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Cicatriz. Fotografias de tatuagens do Museu Penitenciário Paulista e textos do Arquivo Universal


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    Os textos e fotografias que pontuam o quarto número desta revista fazem parte do projeto CICATRIZ (1995/1997), baseado no "diálogo visual" entre fotografias de tatuagens do acervo do Museu Penitenciário Paulista e textos de um outro projeto de minha autoria intitulado Arquivo Universal. 

    As fotografias de tatuagens foram produzidas nas primeiras décadas do século, no hoje extinto Departamento de Medicina e Criminologia, pelo Dr. José de Moraes Mello, psiquiatria-cheſe da Penitenciária do Estado entre 1920 e 1939, período em que provavelmente se concentrou a maior parte da produção fotográfica realizada naquele presídio. São imagens de forte apelo visual: fragmentos de corpos dos presidiários fotografados com requinte, em poses estudadas, diferentes dos estudos fotográficos similares de caráter determinista realizados, no século XIX, por "cientistas criminalistas" como Lombroso, De Blasio e Lacassagne. Os negativos em vidro de tais imagens produzidas haviam sido destinados ao esquecimento, distribuídos por diversos porões no complexo do Carandiru e posteriormente reunidos, sem nenhum critério de acondicionamento ou arquivamento, em uma sala da ACADEPEN. 

    O Arquivo Universal, criado em 1992, é um arquivo virtual e infinito de imagens latentes armazenado no computador, constituído por excertos de textos jornalísticos que contêm pequenos relatos de histórias pessoais tornadas públicas através dos jornais, envolvendo a presença ou a existência de uma imagem fotográfica. Ao serem inseridos no computador, os textos são lapidados de maneira a eliminar todos os "excessos", tais como nomes, locais e referências temporais. Uma informação polida e transparente que contém uma imagem latente que o espectador realiza durante o exercício da leitura. O corpo da letra, da palavra e do texto se tornam o corpo fotográfico. A virtualidade do arquivo permite que sejam realizados diferentes conjuntos de imagens, cumprindo tarefas diferentes, em diferentes suportes, em função do espaço destinado à sua veiculação, do contexto e do próprio teor da mensagem. 

    Do ponto de vista formal, Cicatriz foi adequado a dois suportes distintos. Concebido inicialmente como instalação, foi apresentado no Museum of Contemporary Art of Los Angeles (MOCA) de agosto a outubro de 1996. As paredes da galeria foram tratadas como uma pele sobre a qual se inscreveram, em grandes dimensões, 18 fotografias de tatuagens e 12 textos em baixo relevo que se ilustravam mutuamente. Em 1997 o projeto foi adaptado ao formato de um livro no qual a alegoria da pele está presente nas páginas em papel pergaminho sobre as quais se inserem 34 fotografias e se escarificam 32 textos, por meio de relevo seco. 

    Do ponto de vista conceitual, o projeto que tinha uma intenção estética baseada na intertextualidade entre imagens e textos provenientes de repertórios diferentes adquiriu o caráter de ação política em dois níveis. Primeiramente, o aspecto menos visível, tratava-se também da intervenção direta sobre uma instituição governamental o Museu Penitenciário. Numa segunda instância, a recontextualização e a visibilidade de um conjunto de fotografias do Museu daria o "tom da conversa" sobre anonimato, identidade, memória, disciplina e poder. A intervenção no Museu Penitenciário se concretizou através do longo trabalho de recuperação de um conjunto de negativos em vidro de seu acervo. Em abril de 1995, quando soube da existência do vasto arquivo, interessei-me particularmente pelas fotografias de tatuagens, com vistas a incorporar algumas delas a meu arquivo pessoal, por meio de reproduções. O estado precário de conservação do material fotográfico, a inexistência de um sistema de arquivamento das imagens que possibilitasse qualquer consulta, a total inexperiência do pessoal envolvido na guarda do acervo e sobretudo a urgência em salvar uma parte da história penitenciária do país me levaram a elaborar e oferecer à ACADEPEN um projeto de higienização e reacondicionamento daqueles negativos. O projeto serviria como ponto de partidą para a constituição de um verdadeiro Museu Penitenciário, por meio de uma parceria entre a artista e o Estado. A empreitada, inicialmente apoiada pela ACADEPEN, tornou-se algo muito maior no decorrer dos nove meses subsequentes em que lutei pela autorização para realizar o projeto. Compreendi que a intervenção no Museu Penitenciário, cuja finalidade se baseava em princípios de ordem estética, era também uma ação política. Dois sucessivos pareceres negativos da assessoria jurídica da Secretaria de Administração Penitenciária, a inoperância e a estagnação daquilo que no jargão penitenciário é simplesmente o "sistema" e suas ramificações apresentaram-me a verdadeira dimensão do que pode ser uma atitude política do artista. O Estado tem dificuldade em oferecer e não está habituado a receber. O artista contemporâneo está habilitado e autorizado a discutir, manifestar-se sobre, abrir caminhos em, e circular por territórios não necessariamente artísticos, e isso engloba também o institucional. Portanto, a realização do projeto Cicatriz resulta também da discussão sobre a atitude do artista. 

    Durante os seis meses decorridos entre a autorização para o início do projeto de recuperação dos negativos e a realização da instalação Cicatriz no MOCA-Los Angeles, fiz o trabalho de identificação de todos os negativos em vidro de tatuagens remanescentes, em bom ou razoável estado de conservação, dos quais foram selecionados cerca de 300, o primeiro set de trabalho. Foram realizados um fichamento completo deste material, o diagnóstico de seu grau de deterioração, a classificação por ordem de número de identificação penitenciária e a duplicação dos negativos, com assessoria do Centro de Conservação e Preservação Fotográfica da FUNARTE. O trabalho de higienização e reacondicionamento dos demais negativos de tatuagem ainda se encontra em processo. Do primeiro set, foram selecionadas as 18 fotos que compuseram parte da instalação Cicatriz e as 34 que integram o protótipo do livro homônimo. 

    O enorme volume de material fotográfico encontrado e a reconhecida importância que a Penitenciária do Estado - modelo de instituto correcional para a América do Sul - teve desde sua inauguração em 1920 até meados dos anos 50, me faz supor que um setor de identificação criminal e uma Seção de Medicina e Criminologia muito bem equipados funcionaram por pelo menos 25 anos. Entretanto, a falta de informação textual sobre o material fotográfico não me autoriza a tirar conclusões sobre o sistema de identificação adotado nem sobre as possíveis pesquisas fisionômicas ou frenológicas que possam ter sido realizadas; isto deverá ser tarefa para os próximos pesquisadores. Interessaram-me mais as razões que levaram este vasto arquivo de retratos "dupla-efígie", tatuagens, corpos nus, marcas, tumorações, redemoinhos de cabelo, etc, ao oblívio. Parafraseando Walter Benjamin e Paulo Herkenhoff, uma névoa espessa (1) recobre a história do sistema penitenciário e a torna opaca. É nessa opacidade que reside meu interesse pelas imagens que já tinham a origem e o destino selados: a invisibilidade. Origem: invisibilidade, quando me refiro à característica intrínseca daquelas imagens que foram produzidas para serem arquivadas e para que seus referentes fossem definitivamente esquecidos. Destino: invisibilidade, porque estas imagens que se confundem com a escatologia do próprio sistema penitenciário foram quase destinadas ao lixo. 

    As fotografias abandonadas de tatuagens, quando devolvidas à luz, se tornam testemunhos daquilo que Foucault chamou de o olho que tudo vê, instrumento do poder disciplinar que se exerce tornando-se invisível; e, ao contrário, impõe àqueles que submete um princípio de visibilidade obrigatória (2). Tornam-se signos de um projeto de amnésia institucional e deliberada. Bem mais recentemente, a solução encontrada para apagar uma das maiores cicatrizes da história da cidade de São Paulo a memória do massacre dos 111 da Casa de Detenção - foi a decisão da demolição iminente do conjunto arquitetônico do Carandiru: um projeto de amnésia histórica. 

    Finalmente, a segunda tarefa política visibilidade e a recontextualização das fotos de tatuagens - foi cumprida através de uma estratégia de intertextualidade. Não associar a imagem do acervo do Museu Penitenciário a qualquer texto de caráter descritivo ou ensaístico, mas sim a uma outra narrativa independente significava a justaposição de histórias particulares: as que se ocultam no desenho da tatuagem e as que são relatadas nos textos do Arquivo Universal. Ambas são poderosas do ponto de vista imagético e se complementam, tanto na afinidade da essência quanto no contraste da aparência. 

    Afastar a fotografia de seu contexto natural - o sistema de identificação ou o estudo científico - não é esvaziá-la de seu conteúdo simbólico inicial, mas libertar seu referente da condição de estatística penitenciária. Devolver visibilidade a essas fotografias significa expor a dor da privação do direito de ser livre e da perda da identidade e o desejo de resistir à amnésia e ao anonimato. No cárcere, a disciplina se mantém por uma política coercitiva sobre o corpo do indivíduo que termina por reduzir-se a uma figura criminosa sem nome. A tatuagem dentro do presídio pode ser considerada como um índice de resistência do indivíduo ao anonimato, à perda da identidade, à amnésia. A dor de fazer-se marcar, como afirmou Mishima, poderia muito bem ser a única prova da persistência da consciência dentro da carne (3). Histórias particulares como paixões, juras de vingança ou de amor eterno, pactos de sangue são dramas individuais que se combatem nas prisões com disciplina e vigilância, mas que sempre encontram uma maneira sub-reptícia e contundente para aflorar, sobretudo nas tatuagens. Ao relatar e imaginar os pequenos dramas humanos, os textos do Arquivo Universal entram em sintonia com os desenhos das tatuagens e potencializam as imagens do Museu Penitenciário. Atuam como cúmplices das imagens, devolvem a dimensão de particular e individual às imagens de "arquivo morto" e humanizam aqueles indivíduos que não têm mais nome.

    No projeto Cicatriz buscou-se dar à própria fotografia o direito de não abdicar de suas próprias qualidades de imagem (4) e de revelar, ainda que não explicitamente, aquilo que está, não no discurso institucionalizado, mas sob a pele do indivíduo - o indizível. Colocar esta fotografia dentro do espaço institucional de arte ou dentro do "livro de artista" representa, para mim, a vingança daquele que, por não poder falar, escreveu na pele e, ao mesmo tempo, 0 triunfo/redenção da imagem abandonada. 


         1.    Idéia desenvolvida por Paulo Herkenhoff no texto "Rennó ou a Beleza e o Dulçor do Presente" em Rosângela Rennó (São Paulo: Edusp, 1997). 
        2.     M. Foucault em Vigiar e Punir (Turim: Einaldi, 1975), р. 205. 
        3.    Y. Mishima em Sol e Aço, citado por Luciano Raposo no livro Marcas de Escravos (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1989), p. 25. 
        4.    C. Phéline em L’Image Accusatrice (Paris: Cahiers de la Photographie, 1985), p. 116.


    RENNÓ, Rosângela. Cicatriz. Fotografias de tatuagens do Museu Penitenciário Paulista e textos do Arquivo Universal. In Discursos Sediosos. Crime, Direito e Sociedade. Ano 2, número 4. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1997, pp. 15-20.



    Rennó ou a beleza e o dulçor do presente


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    • Série Cicatriz


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      […] O ângulo de visão é o que estabeleceria, para Cicatriz de Rosângela Rennó, a conexão mais imediata entre a câmera fotográfica e a prisão, com seu modelo arquitetônico orientado pela panóptica (1). O espaço seria de laboratórios de poder. Naquilo que seria o território lombrosiano feito em fotografia, Rennó procura encontrar outros índices de enquadramento e resistência, de individuação, identidade e diferença. “Macbeth, Hamlet e Otelo têm cada um a sua maneira de matar e de confessar”, afirma Enrico Ferri em 1902; “Essa verdade foi recentemente adquirida pela ciência, mas tinha sido adivinhada pela arte. Para a precisar, entre o tumultuar confuso das observações comuns e das verdades verossímeis, mas superficiais, recorreu a antropologia criminal ao bisturi da anatomia psicológica, nas cadeias e nos presídios, e socorreu-se a arte humana da intuição dos grandes gênios”(2). Cicatriz de Rosângela Rennó é, de modo crítico, uma fusão panóptico-lombrosiana. A arquitetura vira o olho da câmera, como uma grande-angular no espaço da penitenciária. O panóptico talvez seja a coisa mais semelhante à câmera munida de uma lente grande-angular. No conjunto de trabalhos em torno de Cicatriz (3), Rennó escrutina como se dá a construção do panóptico visual através da fotografia. A máquina fotográfica não é acessório, mas definição e conclusão, conjuntamente instrumento e prova, como afirma Giorgio E. Colombo (4). A artista extrai seu material relativo a esse modo de construir a extensão do olho fotográfico como a própria extensão do olho do Estado. Essa incidência do olhar fotográfico do Estado recai sobre o mais íntimo do corpo e sobre a relação do indivíduo com o próprio corpo. A câmera seria um olho onividente. Já não se vigia o lugar onde está o corpo do prisioneiro, mas todos os lugares do corpo do prisioneiro. No ambiente penitenciário e lombrosiano, os corpos são fotografados, marcados por signos, catalogados – “o tipo criminoso é retalhado em sua definitiva diversidade”, diz o mesmo Colombo. Constrói-se um homem indiciário, conforme os padrões da criminologia. A lente da câmera há muito já passara a constituir-se numa espécie de olho poderoso, como a da torre central do pan-óptico nas penitenciárias. Como no caso da ação penitenciária e da polícia técnica, Rennó passa a ler o próprio corpo do suspeito, no caso já não mais o preso, mas a própria fotografia, com o seu déficit social. Finalmente, pode-se dizer que o fotógrafo é um ladrão de almas. Rosângela Rennó produz uma bertillonage (5) poética. Encontra indícios e analogias de um discurso inaparente, subterrâneo ainda que correndo à flor da pele ou em sua espessura (6). 

      Desde os grandes mestres do Japão até aquele Índio do Brasil, “as razões para uma pessoa se tatuar têm sido discutidas de muitos modos por antropólogos, criminologistas e psiquiatras: atrair boa sorte ou espantar doenças ou o mal; provar ou exibir seu lugar ou status; decorar- se em ato de vaidade ou de auto-estima”, escreve Sandi Fellman (7). Para além dessas razões, entre as imagens de tatuagem selecionadas por Rosângela Rennó para o projeto Cicatriz, está a do presidiário apelidado d’Artagnan, que faz tatuar as inscrições alusivas à polícia: MORT AUX CONDES e MORT AUX VACHES, uma em cada pé, além de ENFANT DU MALHEUR. Outro interno faz inscrever em seu corpo as palavras TRAIÇÃO E VINGANÇA. São inscrições da resistência ao processo penitenciário. No Museu de Arte Contemporânea (MoCA) de Los Angeles (1996) a instalação Cicatriz é composta por dezoito fotografias e doze textos do Arquivo Universal que falam de cicatriz, sendo que os elementos têm uma disposição randômica. Os textos são realmente esculpidos na parede e as fotos encaixadas na parede de um modo absolutamente nivelado. “É uma instalação epitelial”, diz Rosângela Rennó, “pode-se passar a mão na parede e não há nada sendo projetado para fora. Só os textos estão em recesso”(8). Desse modo, Rennó deixará a galeria inteiramente vazia, nada ocupando de sua área. Os textos seriam, pois, como poros dessa exposição. As cicatrizes, nesses textos, são marcas tanto físicas quanto metafóricas. São marcas na alma porque são marcas no corpo. A pele que se tatua é a pele do cubo branco, território da arte. 

      Rosângela Rennó, no entanto, não adota uma posição maniqueísta ou benevolente na seleção das imagens. No interior da penitenciária existe uma prática, pelos condenados por crimes contra a propriedade e a vida, de se posicionar contra os praticantes de crimes de origem sexual (estupradores) e contra a diferença sexual (homossexuais), discrepante dos padrões dominantes numa sociedade machista. O grupo de presidiários dominante tinha o código, em geral, de fazer tatuar no rosto uma pinta, pequeno círculo negro, nos estupradores e homossexuais. O serviço fotográfico do Museu em Carandiru registrou inúmeros desses casos. A privação da vida heterossexual ativa aos presidiários resultava em mecanismos de compensação de fundo psíquico variado. Rennó apresenta algumas fotos de partes de rostos marcados por aquelas pintas, sinal da diferença (9). Estranhamente, a amnésia agora requer a lembrança, permanente, explícita e indelével. Na reorganização do capitalismo pelos presidiários e do sistema informal de poder entre os internos no presídio o estigmatizado se transforma em estigmatizador. 

      Não se pode discernir. Não se pode nomear. É proibido identificar. São fatos inomináveis. Não se trata do indizível na especulação filosófica ou nos entremeios da metafísica. “Aquilo de que não se pode falar, guarda-se em silêncio”, escreve Ludwig Wittgenstein no prólogo de seu Tractatus Logico-Philosophicus (10). O que é uma investigação filosófica de Ludwig Wittgenstein dos limites do conhecimento é, mutatis mutandis, parte de uma estratégia social no interior dos limites confinantes de um sistema de dominação: o que não se pode mostrar (isto é, tornar visível) deve lançar-se em sombra. A obra de Rennó trabalha então sobre uma área de recalque. Seu projeto não é apenas o mais óbvio, que seria iluminar o terreno social, mas sobretudo mapear a sombra. Com imagens visuais ou verbais, Rennó sabe, como Walter Benjamin, que “renunciar ao homem é a mais irrealizável de todas as exigências”(11).

      A obra de Rosângela Rennó enquadra-se naquele conceito de fotografia enquanto uma prática de significação, enunciado por Victor Burgin como “trabalho com materiais específicos, dentro de um contexto social e histórico específico, e para objetivos específicos”. Pode parecer paradoxal afirmar que para a artista não houve uma decadência do papel da fotografia de tornar visível, evidenciar e aproximar. Sua obra aponta para o fato de que, no processo de amnésia social, a fotografia pode ser nova e eficiente forma de seu agenciamento, um jogo de esquecimento. Não é necessariamente a garantia absoluta de sua superação, como pareceu para alguns. Tornar visível é, portanto, apontar, dizer, recuperar a história, extrair do esquecimento. O principal do trabalho de Rennó talvez não seja resgatar a identidade, mas evidenciar o esquecimento produzindo uma fisionomia social pela recuperação de atitudes ante a fotografia e não meramente de imagens. E a partir daí, Rosângela Rennó age contra a inviolabilidade do esquecimento. Resgatar o sujeito no limite. Na arte brasileira o conceito de amnésia social de Rosângela Rennó pode ser comparado com o de “voz do gueto” de Cildo Meireles, em obras como Tiradentes: Totem – Monumento ao Preso Político (1970) e Olvido (Oblivion) (1989), ou com Emmanuel Nassar (12) a partir dos anos 80. A obra dessa artista opõe-se a qualquer operação de aphaeresis, em que a figura de retórica de supressão de um som é tomada como metáfora da supressão da própria voz sob a repressão política. Gueto seria a situação de confinamento e, sobretudo, vácuo, na qual se confronta com a impossibilidade da voz, seja ela um grito de dor ou denúncia. São ações em circunstâncias extremas em que o artista põe-se como duplo do Outro como única possibilidade de reconstituição da voz do oprimido. O que caracteriza essa produção de Rosângela Rennó é a compreensão de que o compromisso está também na forma de atuar e de organizar a obra. Victor Burgin sustenta que a imagem representa uma repressão contingente de práticas latentes: é nesse sentido que ela é ideológica (13). Naquela amnésia, o indizível não é apenas o nome esquecido e o anonimato, mas também a condição desse sujeito, transformado em ser inecessário pela ordem social. O indizível, para alguns, ficaria reservado a Deus, ou a certa tradição metafísica, como diria Wittgenstein. Na negação da imagem, Rennó revela o indizível, no recurso à extrema contundência do visível ou na sua aflitiva ausência. Sua obra, naquilo que contém de crítica à cultura, não cai na tentação de esquecer o indizível, porque busca, com toda a impotência que se queira de uma fotografia como imagem problematizada, que proteja o homem oprimido do indizível (14). 


          1.    Uma construção que permite um sistema permanente de vigilância de todas as celas de uma prisão através de uma torre central, na qual o vigilante não é visto pelos presidiários, que então nunca sabem se estão sendo vigiados e, desse modo, internalizariam a própria vigilância. 
          2.    Os Criminosos na Arte e na Literatura, 3. ed., Lisboa, Livraria Clássica, 1923. 
          3.    Grande presídio do Estado de São Paulo, onde foram massacrados 111 presidiários em 1992 numa rebelião motivada pelas péssimas condições do sistema penitenciário. O fato tornou-se agente na arte brasileira, como se enumera na nota 49 supra. Rosângela Rennó procura Carandiru exclusiva- mente no arquivo fotográfico institucional e não pelo massacre. Inicialmente a direção do Presídio do Carandiru titubeou em autorizar a realização do projeto de Rennó por defesa da privacidade dos presidiários, ainda que todos provavelmente já mortos. No entanto, a artista apresentou-lhe uma edição da tese de doutorado de Francisco Alves Corrêa de Toledo, Contribuição ao Estudo das Tatuagens em Medicina Legal (São Paulo, Seção de Obras do Estado, 1924), na qual são publicados alguns prontuários. Para manutenção da privacidade dos internos fotografados, a direção do Carandiru exigiu da artista que não reproduzisse qualquer número de identificação dos presidiários porventura existentes nas fotografias. O Museo Cesare Lombroso, mencionado neste texto, também restringe a visitação pública. 
          4.    Giorgio E. Colombo, “Le Stimmate del Galeotto”, Phototeca, 1(1): 128-120, 1980. 
          5.    O escrivão da polícia francesa Alphonse Bertillon propõe, em 1876, o uso de uma antropometria somática recurso auxiliar da identificação, conforme Maurício Lissovsky, “O Dedo e a Orelha, Ascensão e Queda da Imagem nos Tempos Digitais”, Acervo, op. cit., pp. 55-74. 
          6.    A busca da espessura da imagem, também com recurso à tatuagem, é encontrada paralelamente na obra da pintura Adriana Varejão, a partir de sua pintura Extirpação do Mal por Incisura (1994). 
          7.    “Spirituality and the Flesh: The Japanese Tattoo”, em The Japanese Tattoo, Nova Iorque, Abberville Press, 1986, p. 14. 
          8.    Depoimento oral ao autor em 10 de agosto de 1996. Na Bienal de São Paulo (1994), os textos estavam incrustados na parede e na mostra Crudo y Cocido a instalação se dava nos vãos em profundidade máxima do vão a 90 cm ou na superfície, como continuidade das paredes. 
          9.    Por seu acordo com o Museu Penitenciário, Rennó aqui não apresenta o rosto inteiro dos presidiários. 
        10.    Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, tradução portuguesa de M. S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. 
         11.   Walter Benjamin, “Pequena História da Fotografia”, em Magia e Técnica, Arte e Política, op. cit., p. 102. 
        12.    “Emmanuel Nassar: Arte de Solidões”, em Emmanuel Nassar, Niterói, Galeria da UFF, 1996. 
        13.    Victor Burgin, “Photographic Practice and Art Theory”, em op. cit., p. 67. 
        14.    Aqui foi realizada uma paráfrase de uma passagem de Theodor Adorno em Prismas, tradução espanhola de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962. 


      HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente (excerto de texto). In Rosângela Rennó. Edusp: São Paulo, 1996, pp. 115-191.


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      Identidades sequestradas


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      • Série Cicatriz


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        Interessada em resgatar a fotografia anônima do esquecimento ao qual foi relegada por uma sociedade que confia à imagem técnica a tarefa de construir uma identidade ao mesmo tempo única e tipológica, com o projeto Cicatriz, Rosângela Rennó confere a essa investigação um significado ainda mais preciso por sua circunscrição extrema.

        Cicatriz é resultado da apropriação e seleção de um conjunto de imagens que integram um acervo de cerca de mil e oitocentas fotografias de tatuagens, realizadas provavelmente entre as décadas de 10 e 40, pelo psiquiatra José de Moraes Mello, na Penitenciária do Estado, no Complexo do Carandiru (São Paulo). Por suas peculiaridades, este projeto coloca Rosangela Rennó diante de uma reflexão, que inclui não apenas a fotografia enquanto evidência ade uma identidade antissocial, mas ainda e, particularmente, uma concepção de corpo, muito próxima daquele questionamento da microfísica do poder proposto por Foucault em Vigiar e Punir.

        A própria artista usa a ideia dos corpos dóceis de Foucault para definir a relação dos presos com o trabalho do doutor Moraes Mello, a quem parecem revelar, sem qualquer oposição, a própria intimidade (1). A análise das fotografias executadas pelo psiquiatra revela, de fato, a existência de um vínculo de proximidade entre a câmera e os fragmentos anatômicos que trazem a marca da tatuagem. Dessa proximidade resulta uma visão diferente daquela de Lombroso e Lacassagne, que buscavam na documentação da tatuagem um indício a mais para a configuração do perfil do criminoso como um ser primitivo e ignorante. Por isso, as tomadas destes focalizam integralmente o corpo do prisioneiro, ou o retratam em plano americano, de frente e de costas, ao contrário do trabalho de Moraes Mello, que se caracteriza pela atomização de seu objeto de estudo. O psiquiatra brasileiro registra preferencialmente as mãos e os braços do preso, detendo-se no rosto só quando o queixo ou as maçãs do rosto trazem a marca da tatuagem.

        Como, até o momento, Rosângela Rennó não encontrou referências sobre Moraes Mello, seria arriscado traçar um paralelo entre sua prática e aquela de Lombroso e Lacassagne. Uma inferência, porém, pode ser feita a partir de Contribuição ao Estudo das Tatuagens em Medicina Legal, publicado em 1926 pelo doutor Correa de Toledo, no qual este cita o trabalho do Carandiru e aventa a hipótese de que o prisioneiro se tatua para evadir imaginariamente da cadeia, para realizar em si uma marca, mesmo à custa da dor física (2). 

        Fragmentação, proximidade da objetiva, composição cuidadosamente estudada, disposição, não raro, simétrica das partes a serem fotografadas são algumas das características das imagens escolhidas para estruturar a narrativa de Cicatriz. O termo narrativa não é abusivo neste caso: a artista cria sequências visuais, ora recorrendo ao dispositivo da semelhança tipológica (agrupamento de mãos, braços, rostos, por exemplo), ora acentuando ainda mais o caráter dissociativo do close-up, que revela um detalhe para ocultar a totalidade da qual o fragmento foi retirado. O efeito narrativo é reforçado pelo uso de textos relativos a cicatrizes, extraídos daquele Arquivo Universal que vem sendo constituído por Rosângela Rennó desde 1992.

        Se o objetivo geral do Arquivo Universal é explorar a dimensão da imagem ausente, elaborada a partir de um vestígio indicial em textos jornalísticos, simetricamente especular à falta de identidade daquele arquivo de retratos, que tem revelado inúmeras possibilidades combinatórias, no caso de Cicatriz, a problemática da ausência é ainda mais presente e determinante. Cicatriz traz em si a marca da ausência social em, pelo menos, dois níveis. Ausência/sequestro de um corpo, que a justiça moderna transformou numa categoria abstrata, num sujeito jurídico, ao qual se aplicam uma economia dos direitos suspensos, uma tecnologia política, diretamente emanada das relações de poder. Essas relações o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais (3). Ausência de qualquer memória, apesar da existência de um vasto arquivo fotográfico, haja visto o estado de abandono em que se encontram os quase quinze mil negativos produzidos na Seção de Medicina e Criminologia da Penitenciária do Estado de São Paulo. 

        Com Cicatriz, Rosângela Rennó põe à mostra sinais indeléveis de danificação/privação, marcas de experiências dolorosas, que revelam, com grande eficácia, o mecanismo constitutivo da microfísica do poder punitivo, para o qual o condenado é uma codificação do menos poder, é um incorpóreo (4). Não deixa de ser significativo, neste contexto, o caráter artístico que Moraes Mello conferia a suas imagens, caráter dilatado pela ampliação e pela disposição narrativa que alguns destes ícones ganharam na instalação da artista mineira no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles.

        Ao se apropriar de belas imagens e ao enfatizar seu caráter artístico, Rosângela Rennó realiza duas operações simultâneas. Chama mais uma vez a atenção para o uso disciplinar da fotografia, que produziu milhões de retratos forçados (5), e permite discutir em profundidade a noção de corpo dócil aventada por Foucault.

        O que é um corpo dócil? É um corpo sob constante controle, ao qual uma coerção ininterrupta impõe uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, o movimento. É resultado de uma anatomia política, graças à qual é exercida uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos (6).

        O que revelam as imagens do doutor Moraes Mello? Um corpo que se oferece obedientemente à objetiva, que expõe disciplinadamente fragmentos de uma identidade, que tenta evadir do confinamento graças à fantasia, que se deixa desarticular, esquadrinhar, recompor, que atenua com a estetização das imagens a coerção da qual é objeto. Nesse conjunto iconográfico, parece ser determinante a busca da cicatriz como signo diferencial por parte do preso, numa resposta talvez inconsciente àqueles rituais de punição que caracterizavam a justiça até fins do século XVIII e dos quais a marca a ferro quente era um dos elementos menos dolorosos. Mas nem por isso menos direto, uma vez que o corpo era atingido física e simbolicamente. Se a justiça moderna propõe práticas mais indiretas, o corpo do prisioneiro não deixa, contudo, de ser um instrumento, de ser colocado num sistema de obrigações, entre as quais pode ser incluída a fotografia judiciária. O que pretendia, afinal, o bertillonage? Identificar e individualizar o sujeito criminoso em seu estado civil e em seus antecedentes penais. Identificar e individualizar o sujeito criminoso em seu estado civil e em seus antecedentes penais. Identificar sobre o culpado os traços genéricos do desvio da norma graças a um ritual de subtração da identidade em prol da construção do tipo criminoso (7).

        O que revelam as imagens ampliadas e recompostas por Rosângela Rennó? Um corpo dissociado e esquecido, resgatado por um gesto que tenta trazer de volta elementos significativos de um momento da fotografia, que acreditava no poder indicial da imagem técnica para configurar uma noção de identidade individual e coletiva, singular e serial ao mesmo tempo. A evidência de uma identidade criminosa, que não passa de uma abstração real (8), acaba por explodir na instalação de Los Angeles. Se não fosse pelo contexto evidenciado, as imagens repotencializadas poderiam remeter a outras tatuagens, a outras cicatrizes, a outras dissociações. A prova de sua proveniência é, porém, indispensável: Rosângela Rennó, através dela, realiza um gesto não apenas estético, mas também político. Por trazer novamente à lembrança a segregação e a manipulação de identidades sequestradas, e aquela cicatriz que o Carandiru representa para a sociedade brasileira após o massacre de 1992.

        Se o massacre dos cento e onze presos, ocorrido a 2 de outubro de 1992, reverbera sutilmente em Cicatriz, o desmascaramento da naturalidade da violência pode ser considerado um dos eixos fundamentais da proposta de Rosângela Rennó. Bastaria lembrar, para tanto, os trabalhos dedicados às crianças da Candelária (1993) e aos operários mortos durante a construção de Brasília (1994), nos quais a naturalidade do registro fotográfico é colocada em xeque e reportada a um uso social preciso. O anonimato dos personagens parece remeter a uma sequência interminável, anterior e posterior aos acontecimentos em foco (9), da qual emerge o aspecto menos moderno do Brasil. É nele que se concentram todas as contradições de uma sociedade profundamente dividida, que se projeta no futuro sem ter resolvido problemas ancestrais. E é sintomaticamente a ele que se volta uma boa parcela das últimas produções de Rosângela Rennó, interessada em revelar uma modernidade problemática, para a qual a fotografia pode ser tanto um álibi quanto uma visão engajada na desconstrução dos mecanismos do poder.


            1.     Depoimento de Rosângela Rennó à autora (São Paulo, 15 set. 1996)
            2.    Id.
            3.    Michel Foucault, Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1977, pp. 15, 16, 18, 28.
            4.    Id., p. 31.
            5.    Christian Phéline, L’image Accusatrice. Laplume, AACP, 1985, p. 51. Phéline denomina retrato forçado a instrumentalização social da fotografia por parte da justiça disciplinar, alicerçada em procedimentos de recenseamento, observação e descrição dos indivíduos perigosos e irresponsáveis.
            6.    Foucault, cit., pp. 126-127.
            7.    Foucault, cit., p. 16; Phéline, cit., p. 57.
            8.    Phéline, cit., p. 65
            9.    Tomo esta idea de Nuno Ramos, que a enunciou no catálogo da exposição 111, dedicada aos presos massacrados no Carandiru. Ver: 111. São Paulo, Gabinete de Arte, jun-jul. 1993, p.38.


        FABRIS, Annateresa. Identidades sequestradas. In SAMAIN, Etienne (org.). O Fotográfico. São Paulo: Hucitec/CNPq, 1998.


        Cicatriz


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        • Série Cicatriz


        Texts linked to the work Scar Series


          Rosângela Rennó belongs to a generation of young Brazilian artists who, while schooled in the photojournalistic and social documentary traditions of their native country, have opted to use photography in more experimental ways, embracing new artistic languages from the graphic arts, architecture, cinema, and design to expand the possibilities of the medium. Rennó, educated as both a fine artist and an architect, hails from Belo Horizonte, the third largest city in Brazil. Trained at Escola Guignard, an institution widely known for its emphasis on drawing over painting and sculpture, Rennó quickly moved on to adopt photography as her preferred medium. In the early 1980s, she gravitated toward the Brazilian conceptual movements of the 1960s and 1970s, and especially toward the work of Cildo Meireles, Antonio Manuel, Luiz Alphonsus, and Waltercio Caldas, whose art became at that time widely accessible through a series of publications sponsored by Fundação Nacional de Arte (National Foundation for the Arts) (FUNARTE) (1). The anti-establishment and combative tactics of Meireles, the experimental use of photolanguage and conceptual manipulations by Alphonsus, the predilection for artistic interventions directly on a journal's printed pages by Manuel, and the visual and verbal interplays of Caldas were instrumental in defining new directions for Rennó, whose interest in photography and the power of the image positioned her outside of traditional artistic expressions prevalent in 1980s Brazil.

          Not easily categorized, Rennó's work was initially included in photography exhibitions; her first international appearances were in shows that dealt with contemporary Brazilian photography. In recent years, her work has been shown in exhibitions that deal more with contemporary strategies and issues and less with straight photography. Rennó's work involves the appropriation of found photography (I.D. photographs, snapshots, newspaper images, and more recently, a medical archive) to create pieces in which the issue of authorship is subsumed to the power of the anonymous image. She is more interested in the subject represented than in the formal qualities of the image or in knowing who took the photograph. Like Roland Barthes, Rennó believes that photographic recordings function as an antidote to human forgetfulness. In reconstructing memory Rennó does not dictate the subject matter, but rather takes what others - street or commercial photographers, photojournalists, family members, friends-have deliberately or unintentionally elected to immortalize. 

          Rennó's approach is deftly defined by Brazilian art critic Adriano Pedrosa as the “outing of private into public” (2). By using a term generally associated with gay activism (outing someone means publicly revealing his or her homosexuality), Pedrosa notes the charged nature of Rennó's work. Rennó's process of collecting, manipulating, enlarging, and framing images to exhibit them in a public art context can be read as a form of social activism aimed at giving voice to the otherwise disenfranchised. However, despite the role of social conscience that the artist seems to play, Rennó does not pretend to speak for or represent her subjects. Using her artistic platform, she merely summons attention to the perils of social amnesia and invites us to reflect upon the induced or unintended factors that caused it. 

          Rennó's politically charged installation, Atentado ao Poder-Via Crucis (An Attack on Power-Via Crucis) (1992) (4) was created in response to Rio 92 (The First Earth Summit), an event that preoccupied the city of Rio de Janeiro in 1992. Photographs of the cadavers of thirteen people killed during the two-week period of the conference comprise the work. Roman numerals etched at the bottom of each photograph correspond to the stages of Christ's passion, and the inscription "The Earth Summit" hangs like an epitaph above the photographs. Atentado ao Poder-Via Crucis mocks the governmental and religious institutions of a world that, at the height of its powers, is incapable of eliminating endemic violence, inequity, and pollution. 

          Other works, such as Duas Lições de Realismo Fantásticos (5) (Two Lessons of Fantastic Realism) (1991), a commentary on the quasi-invisible role of women in Brazilian society, and Imemorial (1994), dedicated to the workers who lost their lives during the construction of Brasília, also reflect upon the fragility of memory. Both projects represent what Paulo Herkenkoff calls "fragmentary interruption[s] of amnesia" or “the retrieval of the subject in time, giving presentness to the past.” (6) 

          In Duas Lições de Realismo Fantástico Rennó installed a series of large-size portraits around the perimeter of a room, carefully placing the female images in front of the room's open windows. Illuminated from behind, these women seem more three-dimensional, and by extension, more real. Rennó argues that Brazilian society relegates the majority of women to a fantastic (unreal) position by insufficiently acknowledging their roles as mothers, wives, and professionals as integral to society. Their lack of voice and political power renders them invisible, making their occasional forays into the “real world” a veritable magic act. 

          Rennó obtained the photographs of the workers portrayed in Imemorial from employee I.D. cards. The work celebrates a group of unsung heroes whose lives were sacrificed to the construction of a modern city. A failed experiment in urban development, Brasília remains all but forgotten by the country's dominant Rio de Janeiro- São Paulo axis. Like the inert and disquieting images in Imemorial, Brasília has become a phantom monument to a dream gone awry. 

          Rennó's subtle yet relentless crusade against the loss of memory is also expressed through texts from the Universal Archive, (1992-1996) a collection of published articles from journals, magazines, and newspapers. Combined with images or by themselves, the stories convey a strong visual representation of human drama. The installation Candelária (1993), named after a church where a group of homeless children were massacred, consists solely of texts from the Universal Archive illuminated by fluorescent light. The blue light's coolness speaks of the cold-blooded manner in which the children, seen as expendable by a society ill-equipped to assimilate them, were murdered. The church, traditionally considered a sanctuary for the weak and dispossessed, was in this instance unable to save them from such a violent fate. A more recent work, also taken from the Universal Archive, addresses kidnapping. Its eight stories, presented in black letters over a black background, articulate the anguish of captivity and retain the immediacy of a situation that its victims would rather forget. Rennó's purpose is not to relive the traumatic nature of abduction, but rather to reflect upon the violation of the inalienable human right to freedom. 

          Cicatriz, a project Rennó conceived for MOCA, continues the artist's exploration of social amnesia. The installation consists of eighteen photographs depicting jailhouse tattoos, culled from a medical archive belonging to a penitentiary in Brazil, and twelve texts taken from the Universal Archive. Using the gallery walls metaphorically, Rennó "scars" the surface by cutting into the walls to insert the photographs and the texts at various heights and in different configurations. While the two components do not have direct associations, the subject of photography joins the seemingly disparate elements. Rennó intentionally pairs unrelated events to spur in the mind of the viewer unlimited free associations. She also chooses to de-individualize the subjects by cropping the photographs to exclude any identifiable characteristics the inmate's prison number, facial features and by replacing names in the texts with initials. Impossible to identify the protagonists of the numerous, unfolding stories, one can only attempt to reconstruct marginalized lives. 

          Rennó's working process involves a great deal of research, and Cicatriz has a scientific and analytic investigation at its core. The medical archive used for Cicatrizconsists of a cache of approximately 15,000 glass negatives. Taken between 1920 and 1940 at the Penitenciária do Estado at the Carandiru Complex in São Paulo, the photographs identify prisoners by number, physical characteristics (facial features, skin color, height, weight, and corporal deformities), and body marks (tattoos and self-inflicted or accidental scars). Neglectfully stored in ordinary cardboard boxes and languishing in varying degrees of decay caused by the humid climate, the archive has remained inaccessible and all but forgotten for over fifty years. In an attempt to at least partially rectify the damage, the project was conceived to include a conservation and restoration phase to stabilize the archive prior to using it in the exhibition. To this end, Rennó petitioned Penitentiary Academy of the State of São Paulo (ACADEPEN) in May of 1995 for access to and use of the material. Renno's application was initially denied based on a penal regulation that protects the identity of both the prisoners and their families from public scrutiny for a hundred years. However, Rennó discovered that some of the images had been published in a criminal treatise, thus rendering the confidentiality rule invalid, and ACADEPEN finally granted authorization in February 1996. 

          In consultation with FUNARTE, the University of São Paulo, and the Association of Brazilian Archivists, Rennó set up a studio on the ACADEPEN premises to conduct the tasks of sorting, selecting, and discarding unsuitable negatives, before cleaning, restoring, and cataloguing them. By nature, meticulous and time consuming, the process nonetheless provided the artist with the opportunity to do direct research about the effects of time and climate on glass negatives and the subsequent preservation and conservation procedures required. During the conservation phase, Rennó selected 1,800 plates. After careful consideration, she brought the number down to 240, from which she finally selected the eighteen used in Cicatriz

          The original black-and-white photographic plates were used to illustrate inmates' individual data entries in the penitentiary registry. Doctor José de Moraes Mello, the physician in charge of the operation, left no documentation that might shed light on the archive's other applications, if any. Despite intense research by the artist, no other explanation for its existence has been found. Under the title of "Penitentiary of the State of São Paulo, Service of Criminal Biotypology, Tattoo Archive," twenty-six leather-bound volumes contain over 6,000 pages documenting an equal number of tattoos. Each page contains the volume and entry numbers, followed by the prisoner's name, nickname, age, skin color, status, nationality, profession, religion, crime, and recidivism rate. Questions about

          the tattoo itself - when, where, why, and by whom it was made, as well as its location and color - are also included. Below each photograph there are thirteen categories including ethnic, political, criminal, love, obscene, ornamental, accidental, and therapeutic, that are also used for classification. Brief notes alluding to the meaning of initials or the inmate's relationship to the female references are written on the back of the page. Significantly, prisoners rarely chose the tattoo design themselves, relying instead on the tattoo artist for its selection and execution, and the recurrence of certain designs attests either to the artist's fondness for particular motifs or to his limited skills. The tattoos shown in Cicatriz, then, arguably depict the artist's memories, and not those of the individual prisoners. 

          While it is clear that the tattoo images prevail, they are by no means the exhibition's sole focus. By avoiding any overt or veiled allusion to their meaning in society, or within the context of a criminal institution, Rennó directs the viewer's attention to the whole image, to the tattoos' likely connections with other elements in the installation, and to their formal qualities and beauty. 

          An ancient form of body decoration, tattooing has evolved from a marginalized art form into a widely accepted and popular practice. The tattoos in the Cicatrizinstallation lack the sophistication that contemporary designs have achieved. Their appearance brings to mind the crudely made instruments with which they were executed; some are very pale and hard to read, and the limited design repertory does not offer visual variety. Nonetheless, the tattoos possess a certain rough beauty brought about by a shift in the photograph's scale and color. Rennó prints the photographs several times larger than the originals, and their leaden look is achieved by printing a low contrast negative on a gray surface. In one example, the delicate lines present in the portrait of a beautiful and demure woman seem to be drawn with graphite instead of a needle. The skin's topography is incorporated into the design with the magnified texture of the epidermis taking on the appearance of canvas. Ultimately, the strength of the images lies in Rennó's ability to manipulate the photographic process, incorporating her own practices and experiences and other expressive means to transform a simple tattoo into a mysterious object. 

          The texts included in Cicatriz come from Rennó's Universal Archive. No more than a handful of lines long, each story becomes a link in a chain of human dramas with photography as the common denominator. Rennó's use of the letters Y., X., V. in place of names renders the characters entirely anonymous, lessening connotations about race, sex, and class. The protagonists' mutation into ambiguous beings alters the tenor of the story, bringing the subject of photography into prominence. After all, it is the camera that captures for posterity the passionate kiss that will in time become the subject of a lawsuit. It is also the camera that gives an impoverished organ donor evidence that the Australian wife vacationing in Switzerland has fully recovered after her kidney transplant. The images evoked in these snippets of text are as strong as the ones appearing in the photographs they reference. Rennó succeeds in providing an image with a story and a story with an image. 

          While Rennó's art is indebted to early twentieth-century traditions like Cubist collage in the use of found materials, and Constructivism in its belief that the artist can better society by entering into a dialogue with visual means of communication, it also confronts the postmodern issues of originality, information dissemination, and cultural assimilation. In recent years, Rennó has increasingly focused on creating installations with language at their core. Using a “cut-and-paste” (7) technique in which each element represents a different thought, Rennó mixes and matches images to create a larger meaning. Constructed on a loose grid, the installations can be seen - and read- from any point in the gallery. Varied dynamics are set into motion according to how the viewer elects to engage the art and what elements he or she chooses as a starting point. Moreover, the situations are linked to the place and culture where they happen. While the photographs are for the most part found in Brazil and deal with cultural situations inherent to that country, the texts are more international in nature. The alliance of the two elements reflects the interdependence that has developed among contemporary societies. However, photography remains Rennó's primary device. Taking advantage of photography's immediacy and descriptive language, Rennó preserves moments of life which she uses to "trigger associations for all of us, representing a memory that is collective rather than individual.” (8)


              1.    Fundação Nacional de Arte (National Foundation for the Arts) was founded in the 1970s to promote Brazilian art. FUNARTE opened the first gallery in Brazil devoted solely to photography. 
              2.    Adriano Pedrosa, "Developing Identities," Poliester (Winter 1995): 45. 
              3.    Ibid. 
              4.    Rennó's use of puns is evident in this and other titles. Atentado ao Poder (An Attack on Power) is a play on the phrase "atentado ao pudor" (an attack on decorum), an infringement on moral codes that is punishable by law in Brazil. 
              5.    Duas Lições de Realismo Fantástico (Two Lessons of Fantastic Realism), is a direct reference to "magic realism," a term used to describe the work of Latin American writers like Gabriel Garcia Marquez and Mario Vargas Llosa. With its blend of the real and the imaginary, "magic realism" aptly describes the surreal intensity of Latin America's reality. 
              6.    Paulo Herkenhoff, The Density of Light: Contemporary Brazilian Photography. Exh. cat. (São Paulo: Brazilian Book Chamber, 1993) 36. 
              7.    Dan Cameron, "Between the Lines," Rosângela Rennó. Exh. cat. (São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1995). 
              8.    Mary Jane Jacobs, Introduction to Christian Boltanski: Lessons of Darkness. Exh. cat. (Museum of Contemporary Art, Chicago; The Museum of Contemporary Art, Los Angeles; and The New Museum of Contemporary Art, New York, 1988) 12


          RUIZ, Alma. Cicatriz. Exh. Cat. The Museum of Contemporary Art, Los Angeles, 1996.


          Rosangela Rennó: cicatrizes como inscrições corporais

          Rosangela Rennó: scars as corporeal inscriptions
          Textos relacionados ao trabalho

          • Série Cicatriz


          Texts linked to the work Scar Series


            Em 1989, Fernando Collor de Mello tornou-se o primeiro presidente eleito por voto popular na nova era democrática do Brasil; três anos depois, ele foi o primeiro a sofrer impeachment por corrupção, encerrando abruptamente o otimismo que sua eleição despertou. Coincidentemente, no último dia da presidência de Collor de Mello (2 de outubro de 1992), 111 presidiários foram mortos pela Polícia Militar no complexo penitenciário do Carandiru, em São Paulo. O evento, que ficou conhecido como Massacre do Carandiru, foi desencadeado por uma disputa entre gangues rivais do tráfico de drogas. A mídia noticiou imagens horríveis de corpos nus em caixões de zinco com números carimbados para identificação, e o massacre marcou a violência flagrante e a licenciosidade demonstrada pela polícia brasileira. Na esteira do massacre do Carandiru, Rosângela Rennó lançou o projeto O Arquivo Universal (1992 - em andamento), composto por diversos trechos retirados de matérias veiculadas na mídia sobre crime, violência, sociedade, arte e cultura, entre outros assuntos. 

            Ao realizar pesquisas para o projeto, Rennó encontrou quinze mil negativos fotográficos em vidro preto e branco de presidiários do sexo masculino da penitenciária estadual de São Paulo (também parte do complexo do Carandiru), tirados entre 1920 e 1939 sob orientação psiquiatra chefe do presídio, José de Moraes Mello. Esse arquivo de imagens estava esquecido há mais de cinquenta anos. Os negativos eram guardados no porão do presídio, guardados descuidadamente em caixas de papelão, onde com o passar do tempo foram danificados. O grave estado de conservação, a falta de um procedimento estabelecido para o arquivamento das imagens e a inexperiência do pessoal envolvido na manutenção do acervo contribuíram para o mau estado das fotografias. 

            Do arquivo, Rennó selecionou imagens de prisioneiros com tatuagens nas costas, peito, pernas, braços e mãos, representando símbolos universais como corações, estrelas, cruzes, flores e santos. Combinando textos reunidos para O Arquivo Universal e fotografias dos registros penitenciários, Rennó criou a série Cicatriz (1996), na qual justapôs palavras e imagens sem associação direta. Por exemplo, ao lado de uma tatuagem em um braço de um prisioneiro representando um casal abraçado, o texto é o seguinte: 


            Um beijo de 44 anos é objeto de um complicado processo judicial francês. Um casal sexagenário reivindica os direitos de uma fotografia de 1950 tirada por F. F. numa rua de Paris. A imagem foi vista em todo o mundo. Agora X. X. e Y. X. querem retirá-la de circulação e receber royalties pela sua comercialização. O casal sente que foi apanhado de surpresa por F. F. durante um momento de felicidade do recém-casal e quer manter os direitos sobre esse momento.


            Quando colocadas juntas, a história do casal anônimo e a imagem no braço do prisioneiro – embora na verdade não relacionadas – sugerem uma possível narrativa ficcional. Segundo Rennó, a alta qualidade das fotografias da penitenciária (apesar do tratamento indiferente que os negativos receberam posteriormente) atesta o fato de terem sido tiradas com certa medida de respeito pelos presos. Nisso se diferenciam das fotos usuais, muitas vezes executadas com distanciamento e tom acusatório. Nas mãos de Rennó, as tatuagens tornaram-se símbolos de singularidade e afeto. Na série Cicatriz (1996), embora tenha cortado todas as características identificáveis das fotografias, como o número da prisão e as características faciais do preso, ela optou por imagens que expressassem afeto, escolhendo tatuagens que evocassem esperança, desamparo, amor e saudade. 

            Quando Rennó encontrou pela primeira vez o arquivo da prisão, ela ficou curiosa para saber se algum estudo científico havia sido realizado ligando as tatuagens dos presidiários a comportamentos desviantes. Em 1997 visitou o Museo di Antropologia Criminale Cesare Lombroso (Museu de Antropologia Criminal Cesare Lombroso) em Turim, Itália. Lá ela encontrou um conjunto de fotografias do arquivo da Penitenciária de São Paulo tiradas no mesmo período das fotos que Rennó usou em Cicatriz, sugerindo que alguma pesquisa provavelmente havia sido feita relacionando as imagens de São Paulo às ideias de Lombroso sobre determinismo biológico e comportamento criminoso. No final do século XIX, Lombroso introduziu a criação de perfis modernos no sistema de justiça criminal. Ao estabelecer o que ele argumentou ser uma tipologia de características faciais criminais, Lombroso deu à polícia uma ferramenta pseudocientífica que ajudou a popularizar a noção de “criminoso nato”, pois acreditava que a criminalidade era uma disposição hereditária não ligada às condições sociais de um indivíduo. Na verdade, Lombroso abordou em termos gerais a conexão entre tatuagens e crime: "Embora não se limite exclusivamente aos criminosos, a tatuagem é praticada por eles em uma extensão muito maior do que por indivíduos comuns: reincidentes e criminosos natos, sejam ladrões ou assassinos, mostram o maior desempenho de porcentagem de tatuagem.” Para Lombroso, a tatuagem refletia tanto a insensibilidade dos criminosos à dor quanto seu amor atávico pelos adornos. 

            A prisão de São Paulo supostamente registrava as tatuagens dos presos como forma de rastrear a reincidência e impedir que ex-presidiários adotem novas regras. Em Vigiar e Punir, Foucault observou que as inscrições corporais fazem parte de um inventário relacionado à "semiologia do crime", reforçando assim o estigma dos criminosos e sua subcultura. Ele considerava tais tatuagens uma "vinheta de seus atos ou de seu destino", uma insígnia de seus crimes." Foucault demonstrou como todo um regime de "marca" foi criado em torno da vida na prisão através de táticas de sujeição, tornando os presos os portadores de seus próprios crimes, os manifestantes de seus próprios delitos. Uma vez condenados, os infratores reconhecem e assimilam sua condição de transgressores de códigos sociais, e as tatuagens passam a fazer parte da autorregulação de seus próprios corpos pelos presos. As tatuagens são sinais indeléveis que garantem que eles nunca esquecem seus feitos e funcionam como uma linguagem inscrita no corpo como forma de disciplina, marca de pertencimento às normas dentro da prisão. Assim, a tatuagem tem um duplo papel: no mundo exterior, é uma marca de exclusão; para os reclusos, é um sinal de inclusão na cultura prisional. De forma ambígua, estas inscrições corporais aludem tanto ao anonimato da vida na prisão como ao desejo de criar alguma singularidade dentro desse sistema. Ao mesmo tempo que reforçam o estigma e a vergonha dos reclusos, as tatuagens também funcionam como marcas de resistência, uma insistência na própria individualidade. Podem ser uma forma de escapar da aniquilação da identidade do preso dentro do complexo penitenciário. 

            Como local de reclusão, a prisão desperta deliberadamente a curiosidade. Assim como a própria prisão, as tatuagens são fascinantes e perturbadoras. Como argumentou a acadêmica Elizabeth Seaton: “O corpo tatuado do prisioneiro é mais uma engrenagem desta máquina voyeurística oleada”. As fotografias de corpos tatuados abordam tanto o olhar institucional e disciplinado centrado nos reclusos como a sua resistência à subjugação. Essas obras colocam a questão: Quem tem direito à sua própria representação? 

            Na série seguinte de Rennó, Vulgo (Alias; 1998-99), a artista também selecionou imagens do arquivo penitenciário que apontavam para a perversidade do olhar voyeurístico sobre os corpos dos presos. A cabeça de alguns presos é raspada e outros exibem padrões de couro cabeludo e cabelos pintados pela artista de vermelho, fazendo com que pareçam ensanguentados. Mais uma vez Rennó não dá pistas sobre a identidade desses corpos. O resultado, disse Rennó, "é uma sensação de vertigem... porque na busca por definir o 'Outro' o que encontramos é uma falta, um vazio e uma falha amnésica que bloqueia qualquer possibilidade de identificação." Tanto Cicatriz quanto Vulgo expõem um sistema prisional que existe para obscurecer a existência dos encarcerados, destruindo seu passado, presente e futuro. As imagens e os textos de Rennó são uma crítica poderosa ao poder institucional e ao seu violento aparato de apagamento. 

            Mais importante do que o que estas imagens revelam é o que escondem. Rennó não gosta da forma como as fotografias costumam estar ligadas à memória, pois as memórias podem ser enganosas: “A expressão refere-se indiretamente ao processo e à capacidade das fotografias de capturar um momento eterno, salvando a imagem de uma morte espiritual. Todo discurso sociológico sobre a fotografia se baseia nisso. Acho que é um erro porque nunca se consegue resgatar nada dela, do seu passado. Como a nossa própria memória, elas não são verdadeiras." Se uma das principais funções de um arquivo é para preservar a história, Rennó entende que não há apenas “uma” história a ser contada, mas sim uma pluralidade de narrativas, embora muitas vezes apenas o discurso dominante sobreviva. Assim como as histórias pessoais dos presidiários de São Paulo foram apagadas, o local do massacre do Carandiru foi apagado. Em 2002, o complexo do Carandiru foi demolido, um projeto estatal para erradicar a memória do massacre, uma das cicatrizes mais profundas da história violenta do Brasil. 


            CALIRMAN, Claudia. Dissident Practices. Brazilian Women Artists, 1960-2020s. Durham and London: Duke University Press, 2023, pp. 123-128.
            In 1989 Fernando Collor de Mello became the first president elected by popular vote in Brazil's newly democratic era; three years later, he turned into the first to be impeached for corruption, bringing an abrupt end to the optimism his election sparked. Coincidentally, on the last day of Collor de Mello's presidency (October 2, 1992) 111 inmates were killed by military police in São Paulo's Carandiru prison complex. The event, which became known as the Carandiru massacre, was triggered by a dispute between rival drug- trafficking gangs. The news media featured gruesome images of naked bodies lying in zinc coffins with numbers stamped on them for identification, and the massacre marked the blatant violence and license displayed by Brazil's police. In the wake of the Carandiru massacre, Rosângela Rennó launched the project O Arquivo Universal (The Universal Archive; 1992 - ongoing), consisting of miscellaneous excerpts taken from stories in the media about crime, violence, society, art, and culture, among other subjects. 

            While conducting research for the project, Rennó came across fifteen thousand black-and-white glass photographic negatives of male inmates from São Paulo's state penitentiary (also part of the Carandiru complex) taken between 1920 and 1939 at the direction of the prison's chief psychiatrist, José de Moraes Mello. This image archive had been forgotten for more than fifty years. The negatives were kept in the basement of the prison, stored carelessly in cardboard boxes, where they became damaged over time. Their precarious state of conservation, the lack of an established procedure for filing the images, and the inexperience of the personnel involved in maintaining the collection all contributed to the photographs' poor condition. 

            From the archive, Rennó selected images of prisoners with tattoos on their backs, chests, legs, arms, and hands, depicting such universal symbols as hearts, stars, crosses, flowers, and saints. Combining texts, she had gathered for O Arquivo Universal and photographs from the prison registers, Rennó created the series Cicatriz (Scars; 1996), in which she juxtaposed words and images without any direct association. For instance, next to a tattoo on a prisoner's arm depicting an embracing couple, the text read as follows: 

            A forty-four-year-old kiss is the subject of a complicated French lawsuit. A sexagenarian couple is claiming rights to a 1950 photograph taken by F. F. on a Paris street. The picture has been seen all over the world. Now X. X. and Y.X. want to remove it from circulation and receive royalties from its commercialization. The couple feels that they were caught unaware by F.F. during a moment of newlywed happiness and want to retain the rights over that moment.


            When placed together, the anonymous couple's story and the image on the prisoner's arm - though actually unrelated - suggest a possible fictional narrative. According to Rennó, the high quality of the penitentiary's photographs (despite the indifferent treatment the negatives subsequently received) attests to the fact that they were taken with a measure of respect for the prisoners. In this they are different from the usual mugshots, which are often executed with detachment and an accusatory undertone. In Renno's hands, the tattoos became symbols of singularity and affection. In the series Cicatriz (Scars; 1996), while she cropped out all identifiable features from the photographs, such as the inmate's prison number and facial features, she opted for images that expressed affect, choosing tattoos that evoked hope, helplessness, love, and longing.

            When Rennó first encountered the prison archive, she was curious to know if any scientific study had been conducted connecting the inmate’s tattoos to deviant behavior. In 1997 she visited the Museo di Antropologia Criminale Cesare Lombroso (Museum of Criminal Anthropology Cesare Lombroso) in Torino, Italy. There she found a cache of photographs from the São Paulo Penitentiary's archive taken during the same period as the photos Rennó used in Cicatriz, suggesting that some research had likely been done relating the São Paulo images to Lombroso's ideas about biological determinism and criminal behavior. In the late nineteenth century, Lambroso introduced modern profiling into the criminal justice system. By establishing what he argued was a typology of criminal facial features, Lombroso gave police a pseudoscientific tool that helped popularize the notion of the "born criminal," as he believed that criminality was a hereditary disposition unconnected to an individual's social conditions. Indeed, Lombroso had addressed in general terms the connection between tattoos and crime: "Although not exclusively confined to criminals, tattooing is practiced by them to a far larger extent than by ordinary individuals. Recidivists and born criminals, whether thieves or murderers, show the highest percentage of tattooing.” For Lombroso, tattooing reflected both the insensitivity of criminals to pain and their atavistic love of adornment. 

            The São Paulo prison allegedly recorded prisoners' tattoos as a way of tracking recidivism and preventing ex-cons from adopting new identities. In Discipline and Punish, Foucault noted that bodily inscriptions are part of an inventory related to the "semiology of crime," thus reinforcing criminals stigma and their subculture. He deemed such tattoos a "vignette of their deeds or their fate," an insignia of their crimes." Foucault demonstrated how a whole regime of "branding" was created around prison life through tactics of subjection, making inmates the bearers of their own crimes, the displayers of their own offenses. Once convicted, offenders recognize and assimilate their condition as transgressors of social codes, and tattoos become part of prisoners' self-regulation of their own bodies. Tattoos are undeletable signs that ensure they never forget their deeds and function as a language inscribed on the body as a form of discipline, a mark of belonging to the norms inside the prison. Thus, the tattoo has a twofold role: in the outside world, it is a mark of exclusion; for inmates, it is a sign of inclusion in the prison culture. Ambiguously, these corporeal inscriptions allude both to the anonymity of life in prison and to the desire to create some singularity within that system. While they reinforce the prisoners' stigma and shame, tattoos also function as marks of resistance, an insistence on one's own individuality. They can be a way to escape the annihilation of the prisoner's identity inside the prison complex. 

            As a place of seclusion, the prison deliberately triggers curiosity. Like prison itself, the tattoos are both fascinating and disturbing. As the scholar Elizabeth Seaton argued, "The prisoner's tattooed body is one more gear of this oiled voyeuristic machine." The photographs of tattooed bodies address both the institutional, disciplined gaze focused on the inmates and their resistance to subjugation. Ultimately, these works pose the question: Who has the right to their own representation? 

            In Renno's next series, Vulgo (Alias; 1998-99), the artist also selected images from the penitentiary archive that pointed to the perversity of the voyeuristic eye on prisoners' bodies. Some inmates' heads are shaved and others exhibit patterns of scalp and hair colored by the artist in red, making them seem bloody. Once again Rennó gives no clue about the identity of these bodies. The result, said Rennó, "is a sensation of vertigo... because in the search to define the Other' what we find is a lack, emptiness, and an amnesic failure that blocks any possibility of identification." Both Cicatriz and Vulgo expose a prison system that exists to obscure the existence of the incarcerated, obliterating their past, present, and future. Rennó's images and texts are a powerful critique of institutional power and its violent apparatus of effacement.

            More important than what these images reveal is what they hide. Rennó dislikes the way photographs are usually tied to memory, since memories can be deceitful: "The expression indirectly refers to the process and the ability of photographs to capture an eternal moment, saving the image from a spiritual death. All the sociological discourse on photography is based upon this. I think it is a mistake because you are never able to rescue anything from it, from its past. Like our own memory, they are not truthful.” If one of the main functions of an archive is to preserve history, Rennó understands that there is not only "one" history to be told, but rather a plurality of narratives, though oftentimes only the dominant discourse survives. Just as the personal stories of the São Paulo inmates were obliterated, so the site of the Carandiru massacre was erased. In 2002 the Carandiru complex was demolished as part of a state project to eradicate memory of the massacre, one of the deepest scars in Brazil's violent history.


            CALIRMAN, Claudia. Dissident Practices. Brazilian Women Artists, 1960-2020s. Durham and London: Duke University Press, 2023, pp. 123-128.


            The writing on the wall

            Textos relacionados ao trabalho

            • Série Cicatriz


            Texts linked to the work Scar Series


              Conceptual art, which is by now being made by its sixth – or maybe its 16th – generation of practitioners, often gets hung up on mind-numbering games masquerading as profundity. Commonly emphasizing language, both written and visual, Conceptual art can easily devolve into boring, smarty-pants word play that’s supposed to be its own reward, but which in fact merely reshuffles the deck of received ideas. 

              And then there are the uncommon exceptions. 

              Not only is Rosângela Rennó’s quietly concise exhibition at the Museum of Contemporary Art fully aware of Conceptual art’s potentially corrosive dilemma, it is also insightful enough to take it on as central subject. Combining simple, unprepossessing photographs and texts, as countless other artists do today, she manages to create a unique environment in which ephemeral symbols and signs assume a surprisingly eloquent gravity. 

              Rennó, 33, is an artist new to me. Brazilian, she has had several one person shows in Rio de Janeiro and São Paulo since 1991, and more recently her work has begun to turn up in group exhibitions in Europe. The small MOCA show, organized by exhibitions coordinator Alma Ruiz, is part of the museum’s “Focus Series”, and it marks Rennó’s solo debut in the United States. Hers is a young career that plainly bears watching. 

              Titled “Cicatriz” – a Spanish word that, like the English cicatrix, means “scar” – the show is composed of 18 black-and-white photographs interspersed with a dozen relatively brief texts. The coarse, but elegantly printed photographs are large (as much as several feet to a side), and they picture crudely tattooed body parts: biceps that display an embracing couple, a chest decorated with a flower or a woman’s profile, a forearm on which a rudely sketched Statue of Liberty unfolds. The short texts come from unrelated newspapers stories. 

              All of the news stories concern worldly events in which photography played a key role. Most are anonymous and commonplace – a shadowy police interrogation, the discovery of a child pornography ring, an episode of religious persecution.
              A few are famous. One tells the story of the young Vietnamese girl whose naked, napalmed body became an image seared into the collective American consciousness during our awful war in Southeast Asia, while another recall Mexico’s heroic Subcommander Marcos, who deftly conducted guerilla warfare in our modern media culture. 

              These short texts are not placed as captions to the tattoo photographs. Instead, both word and image are deployed as independent equivalents, each with its own exploitable characteristics. 

              So far Rennó’s union of found photographs and found texts might sound like ordinary at any moderately up-to-date art school. However, rather than simply print these news briefs on panels or hang the photographs on the walls, as if their information value as symbols was all that mattered, the artist has instead come up with a far more compelling form. 

              Rennó’s texts have been scratched and cut right into the plaster of the gallery’s blindingly white walls; they recall aphorisms or stories conventionally carved into the granite and marble walls of public buildings. Sliced at least a quarter-inch deep, the short stories become visible through the shadows cast by ambient raking light. 

              The words are startlingly present through their absence. Given all the bright whiteness of the room, you read then haltingly, stumbling over continuity and repeating phrases until the short paragraphs make sense. (The brevity of the texts is important here; frustration doesn’t overwhelm the process.) You finally want to stick your finger into the gaping text, probing like a doubting Thomas to determine its authenticity. 

              Although wholly reliant on the rapidly disseminated information typical of our media culture, Rennó effortlessly manages to slow down your perception. She gives it tactility. 

              The 18 unframed photographs, meanwhile, are also embedded in the walls. The surface of each picture is flush with the wall’s surface. While they thus become a seamless part of the constructed environment that surrounds you, these embedded pictures also echo the “embedded pictures” they depict – the crude tattoos, which have been painfully inked within human flesh. 

              “Cicatriz” subtly emphasizes the tensions between the power of material presence and the chimerical authority of ephemeral signs, which get under your skin. Susan Sontag once famously likened the camera to a gun and the act of photographing to pulling the trigger. Making art of the disfiguring residue the photographic gunshot wound leaves behind, Rennó takes a provocative look at the scar that results. 


              KNIGHT, Christopher. The Writing on the Wall. In Los Angeles Times, September 3, 1996.