal, as imagens fotográficas estão nomeadas ou descritas. Assim, é um arquivo de imagens sem imagens.
Ontem, na casa de M., o funcionário levou maia hora com perguntas do tipo: Quanto ganham as pessoas que vivem aqui? Que igreja frequentam? Que língua falam? Tem banheiros na casa? M. de 25 anos, lembra-se que, na última vez, ele e sua família foram recenseados por avião. Sem exageros. Na época do regime racista, o número de habitantes do distrito negro era conhecido somente por meio de fotografias aéreas: contavam-se as casas e multiplicava-se o seu total por quatro, número presumível de membros de uma família.
O Arquivo universal é um arquivo virtual no qual os textos são incluídos depois de serem lapidados pela eliminação de nomes, lugares e datas. Um arquivo de imagens escritas, no qual a identidade dos sujeitos é mutilada pela maiúscula seguida do ponto. A indeterminação do sujeito reforça e acentua uma falsa objetividade. O anonimato da situação é também a chancela da sua extensão. No Arquivo universal, todos somos assassinos, todos somos cúmplices, mas todos, também, somos vítimas.
A Funai vai exigir na Justiça que a empresa E. indenize a índia Y., de 15 anos, violentada e engravidada em agosto passado por técnicos que faziam prospecção na reserva indígena. Os funcionários da Funai ficaram revoltados com o descaso da empresa, que enviou apenas uma relação de nomes, sem fotografias, dos técnicos que trabalhavam na área, naquela época, para que a adolescente identificasse os autores do crime. Y. é surda-muda e deficiente mental.
“A maneira como eu lido com o texto é exatamente como faço com uma foto. Sinto que o texto determina uma potência imagética muito grande como informação descritiva que a foto não dá” (5), declara a artista. Os relatos do Arquivo universal - histórias ordinárias sobre gente e fotografia - são irrelevantes, falidos, fragmentários. Como a nossa memória, o Arquivo prolifera a partir dessas irrelevâncias, dessas falhas, desses fragmentos.
IV.
A instalação Vulgo é definida pela autora como um diálogo visual entre fotografias do Museu Penitenciário Paulista e textos do Arquivo universal. Os textos selecionados apontam para a perversidade de um poder exercido a partir do exercício do olhar. As grandes fotos, laminadas como espelhos negros, focalizam as cabeças dos detentos: nove de costas e três de frente. Nessas últimas, os olhos dos detentos estão fechados ou voltados para o chão. Numa delas, o número identificatório do preso está aderido à testa.
Os crânios raspados exibem o claro desenho do redemoinho, apenas colorido pela artista em tons avermelhados, rosa, salmão. Uma espécie de maquiagem erótica estende uma máscara sobre a pele para despertar o calor do sangue, para lembrar que, detrás da superfície plana da fotografia, há um rosto. Como no avesso de uma três por quatro, as cabeças, de costas (os olhos baixos), parecem evitar o reconhecimento. E, no entanto, sabemos que ao olhar aguçado do amor ou do ódio nada escapa. Como não reconhecer - no odiado, no amado a nuca, a testa, o nascimento do cabelo, aquele redemoinho. Mas não é de amor nem de ódio que se trata. Trata-se de ciências classificatórias e identificatórias: as fotos da Acadepen parecem ter obedecido a uma suposta tentativa de estudo fisionômico ou frenológico. Não havendo um redemoinho igual a outro, esses poderiam constituir-se como traço definitório de uma identidade individual.
O olhar carcerário, que intenta atribuir sentidos e criar categorias, fragmenta, retalha e classifica os indivíduos. Os condenados da sociedade - a ralé -, humilhados pelo duplo peso do crime e da culpa, oferecem, à mirada do outro, a nuca vulnerável, quase à espera da lâmina do carrasco. Separadas do corpo, estranhamente anônimas e, ao mesmo tempo, familiares, as cabeças ostentam, no desenho espiralado, o punctum da imagem e do indivíduo. Não foi a faca de uma guilhotina que decepou as cabeças, mas uma câmera fotográfica. Através da objetiva da máquina, o poder multiplica seu olhar identificador e o lança, como uma rede, sobre os indivíduos. Tudo é indício, tudo é índice.
Rennó aponta para o fato de que fotografar os redemoinhos seria talvez o ápice da ideia de panóptico. Invisível, o poder submete os dominados a uma visibilidade total. Não basta a foto três por quatro, não bastam o perfil nem as digitais. O indivíduo é fragmentado através do registro de suas mínimas particularidades, que são exibidas e vasculhadas como se a partir delas fosse possível detectar as pulsões mais íntimas e secretas. As fotos das cabeças dos presos do arquivo do Carandiru são anônimas. O que pretendia ser um índice de identificação – o redemoinho avermelhado - é um sintoma do extravio da pulsão identificatória. O fracasso da tentativa de categorização torna-se evidente: o lugar onde o pensamento positivista queria achar semelhanças, apresenta-se como uma soma infinita de diferenças.
O que está em jogo, novamente, é a rasura do conceito de identidade. O trabalho da artista deixa evidente o fracasso de qualquer tentativa de identificação. “Uma sensação de vertigem”, pontua Rennó, porque na busca dos dados que definam o Outro, o que se encontra é uma falta, um vazio, uma falha amnésica que impede de nomear. Entre o registro obsessivo das particularidades operado através do olho da câmara e o registro das narrativas menores do Arquivo universal, sempre há algo que se perde, sempre há algo que escapa, escamoteado nos interstícios que proliferam interminavelmente.
V.
Rennó, como Barthes, sabe que “as fotos são signos que não prosperam bem, que 'coalham' como o leite. Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela o que vemos" (6). A dificuldade de acomodar a vista à fotografia provém da aderência do referente - ao funcionar como uma janela ou um espelho, a fotografia desaparece.
Rosângela Rennó propõe-se liberar a fotografia dessa sina e. mediante uma dupla operação, consegue barrar a onipresença do referente. Por um lado, a artista elabora o Arquivo universal, onde só cabem referentes; por outro, apropria-se de fotografias que retrabalha até o limite da visibilidade, seja por obliteração, eliminação de contrastes, fragmentação ou descontextualização e recontextualização.
Os textos são lidos num continuum temporal. As fotografias não ilustram a escrita. A escrita não é legenda da foto. Nosso hábito cultural leva-nos a buscar uma legenda que não aparece (afinal, quem são essas pessoas?) e umas fotos que não existem (como reconhecer os culpados sem as fotos? Como recensear através de fotografias?). Aparentemente, não existe uma relação entre as duas categorias, mas, na arte, as conexões entre a linguagem e a imagem apresentam-se infinitas. Ao confrontar, num mesmo espaço, imagens e textos, Rennó abre uma série de relações que nunca estão explícitas.
Imagens escritas, os textos visuais interagem com a imagem debilitada da fotografia. O referente o sujeito – é quase barrado pela indefinição da imagem e pela ausência de legendas. O sujeito - o referente – é desidentificado. Afinal, quem são esses homens? Por que estão de costas? Por que de olhos fechados? O referente - o sujeito - é barrado pela inicial enigmática. Afinal, quem é M.? Quem é a índia Y.? Esse referente, porém, é resgatado e restaurado pela dupla exposição – da foto e dos textos.
Para Foucault, imagem e texto
são irredutíveis uma ao outro; por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem. (7)
Textos e imagens associados interagem, nunca plenos, nunca finitos, nunca totais, porque “o que se vê não se aloja mais no que se diz...".
VI.
Com um gesto retórico, Freud se inquieta, no começo do capítulo VI de O mal-estar na civilização, por gastar imprensa, impressão, tinta e papel, mobilizar uma pesada máquina arquivística, para contar histórias que todo mundo conhece (8). Em vários lugares de sua obra, Borges, aparentemente, se lastima por "agregar à infinita série um símbolo a mais". Rosângela Rennó acredita que há fotografias demais no mundo e, por consequência, só refotografa imagens de fotografias. (En abyme, o referente da fotografia é uma fotografia...) Mas apesar da retórica e do gesto, cada velha fotografia refotografada constitui-se numa nova fotografia, num novo arquivo, num símbolo a mais a se inserir na infinita série.
A posteriori, a imagem refotografada se demonstra plena de sentidos, e aponta para um universo significativo do qual sempre esteve afastada. Destinadas desde sempre à invisibilidade, produzidas para serem arquivadas e logo esquecidas, as imagens do Carandiru alcançam finalmente a visibilidade no campo da arte.
As fotos esquecidas – as fotos identificatórias abandonadas no arquivo penal - e os relatos banais são resgatados como provas da amnésia social que motivam o interesse de Rennó nos restos da cultura, nos rastros da memória, naquilo que foi postergado, esquecido ou eliminado na hora de se narrar a história oficial.
"Amnésia", repete a artista, “não esquecimento". Amnésia: perda de memória, total ou parcial. O termo médico aponta para um apagamento das lembranças. Esquece-se que alguma coisa foi esquecida. Amnésia social, amnésia coletiva, como definiu Heinrich Böll a relação da Alemanha do pós-guerra com seu passado nazista. Em algum momento, alguma coisa foi irremediavelmente extraviada; as fotos e os textos que a artista arquiva não resgatam a memória, mas testemunham o esquecimento.
VII.
Em Mal de arquivo, Jacques Derrida propõe-se distinguir o arquivo daquilo a que foi reduzido: a experiência da memória e o retorno à origem, o arcaico e o arqueológico, a lembrança ou a escavação, resumindo: a busca do tempo perdido (9).
Todo arquivo pressupõe inscrições, marcas, impressões, assim como a decodificação das inscrições e das marcas e o armazenamento e a preservação das impressões. Todo arquivo pressupõe, também, um lugar de consignação – um lugar de reunião dos signos - e uma técnica de repetição.
Um mal radical parece estar agindo desde sempre no trabalho de custódia e interpretação dos arquivos e na relação que mantemos com eles, nos modos de lembrar, memorizar e monumentalizar, na necessidade de registrar tudo, sem resto, sem perda. Mas a censura e a repressão trabalham para destruir o arquivo, antes mesmo de tê-lo produzido. Pulsões de morte precipitam o arquivo no esquecimento, na amnésia, na aniquilação da memória, na erradicação da verdade. Porque o arquivo não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. "O arquivo tem lugar em (o) lugar do desfalecimento originário e estrutural dessa memória.” (10)
Assim, o arquivo da Acadepen, arquivo de marcas, de inscrições, de impressões, arquivo de corpos escritos, descritos e desenhados, arquivo do mal, devorado pela umidade e pelo tempo, desvenda, nesse desfalecimento, uma acumulação de arquivos estratificados. Camada sob camada, o olhar de Rennó expõe as cicatrizes de feridas que o sistema tentou escamotear, mas que permaneceram abertas nas matrizes abandonadas. Sob essas cicatrizes, através dessas cicatrizes, a artista, como uma arqueóloga, nos permite entrever a possibilidade abissal de infinitas escavações.
Dominada pelo arquivo, pelo mal de arquivo, a artista não tem descanso, porque está, interminavelmente, dedicada a procurar e instaurar o arquivo ali, onde ele se escapa, ali, onde algo nele se anarquiva. Ao restaurar o arquivo, Rennó restaura, também, a certeza de que o arquivo está irremediavelmente perdido. Extraviado na sucessão de cópias, o arquivo é ilegível porque todas as claves para sua leitura foram apagadas. Um arquivo inútil, mesmo se lido através da memória dos arquivos de Lombroso ou de Lacassagne. Um arquivo inútil, mas dominado por uma espera infinita, desproporcionada, sempre pendente, uma espera sem horizonte de espera, a impaciência absoluta de um desejo de memória.
O que Rennó pôde recuperar são apenas as falhas, os vazios, os fragmentos desse desejo de memória. Com esses restos, a artista monta um outro arquivo, que estava latente no primeiro, num dos seus substratos. As imagens do novo arquivo - corpos nus, marcas, tatuagens, feridas; braços, mãos, pernas, pés, torsos, cabeças - pertencem agora ao arquivo da arte, potencializadas pela beleza do belo, não são senão memórias da morte. O último capítulo da vida dos homens infames.
VIII.
Em português, o substantivo "vulgo” quer dizer povo, populacho, tropa, multidão, plebe, ralé. Mas também se utiliza para designar o apelido, aquele nome outro que a família, a crônica popular, o grupo social ou mesmo a imprensa costumam colar sobre o nome próprio. Ao nomear uma instalação que exibe fotos de supostos 183 delinquentes, a palavra "vulgo” multiplica seus sentidos. O vulgo, um sobrenome, um nome metonímico, às vezes rasura a inscrição do registro civil e recoloca o renomeado no elenco da infâmia: Jack, the Ripper; Landru, o Vampiro de Dusserdolf; El Pibe Cabeza, o Bandido da Luz Vermelha; El Ángel de la Muerte; o Motoboy.
Contra a parede, fotos de seres anônimos, sem rosto, desidentificados; sobre a parede, textos que falam de seres anônimos, sem nome, desidentificados. O vulgo, o povo, a plebe, a ralé.
Por outro lado, "vulgo”, em latim, é um verbo cujo significado é propagar, divulgar. Sendo a arte um dos modos de refletir sobre a vida, a condição para a experiência artística é a capacidade que a obra tem de convocar o espectador para essa reflexão. Na galeria, imagens e textos deixam vislumbrar, através das frestas e dos intervalos, a promessa de uma totalidade que resista à irreversível fragmentação da experiência contemporânea. Na galeria, Vulgo propaga e divulga a possibilidade de se inscrever, de se escrever e de se imprimir uma outra história, a história dos vencidos. Uma história que vem resistindo, entre os arquivos do mal e o mal do arquivo, à amnésia e à invisibilidade.
IX.
Para Hal Foster, a questão política, na arte ocidental da contemporaneidade, poderia ser apreendida apenas pelas práticas de resistência ou de interferência. Se a vanguarda, transgressora da cultura oficial de uma sociedade erudita, se opôs, originalmente, à academia, a "arte crítica ou de resistência é concebida como oposta à cultura moderna oficial, tanto na forma dos veículos de massa quanto na de um modernismo recuperado (a arte moderna dos museus)" (11). Por outro lado, o colapso da representação - “hoje em dia não pode haver nenhuma representação simples da realidade, da história, da política, da sociedade: todas elas só podem ser constituídas textualmente (12) - desvela os conteúdos ideológicos implícitos nas falácias das imagens positivas.
Ao se apropriar das imagens do arquivo de um Museu Penitenciário, ao exibir essas imagens junto dos textos do Arquivo universal, Rennó está conectando o enterrado, o não sincrônico, o menor às práticas artísticas da contemporaneidade. O Museu e o Arquivo, como repositórios de uma certa memória, são desmascarados, ao serem confrontados com a banalidade trágica dos relatos do Arquivo universal.
A tarefa em que Rosângela Rennó está empenhada - a restauração do sentido – não contemplou nunca a evocação do massacre de 1992, porém, cada instalação com as fotos do arquivo do Carandiru não cessa de reencenar a chacina. Como se esta estivesse latente, como se cada disparo da polícia já estivesse anunciado nos disparos da câmara do fotógrafo desconhecido que, mais de cinquenta anos atrás, tirou as fotos.
A arte de Rennó não se opõe ao sistema a história ensinou que é tarefa inglória –, porém, agindo efetivamente desde os lugares privilegiados do sistema, deixa ver obliquamente, infralevemente, não a perversidade desse sistema, mas, como quer Paulo Herkenhoff, um dos mapas da sua sombra.
- Derrida, Jacques. Mal de Archivo. Uma impresión freudiana. Madrid: Trotta, 1997.s/n
- Borges, Jorge Luis. Obras Completas. Buenos Aires: Emece, 1976. p.1017
- Os pavilhões do Complexo do Carandiru foram implodidos em 2002 e 2005, anos depois da escrita deste ensaio.
- Rennó, Rosângela. Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1997, p.159.
- Idem
- Barthes, Roland. A câmara clara. Trad. Júlio Castañón Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p.16.
- Foucault, Michel. As palavras e as coisas. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1981. p.25.
- Cf. Derrida, Jacques. Mal de Archivo. Uma impresión freudiana. Madrid: Trotta, 1997. p.16.
- Idem
- Derrida, Jacques. Mal de Archivo. Uma impresión freudiana. Madrid: Trotta, 1997, p.19.
- Foster, Hal. Recodificação. São Paulo: Casa Editora Paulista, 1996, p.200.
- Idem
MELENDI, Maria Angélica. Arquivos do mal/Mal de arquivos. In: MELENDI, Maria Angélica. Estratégias da arte em uma era de catástrofes. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017, p. 171-185.
Texto originalmente publicado em: Vulgo [Alias] – Rosângela Rennó. Catálogo da exposição. Sidney: University of Western Sydney – Nepean, 2000.
... Mal d’Archive rappelle sans doute un symptôme, un souffrance, une passion: l’archive du mal mais aussi ce qui ruine, déporte ou emporte jusqu’au principe d’archive, à savoir le mal radical.
Derrida (1)
... because to forget is one of the forms of memory, its empty cellar.
Borges (2)
Derrida (1)
... because to forget is one of the forms of memory, its empty cellar.
Borges (2)
I.
On October 2, 1992, in Pavilion 9 of the Casa de Detenção (prison) of the Penitentiary Complex of Carandiru in São Paulo, state of São Paulo, a fight between two prisoners – over of a clothes line – began a revolt that brought the riot control police to the prison. The result of this intervention was the massacre of 111 prisoners and 153 injured, of which 130 were prisoners and 23 police.
The pictures of naked bodies, stretched out in zinc coffins, with numbers painted on their skin– as identification – remain in the memory of those who saw them stamped under the headlines of the newspapers.
Inaugurated in about 1911 as a model prison, the Carandiru Complex is made up of 4 independent units: the Screening Centre, the Women’s Prison, the Casa de Detenção (where the massacre occurred) and the State Penitentiary. In the latter, there is the Penitentiary Academy of the State of São Paulo (ACADEPEN) and inside it, there is the Paulista Penitentiary Museum. The government of the state of São Paulo promised to close the Carandiru Complex. So far, nothing has been done towards this (3).
II.
In 1995, Rosângela Rennó found out about a large number of glass film negatives in the Penitentiary Academy. In May that year, she requested permission to gain access to this archive in order to restore, organize, and later, to use the images from these negatives in her work. Initially the request was refused, based on a rule that protects the identity of prisoners and of their families for a period of one hundred years. Rennó, however, received approval in February 1996, after she discovered that some of these pictures had already been published in a work on criminology.
Almost 15,000 glass negatives were piled up in cardboard boxes in the cellars of the Penitentiary Academy, without any criteria of organization or conservation. Damaged by time and humidity, the remains of the archive had been inaccessible, forgotten for over half a century. With help from National Art Foundation, the University of the State of São Paulo and the Brazilian Archivists’ Association, Rennó installed a studio in the Penitentiary Academy, where she cleaned, restored and catalogued the negatives.
Most of the pictures were identification photographs of prisoners (face and profile) and signalectic (full body, naked: front, profile and back). There were also about 3,000 photographs of tattoos, marks and scars, some of diseases and anomalies including 30 photographs of the backs of prisoner’s heads.
These black and white photographs were used to illustrate the personal files of prison interns. The photographs were taken between 1920 and 1940, in the Psychiatric and Criminology sector of the São Paulo State Penitentiary. The intention was to identify prisoners by number, physical characteristics (features, skin color, height, weight and deformities) and marks (tattoos and deliberate or accidental scars). Dr. José de Moraes Mello, the doctor who was responsible for the operation, did not leave any documentation on the ulterior use of the archive. There is no mention of the name of the photographer.
III.
Since 1992, Rosângela Rennó has selected and organized the Universal Archive (Arquivo Universal), a collection of newspaper texts which, in her words, narrate “ordinary stories about people and photograph” (4). From the social column to the crime page, the Universal Archive is made up of texts in which the photograph image becomes proof, fetish, object of desire, reminder or witness. In the textual collection of the Universal Archive, the photographic images are named or described. It is, therefore, an archive of images without images.
Yesterday, at M.’s house, the employee spent half an hour asking questions like: What is the household income? What church do you belong to? What language do you speak? Is there a bathroom in the house? M., who is 25, remembered the last census of the area, done by plane. Really. During the racist regime, the number of inhabitants in a district was determined by aerial photography. The houses were counted and the result was then multiplied by four, the estimated average members per household.
The Universal Archive is a virtual archive in which the texts have been edited: the names, places and dates eliminated altogether. This is an archive of written images, in which the identity of the subject is mutilated by the capital letter followed by a period. The indeterminacy of the subject reinforces and highlights a false objectivity. The anonymity of the situation allows the text to finds its own destiny and meaning. In the Universal Archive we are all murderers, we are accomplices but we are also all victims.
FUNAI (Indian National Foundation) is suing Company C., demanding that it pay damages to the Indian X., 13 years old, who was raped and made pregnant by the technicians who were prospecting on the Indian reservation. FUNAI staff were outraged by the company’s carelessness on the matter. It sent in only a list of names, but failed to deliver photographs of the technicians who were working in the area at the time, so that the adolescent might identify the perpetrators of the crime. X is deaf, mute, and mentally handicapped.
Rennó has stated that, “The way I deal with the text is exactly what I do with a photograph. I feel the text determines an image power, which is very great as descriptive information that the photograph does not give (5). The narratives of the Universal Archive – ordinary stories about people and photography – are irrelevant, failed, fragmented. As with our memory, the Archive proliferates from these insignificant narratives, these gaps, and these fragments.
IV.
The installation Vulgo is defined by the author as a visual dialogue between the photographs of the Paulista Penitentiary Museum and texts from the Universal Archive. The 11 selected texts show the perversity of power exercised by the act of looking. The large photographs focus on the heads of the prisoners: 9 from behind and 3 from the front. In the latter the eyes of the prisoners are closed or looking at the floor. In one of them, the identity number of the prisoner is stuck on his forehead.
The shaved heads show a clear spiral crown, colored by the artist in tones of red, pink, and salmon. This can be likened to a kind of erotic make-up laying a mask over the skin suggesting the heat of blood, to remind us that, behind the flat surface of the photograph, there is a face. Similar to the reverse of a standard ID photograph, the heads seem to avoid recognition. However, we know that nothing escapes the sharp look of love or hate. How can you fail to recognize the back of the neck, the forehead, the roots of hair, the spiral in the person you hated or in the one you loved. But it is not a question of love or hate. It is a question of classification and identification. The photographs of the Penitentiary Academy attempted a physiognomic or phrenological study. Since no one crown is the same as any other, these could become a defining trait of individual identity.
The prison gaze, which intends to attribute meanings and create categories, fragments, crops and classifies the individuals. Those condemned by society — the riffraff — humiliated by the double weight of crime and guilt, offer to the gaze of the other a vulnerable back of the neck, almost awaiting the executioner’s blade. Separated from the body, strangely anonymous, and at the same time familiar, the heads show in the spiral design, the punctum of the image and of the individual. It was not the blade of a guillotine that cut off the heads, but a camera. Through the lens of the camera, power multiplies its identifying gaze and throws it, like a net, on the individuals. Everything is evidence, everything is index.
Rennó’s work points out that the act of photographing the crowns may be the ultimate in the idea of the pan-optic. Invisible power submits those dominated to total visibility. The standard identity photograph is not enough, nor are profile and fingerprints. The individual is fragmented by the registration of his minimum specifics, which are exhibited and scrutinized as if from them it was possible to detect the most intimate and secret drives. The photographs of the heads of the prisoners in the Carandiru archive are anonymous. What was intended to be an identification index – the reddish spiral of the crown – is a symptom of the loss of identification. The failure in this attempt to categorize is clear: the point at which positivist thinking wanted to find similarities it finds an infinite sum of differences.
What is at play, again, is the erasing of identity. The work of the artist makes clear the failure at any attempt of identification. According to Rennó this is a sensation of dizziness, because in the search for data to define the Other, what is found is a gap, an emptiness, an amnesic void which makes it impossible to name. Between the obsessive registration of the details operated through the eye of the camera and the registration of smaller narratives in the Universal Archive, there is always something lost, there is always something that escapes, hidden in the interstices which proliferate endlessly.
V.
Rennó has cited Barthes who knows that “the photographs are signs that do not prosper well, which go sour like milk. Whatever it gives to be seen and in whichever way this is done, a photograph is always invisible: it is not the photograph that we see" (6). The difficulty of adapting sight to the photograph comes from the adherence to the referent, when it functions like a window or a mirror, the photograph disappears.
Rosângela Rennó proposes to release the photograph from this fate and, through a double operation, manages to prevent the omnipresence of the referent. On the one hand, the artist draws up the Universal Archive where only referents fit while on the other hand, she appropriates photographs which she reworks to the limit of visibility, whether by obliteration, eliminating contrasts, fragmentation or decontextualization and recontextualization.
The texts are read in a temporal continuum. The photographs do not illustrate the written text. The text is not the legend of the photograph. Our cultural habit leads us to seek a legend which does not appear (after all, who are these people?) and some photographs which do not exist (how to recognize the guilty without the photographs? how to carry out a census through photographs?). Apparently, there is no relation between the two categories, but, in art, the connections between language and image are infinite. When confronting in the same space, images and text, Rennó creates a number of relations which are never explicit.
The Universal Archive is a series of written images, visual texts interacting with the debilitated image of the photograph. The referent – the subject – is almost barred by the ambiguity of the image and by the lack of legends. The subject is unidentified. After all, who are these men? Why are they standing with their backs to us? Why are their eyes closed? The referent – the subject, is barred by the enigmatic initial. After all, who is M.? Who is the Indian woman Y.? This referent, however, is recovered and restored by the double exhibition – of the photograph and the texts.
For Foucault, image and text
are irreducible one to the other; however much you say you can see, what you see never fits into what you say, however much you show what is being said by images, metaphors, comparisons, the place where these shine is not that which the eyes unveil, but that which the successions of syntax define. (7)
Associated texts and images interact, never full, never finite, never total, because that which is seen does not fit in that which is said.
VI.
In a rhetorical gesture, Freud commented at the beginning of chapter VI of Civilization and Its Discontents, that his mobilization of the heavy archive machine to tell stories that everybody already knew was a waste of printing, ink and paper (7). In various places in his work, Borges lamented “aggregating one more symbol to an infinite series”. In a similar vein, Rosângela Rennó believes that there are too many photographs in the world and, consequently, only re-photographs the images of photographs (en abyme, the referent of the photograph is a photograph...). But in spite of this gesture, each old photograph that Rennó re-photographs becomes a new photograph, in the new archive, one more symbol to be inserted in an infinite series.
A posteriori, the re-photographed image shows itself full of meanings and points to a meaningful universe from which it was always removed. Destined always to invisibility, produced to be filed away and soon forgotten, the images from Carandiru advance finally to visibility in the field of art.
The forgotten photographs – the identification photographs abandoned in the penal archive – and the banal reports are recovered as proof of social amnesia, because Rennó is interested in the remains of culture, the trails of memory, in that which is forgotten or eliminated when telling the official story.
Amnesia, she repeats, not forgetfulness. Amnesia, a loss of memory, total or partial. The medical term points to the wiping out of memories. You forget that something was forgotten. Social amnesia, collective amnesia, as Heinrich Boll defines in postwar Germany with its Nazi past. At some moment, something was irredeemably lost; the photographs and the texts which the artist files away do not recover the memory but witness the forgetting.
VII.
In Mal d’Archive Jacques Derrida set about distinguishing the archive from that to which it was reduced: the experience of memory and the return to origin, the archaic and the archaeological, the memory or excavation, in search of lost time (9).
All archives presuppose inscriptions, marks, stamps, and their decodification as well as their storage and conservation. Every archive presupposes also a place of consignment – a place to bring together signs – and a technique of repetition.
A radical evil seems to act always in the custody and interpretation of archives, and in the relationship we have with them, in ways to remember, memorize and make monuments, the need to register everything, without surplus, without loss. But censorship and repression work to destroy the archive, even before it was produced. The drives of death precipitate the archive into forgetfulness, amnesia, the annihilation of memory, the eradication of truth. Because the archive will never be a memory as a spontaneous, living and inner experience.
The Penitentiary Academy (the archive of marks, inscriptions, stamps: the archive of written bodies, described and drawn: the archive of evil) was devoured by humidity and by time unveils - wasting way - an accumulation of stratified archives. Layer under layer, Rennó’s gaze exposes the scars of wounds that the system tried to hide, but are still open on the abandoned original. Under these scars, through these scars, the artist as an archaeologist, allows us to glimpse the infinite possibilities of excavations.
Dominated by the archive, by the evil of the archive, the artist does not rest, because she is interminably dedicated to seek and establish the archive in the place where things don’t have their own files. Re-establishing the archive, Rennó also restores certainty that the archive is irremediably lost. Gone astray in the succession of copies, the archive is illegible because all the keys for its reading have been erased. A useless archive, even if read from the memory of the archives of Lombroso or Lacassagne. A useless archive dominated by an infinite wait, a disproportionate always pending sense of waiting without a horizon: the absolute impatience of a desire of memory.
What Rennó was able to recover are only gaps, the voids, and the fragments of this desire of memory. With these remains, the artist sets up another archive which was originally latent. The images of the new archive – naked bodies, marks, tattoos, wounds; arms, hands, legs, feet, torsos, heads – belong now to an art archive, aestheticised beyond the memories of death. The last chapter of the life of disgraced men.
VIII.
In Portuguese, the noun vulgo means people, populace, troop, crowd, plebeians, and riffraff. But vulgo also means nickname, that other name which family, the general populace, the social group or even the press tend to use rather than the proper name. When used to name an installation which shows the photographs of supposed delinquents, the word vulgo multiplies in meaning. The vulgo, a surname, a metonymic name, sometimes erases the inscription of civil registration and replaces the renamed person in the cast of the disgraced; Jack the Ripper, Landrú, the Vampire of Dusseldorf, El Pibe Cabeza, the Bandit of the Red Light, El Angel de la Muerte, the Motoboy. In Rennó’s exhibition Vulgo, photographs of anonymous beings are placed alongside texts about the nameless and unidentified. The vulgo are people, plebeians, and riffraff.
On the other hand, in Latin, vulgo is a verb which means to propagate, to publish. Since art is one means of reflecting on life, the condition for artistic experience is the capacity with which a work engages with the viewer. In the gallery, images and texts show, through slits and gaps, the promise of a totality that resists the irreversible fragmentation of contemporary experience. In the gallery, Vulgo propagates and publishes the possibility of inscribing, writing and printing another story: the story of those who were beaten. A story which has resisted - among the archives of evil and the evil of the archive - amnesia and invisibility.
IX.
For Hal Foster, the political in contemporary Western art can be understood only through the practice of resistance and interference. If vanguard or critical art is a transgression of the official culture of an erudite society originally opposed academia, it is understood as being opposed to official modern culture, both in the mass media and in recovered modernism (the modern art of the museums) (10). In another way, the collapse of representation — nowadays there can be no simple representation of reality, of history, of politics, of society: they can only be constituted textually (11) — unveils the ideological content implicit in the fallacies of positive images.
By appropriating images from the archive of a penitentiary museum and exhibiting them with texts from the Universal Archive, Rennó is connecting that which is buried, the non-synchronic, with practices of contemporaneity. The Museum and the Archive, as the deposits of a kind of memory, are unmasked, when confronted with the tragic banality of the reports in the Universal Archive.
The task in which Rosângela Rennó is engaged – restoring meaning – never intended to remember the 1992 massacre. However, each installation with the photographs of the Carandiru archive never fails to re-enact the slaughter. As if this were latent, as if each shot by the police was already announced in the shots by the camera of the unknown photographer who, over 50 years ago, took the photographs.
Rennó’s art does not oppose the system – history has taught that it is an inglorious task – but acting effectively from the privileged sites of the system, it allows an oblique view, not of the perversity of this system, but as Paulo Herkenhoff would have it, of one of the maps of its shadow.
- Derrida, Jacques. Mal de Archivo. Uma impresión freudiana. Madrid: Trotta, 1997.s/n
- Borges, Jorge Luis. Obras Completas. Buenos Aires: Emece, 1976. p.1017
- Os pavilhões do Complexo do Carandiru foram implodidos em 2002 e 2005, anos depois da escrita deste ensaio.
- Rennó, Rosângela. Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1997, p.159.
- Idem
- Barthes, Roland. A câmara clara. Trad. Júlio Castañón Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p.16.
- Foucault, Michel. As palavras e as coisas. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1981. p.25.
- Cf. Derrida, Jacques. Mal de Archivo. Uma impresión freudiana. Madrid: Trotta, 1997. p.16.
- Idem
- Foster, Hal. Recodificação. São Paulo: Casa Editora Paulista, 1996, p.200.
- Idem
MELENDI, Maria Angélica. Archives du Mal – Mal d’Archive. In Vulgo [Alias] – Rosângela Rennó. Sidney: University of Western Sydney – Nepean, 2000, p.6-15.
All sorts of traces remain after an injury or a misdemeanour: broken glass perhaps, a pool of blood or some other stain; something torn; then the silence which sustains even amidst the hubbub of helpers and lamenters which mill about as part of the extended aftermath of the crisis. These aftershock silences and hiatuses are what lure us most. In staring at the scene of an accident or a crime we stare at an enormous gap, an empty shadow of what can only be imagined, because the onlooker, during such moments, exists on a threshold of what happened and what will result from what happened. The greater the amount of testimony and research into what happened, the more we are brought up close to the fact that the event cannot be retrieved, known – even for those directly involved in the incident – because the event exists as a mixture of scenes interrupted by blanks caused by a mind in the grips of raging anxiety. Horror and radical flux can never be remembered, its spontaneity cannot be orchestrated. When a bystander looks at the scene of an accident or a crime he or she exists in a secondary moment of sorts. To be an observer of such scenes is to be an outsider; to belong to the scene is to either blameworthy, maimed or dead. A bystander always asks, tentatively, ‘how?’. The remnants of crisis, safe from the fray, work narratives. The “innocent” bystander of the crisis is the one who mentally captions the event, erasing it then writing it anew until the process becomes too exhausting or just helpless and it is time to walk away.
A similar effect comes from looking at prison records or medical photographs. They are the inadequate graphic remnants of extremity – extremity twice removed, the after event transformed under the collective aegis of science and law. They need captions. Holiday snapshots prompt the need for subtexts and anecdotes but their role in memorialising occupy a different role in the socialising process. The first are a small component to how society regulates itself, the other way is spontaneous and whimsical, if predictable. One is security well after a critical moment, the other is security that a good moment should not be lost. (The first is the language of a system which one day hopes to lose such occasions for good) . Official records operate according to a different law of consent and they are brought out under different conditions. They do not delight the viewer. Comparing a snap or a pictorial photograph to a medical or prison record is like comparing a limerick to a routine entry on a ledger.
Say you come across two photographs, one of a body part which has been marked in some way, the other of an amorous couple posing on a picnic blanket, they are happy. Subconsciously you are first fascinated by your fascination, you like wanting to look twice, privy to these two moments into which you have casually penetrated. You have entered into the silence of each image, a silence augmented by your own rising feeling of foreignness, distance, ignorance. As a measure of compensation you step into memories and associations which may link you to these anonymous fragments.
You decide to give up on the snap of the couple, if only because you have seen too many like them. The marked body part, a rear shoulder with a non-descript tattooed shape blurred by exposure to the sun and faded by the flesh’s daily hygiene, stays with you. Faceless, nameless, it is an emblem sapped of its personal and private worth, existing merely as a bodily fealty, as obligation to the eye of the institution which catalogues it. In the photograph, the body is alive, yet you are taken with just how lifeless it is; its sole purpose being but to offer the now meaningless mark to view. Cast into arbitrariness in this way, the body and the personality is betrayed, because the tattoo, a coloured scar, is there to commemorate a victory, a defeat, a love, a loss, a change of direction. It certifies for good that the body belonged to an event or a group; it certifies the body to a meaning of some kind. It is there to remind the body of the events which formed it. It sits in and on flesh, never too innocently against the random miniature geography of moles and wrinkles it is meant to outlast. The tattoo, immobilised, dumbed, now seems alien to what gave it life. For its continuing life, as an archive, is in photography, not in flesh. For this very reason – that the scars and the body markings remain as vapid records – these images lose their association with real pain. Although they were born from trauma as a result or a memorial, it is the very absence of trauma which is here so striking.
This absence of pain is not comforting. Yet it is the purpose of records for hospitals and prisons that they attempt to convey all things objectively. Such photographs do not even attempt to intervene in the circumstance under which the mark, or the wound, came to be. The mute stare of the camera that makes the record is the same stare which, on its historical arrival had promised so much. More than the truth which photography was supposed to transmit, simply came a new condition: the photographic record, the proof that something –anything – is in the world. With the photograph the thing (a person, a section or attribute of a person, an array of objects) or the scene (a room, a street, a stairway) now has a double existence, first as changeable entity and second as static, tautological proof of itself. Changes over time transfer the record to the status of history; in the absence of the object, place or person it verifies, it gradually assumes a life of its own. Some records anticipate these changes. Like portraits or photographs of streets, they exist together with a text.
But what about a photograph of a prisoner or a refugee, which is used to assist their incarceration or asylum? Once the person dies the pictures lose their initial purpose, because the photograph is no longer needed to identify them. These photographs are not always discarded serving to catalogue a type predisposed to misdemeanours, violence or simply mishap and poverty. Since today we are more suspicious of this kind of categoric inquiry, what do we do with all the records, which are returned to a state of namelessness and limbo, remaindered from an age of science and classification now in discredit?
We narrativise. We move sporadically between two poles of unemotive, scientific utility and storytelling. Their meeting point is a kind of science of suppositions between words and images, neither the same and neither fully satisfying what we seek to know.
II
Rosângela Rennó’s series of works begun in 1992 which have incorporated appropriated photographs with doctored texts (the Universal Archive), is an operation which explains as much as it withholds. The artist’s position with regard to both text and image, one of manipulative, partial ownership, enacts precisely what the viewer does to these images: groping for relationships, finding some until they slip away, then reconfigure differently. This dynamic of semantic rise and fall never leaves Rennó’s work, which never condones the deadness of archives nor attempts to explain them away.
The series shown for exhibition here in Australia is entitled Vulgo (1998) which, as the artist points out, is a word in Portuguese used to designate common people – the vulgus – and an alias, a sobriquet. As with previous works, they are taken from neglected glass photographic archives from the Penitentiary Museum of São Paulo (it might be worth mentioning here that the Latin vulgare is to make public), which the artist has enlarged to a size well beyond their intended workable proportions, and, in this particular series, highlighted areas in red. In a similar family of photographic practice, several artists since the early ‘eighties have quoted the stark physiognomic photographs from the nineteenth century to those of the Nazi regime in equally stark faces, joining them either by a common feature like eye colour, or simply presenting them as incurious, glum and forbidding, imparting a dominant blankness, vying with monochrome picture planes or the whiteness of the wall behind – a Minimalist figurality so to speak, rendering illegible and inanimate the most active and fecund of all semiotic fields, the face.
Instead of a large outward-looking face, in Vulgo Rennó has largely chosen the backs of heads and coloured their crowns with pale red and given them titles like, Phoenix, and Scorpio due to the shape the colour emphasises (a combination of what is there and artist’s subterfuge). The red is consistent with her recent work as a gesture of false labelling, allegorising, reconstituting bodies reduced to thumbprints, ear-shapes and the direction in which hair grows. What do these men remember and how are they remembered? Needless to say, every human has a memory and every human is inscribed with physical traces of time. These men have been subsumed by the diagrams which their bodies describe, hovering with submissiveness and vulnerability contrary to the supposed force and threat of their crime (information which the artist denies us). They are framed irregularly due to the clinical eye’s aesthetic disregard, a disregard which the artist has taken care to keep and aestheticise, and so to bring us closer to the unconscious aesthetic motives of this genre (Vulgo – the Vulgate was the Latin version of the Bible prepared by St Jerome in 4th century AD; the gospel was the law, but what new unexpected laws are shed through translation?). With these part-forms which the artist seems to have fabricated on these bodies we are returned to other images such as those used in the exhibition Cicatriz, featuring tattoos. The mock-heroic shapes and names connote the visual aggressive repertoire tattoos, bodily registrations which stigmatise the criminal body forever. One gets the eerie suspicion from these images that even the most accidental or partial criminal act of which we are all capable could then find itself verified on a part of our body: signs made after the fact which say that we were predisposed to unlawfulness.
III
Rennó’s present work affords an apposite and timely insight into Australia’s history and its art. Incarceration is, as we know, a process of making people absent, sequestering them from public view. Our country was a repository for all the people the English state wished to forget. Terra Australis was also a Terra nullis, a site of collective amnesia which in its formative stages is represented in little more than images for utilitarian purposes (science or topography) or in detritus. Conferred to silence, the voice of the repressed exists in small objects and broken pieces – one need only look to a place like Hyde Park barracks for this, where tens of thousands of remnants – pipes, money, rags, momentos, playing cards – were stowed away, lost and forgotten beneath the floor boards by the thousands of prisoners it once housed. And it is furthermore curious to see how these objects are now arranged there, once again aestheticised for our edification and amusement. Few people, I imagine, stop to think about why we are given just so many pipes to contemplate, cleaned and exhibited in serried rows, if only because of a convention which says more about us and less about the prisoner; the objects being subject to orderings analogous to the controls and inhibitions which brought them here.
Once photography is introduced to Australia, what is relevant to Rennó’s work is not really the pictures of miners or chain gangs, but of Aborigines, whose images never have the same identity or subjecthood and those of Whites. It is difficult to find an image in which an Aborigine stares at the camera with the same aplomb as a plain citizen of the colony: if the gaze is not blank it is a stare of fear trying to cover itself with an air of defiance. And seldom would these photographs be exhibited together with those of Whites, nor does the instinct of a non-indigenous viewer know to look at pictures of Aborigines in the same way. Our schooling is to look on them more as pseudo-scientific records rather than as simple pictures recording faces we neverbeheld physically. What we know less of is precisely what our history has chosen to know less of. What of the innumerable Aboriginal deaths in custody and, in this case, the images to which we are not exposed?
Earlier work of Rennó’s, like Fantastic Realism (1991/4) is also exceeding resonant to an Australian context in this regard. This work is an installation of projected black and white negatives of faces, distorted here and there owing to the angle on which they cast themselves on the wall. More nameless dead faces, stripped of name and disjunct of circumstance. Like the photographs of the backs of heads, they do not confront the spectator in any way but are like phantoms who wait the spectator’s intrusion; Rennó endows the dead and forgotten with a new spectral shape where each communicates through the very conventions and controls which instigated their silence. For this reason the text and the photograph have more in common in Rennó’s work than may at first appear. She does not apply text communicatively, nor uses the photograph as a vehicle for truth, rather denies the claims of texts and photographs to verisimilitude at the very point when such texts and photographs are most confident in imparting their message to the viewer. In its place Rennó substitutes several strands for a single trajectory, a fabulist’s secret replaces an objective account.
Why the repressed cannot be made to speak clearly is due to us, the viewers. Rennó’s work is significant in this sense, for warning us that the true outline of the generic other is distorted by the aestheticising eye of the prying beholder who arrives after the fact, a condition which this exhibition both unmasks and upholds.
Geczy, Adam. A science of suppositions: Rosângela Rennó’s Archive Project. In Vulgo [Alias] - Rosângela Rennó, Melissa Chiu (ed.). Sidney: University of Western Sydney-Nepean, 2000, p.34-39.