título de trabalho
work title
textos selecionados
selected texts
cabeça, corpus e membros, 2022
projeto terra de José Ninguém, 2021 projeto eaux des colonies, 2020-2021
good apples | bad apples, 2019-2023
lanterna mágica, 2012
Río-Montevideo, 2011/2016
corpo extranho africano, 2011
per fumum, 2010-2011
menos-valia [leilão], 2010
matéria de poesia, 2008-2013
febre do sertão, 2008
a última foto, 2006
apagamentos, 2004-2005
experiência de cinema, 2004
corpo da alma, 2003-2009
bibliotheca, 2002
espelho diário, 2001
série vermelha (militares), 2000-2003
cartologia, 2000
vera cruz, 2000
parede cega, 1998-2000
vulgo/texto, 1998
vulgo, 1997-2003
cerimônia do adeus, 1997/2003
cicatriz, 1996/2023
paisagem de casamento, 1996
hipocampo, 1995/1998
círculos viciosos (472 casamentos cubanos), 1995
imemorial, 1994
atentado ao poder, 1992
a bela e a fera, 1992
duas lições de realismo fantástico, 1991/2015
as diferentes idades da mulher, 1991
obituários, 1991
paz armada, 1990/2021
anti-cinema, 1989
Rennó ou a beleza e o dulçor do presente
Textos relacionados ao trabalho
Texts linked to the work the different ages of woman
[…] Na instalação Diferentes Idades da Mulher (1991) (35), Rosângela Rennó organiza um conjunto de nove fotografias de mulheres por ordem de idade numa escala ascendente/descendente, acrescentando textos sobre a parede e perfume de flores. A instalação tem sentido “didascálico” (1) ao tratar da condição da mulher nas diversas etapas da vida. Não importa quem são (a identidade das retratadas não tem qualquer importância) ou a idade; têm que seguir o rito existencial e a regra social e cultural que se cumprem imperturbavelmente na sociedade da amnésia. Esquecer não coincide exclusivamente com não lembrar, mas é também lembrar sem atentar para o processo de individuação. Lembrar-se e negar subjetividade. A raiz dessa instalação são as Alegorias das Etapas da Vida do Homem (ou da Mulher) e as Escalas da Vida, gravuras de fundo moralizante frequentes no século XVIII (2). A ideia de escala relaciona-se com aperfeiçoamento moral. Trata- se de representações arquitetônicas com degraus ascendentes e descendentes – inevitáveis no itinerário da existência – em forma de arco ou ponto. Suas partes mais baixas e extremas são nascimento e morte (ou batismo e extrema-unção na vida sacramental; por isso, os degraus são também espelhos da consciência). Rennó determina uma organização gráfica das fotografias e da escrita sobre a parede de modo a seguir, como um diagrama, o plano arquitetural das representações utilizadas nessas Alegorias e Escalas da Contra-Reforma. No entanto, a arquitetura de Diferentes Idades da Mulher, uma verdadeira Alegoria das Etapas da Vida da Mulher, foi invertida em forma de V, como se a ponte fosse vista especularmente, refletida no rio. Vinculada à ideia de árvore da vida, os atributos morais (ou funções culturais no sentido contemporâneo) nos remetem à ideia de ponte pela qual transitam as idades e cujo arco cruza o rio figurado da vida. Rennó utiliza perfume de rosa e jasmim para apontar o caráter volátil da matéria, sua transitoriedade. “Nem o odor [dizia Delacroix] nem o sabor se prestam a formar conjuntos sólidos e duráveis como a melodia ou a forma” (3). Simulacro dos odores do corpo idealizados, o perfume é culturalmente muito vinculado ao universo feminino como tática de sedução no jogo erótico (4). Em Diferentes Idades da Mulher, Rennó utiliza o perfume em excesso, a ponto de se tornar desagradável estar na sala de exposição. A obra converte sedução em repulsa e abandono. Como líquido, o perfume remete às águas do rio, aludindo à ideia de transitoriedade própria da metáfora da vida como um rio. As Alegorias e Escalas se referem ainda ao ciclo das estações presidido pelo Pai Cronos, encarnadas pelas quatro idades do homem. Ao trabalhar tão diretamente com o transcurso da vida, do nascimento à morte, Rennó opera a crítica, através da articulação de imagens, da própria função simbólica da fotografia como processo de retenção do tempo. Imagens estáticas de pessoas são retratos inesperadamente ativados, ainda que permanecendo inalterados. Articulados uns com os outros, todos ganham o sentido paradoxal de serem meramente fugidios congelamentos do curso inexorável do tempo. […]
1. Didascália era, na Grécia antiga, o conjunto ordenado de preceitos e instruções relativos à represen- tação teatral, de ordinário elaborados pelo autor dramático e dados aos atores que lhe representavam as obras, conforme o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
2. A este propósito, ver Carne y Muerte, Gloria e Inframundo, de Jaime Cuadriello, em Juego de Ingenio y Agudeza, la Pintura Emblemática de la Nueva España, México, Museu Nacional de Arte, 1994, com relação ao México. A interpretação dessas representações neste parágrafo são extraídas do texto de Cuadriello. Rennó partiu de um velho cromo com uma dessas alegorias das etapas da vida da mulher, legendado em espanhol, e que existia na fazenda de sua família em Minas Gerais.
3. Edmond Roudnitska, L’Esthétique en question, Paris, PUF, 1977, p. 164.
4. Cumpre fazer uma referência a Objetos de Sedução (1975), de Lygia Pape, que reúne um conjunto de quinquilharias, inclusive perucas, unhas e cílios postiços, batom, vidros de perfume.
HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In Rosângela Rennó. Edusp: São Paulo, 1996, pp. 115-191.