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Hipocampo

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Texts linked to the work Hippocampus


    Hipocampo é o nome dado a uma região do cérebro onde se acredita que a memória esteja armazenada. Este, por sua vez, é composto pela seleção de determinados fatos, frases, situações, sensações, enfim, registros de experiências específicas. Ora, a preservação desses momentos na mente, bem como a fixação de um momento através da fotografia, é necessariamente filtrada pela perspectiva particular de cada indivíduo. Hipocampo é também o nome da instalação que Rosângela Rennó apresentou em sua recente exposição individual. Apesar de ser fotógrafa, abandonou temporariamente a câmera para se concentrar na representação mental da imagem, deixando de lado as reproduções exatas e analógicas da realidade. A instalação é composta por fragmentos de textos pintados na parede com tinta fosforescente, em perspectiva. Os textos, extraídos de jornais e 54 sobre revistas, são histórias mais ou menos trágicas, mais ou menos cômicas, histórias verdadeiras que envolvem de alguma forma a fotografia. Editados pela artista, formam o seu “Arquivo Universal” que lhe permite resgatar acontecimentos anteriormente mostrados ao público, mas que se apagaram da memória com o passar do tempo. 

    Ao substituir fotos por narrativas, a artista desafia o espectador/ leitor a fazer uso da faculdade imaginativa, ou seja, a ativar a capacidade de formar suas próprias imagens mentais a partir de um determinado repertório. Os textos, transcritos literalmente em perspectiva (diversos entre si), acentuam o comprometimento pessoal de seus diferentes autores e consumidores. Em instalações anteriores, Rosângela Rennó esculpiu textos em gesso branco, obrigando o espectador a fazer movimentos oscilantes, em busca da melhor luz (ou da melhor sombra) para ler. No Hipocampo, o texto só se torna totalmente visível quando a luz é apagada. Mas, depois de um curto período de tempo, a tinta fosforescente perde o seu potencial de irradiar luz e as letras minúsculas em perspectiva perdem a nitidez. Ao acender a luz, os textos desaparecem, camuflados nas paredes da sala. Nada é visto até que a luz seja apagada novamente. Paradoxalmente, o pico de visibilidade ocorre na escuridão total. A luz ofusca, cega e não revela nada. 

    A tentativa de percorrer completamente uma história é muitas vezes frustrada pelos intervalos impostos pelos ciclos claro/escuro. A perda do discurso coerente e linear desorganiza os padrões programados e perturba as exigências do olhar condicionado. Paralelamente à instalação, Rennó apresenta três objetos: Private Eye, Private Collection e Black Hole. O primeiro é composto por dois volumes de um antigo dicionário, no centro do qual a artista esculpiu o formato de sua câmera fotográfica, de modo que, juntos, os dois volumes abriguem a câmera. No segundo, fotografias de sua família são agregadas a um bloco maciço amarrado por um fio de aço; As palavras “privado” e “coleção” estão esculpidas nas laterais. Buraco negro é um “livro” com capa de álbum fotográfico do século XIX, dentro do qual foi inserido um bloco de acrílico. O título refere-se a áreas de força gravitacional tão intensa que potencialmente absorvem tudo, até mesmo a luz. Diante desses objetos, cria-se a expectativa de revelação, mas a curiosidade tem que se contentar com subterfúgios imaginativos, já que os conteúdos são inacessíveis. Tal como no Hipocampo, o que está em jogo nos objetos é a imagem imaginada, incerta, pois é intransferível.


    BARROS, Regina Teixeira. Hipocampo. In Revista Poliester vol. 4 #14, 1995-96, p. 54-55.
    Hippocampus is the name given to the region of the brain in which memories are thought to be stored. Memory itself is composed of different facts, phrases, situations, sensations, records of specific experiences. Of course, the preservation of these moments in the mind, like the registration of an instant in photography, is filtered by the perspective of each individual. Hippocampus is also the name of the installation presented by Rosângela Rennó in her most recent solo show. Although she is a photographer, Rennó temporarily abandoned her camera to concentrate on the mental representation of the image, leaving aside all precise, analogous representations of reality. The installation consists of fragments of texts painted in perspective on the wall with fluorescent ink. The texts, taken from newspapers and magazines, are semi- tragic, semi-comic, real-life stories that involve photography in different ways. Edited by the artist, they constitute a Universal Archive that allows her to rescue facts known to the public but which quickly vanish from memory.

    By replacing photographs with stories, the artist challenges viewers/readers to utilize their imaginative abilities, that is, to employ their ability to create their own mental images on the basis of a particular selection. The (different) texts, transcribed in perspective, emphasize the personal commitment of their authors and readers. 

    In previous installations, Rosangela Rennó sculpted texts in white gypsum, forcing the viewer move back and forth to catch the best light (or shadow) in order to be able to read them. In Hippocampus, the text becomes fully visible only when the lights are turned off. Even so, the fluorescent ink loses its brightness after a short while and the tiny letters begin to fade. When the lights are turned on, the texts disappear against the background of the walls, and they cannot be seen until the lights are turned off again. Paradoxically, the greatest visibility is achieved in complete darkness. Light dazzles, it blinds and reveals nothing. 

    Attempts at following a story are frequently interrupted by the intervals of the light/darkness cycle. The lack of any cohesive, linear discourse disrupts the structures of predetermined ways of seeing. Alongside this installation, Rennó presented three objects: Private Eye, Private Collection and Black Hole. The first consists of two volumes of an ancient dictionary which the artist hollowed out so that a camera can be stored there when the two volumes are put together. In the second piece, the artist sewed photographs of her family into a solid block with steel wire. On the sides the words "private" and "collection" are carved. Black Hole is a "book" with the cover of a 19th century photographic album inside of which Rennó inserted an acrylic block. The title refers to the zones where the force of gravity is so intense that it can absorb everything, including light. These objects create the expectation of a
    revelation, but curiosity has to make do with imaginative subterfuge, since their contents are inaccessible. As in Hippocampus, what is at stake in the objects imagined, uncertain image that can neither be communicated nor revealed. 

    BARROS, Regina Teixeira. Hipocampo. In Revista Poliester vol. 4 #14, 1995-96, p. 54-55.


    Seu espelho, um caleidoscópio

    Her mirror, a kaleidoscope

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    Texts linked to the work Hippocampus

      […] Luzes e textos descritivos emulam atributos do fotográfico, mas, sobretudo, existem para afirmar e significar a ausência da fotografia. A opção por não mostrar certas imagens desponta como uma tentativa de quebrar um estado de anestesia e voltar às bases de uma política do olhar. Eis o raciocínio deflagrador do Arquivo Universal (1992-), o projeto mais longevo de Rennó, que, ainda em curso, aproxima-se de seus trinta anos. Nesse período, a artista tem constituído uma larga coleção de matérias de jornais que inserem, na descrição de histórias pessoais, referências à fotografia. Seu filtro capta passagens diversas, como “Os funcionários da Funai ficaram revoltados com o descaso da empresa, que enviou apenas uma relação de nomes, sem fotografias” ou “a mulher indiana, V., tirou de sua roupa a foto encardida”. Cada relato é diagramado para ganhar uma visualidade específica e tornar-se uma espécie de imagem mental, o que Rennó chama de “imagem latente”. Há diagramações simples, que promovem um ruído de fruição pelo simples fato de estarem em paredes, onde se costuma exibir obras pictóricas. 

      Há ainda a concepção de um ambiente imersivo para textos do Arquivo Universal em Hipocampo (1995-98). A instalação requer uma sala completamente fechada e dotada de um temporizador de luz. Quando iluminado por refletores potentes, o espaço parece vazio, apenas pintado do chão ao teto em um tom de amarelo. Quando o mecanismo é acionado, de minuto em minuto, o escuro revela existir, camuflada nas paredes e colunas, uma série de textos perspectivados com pigmento fosforescente, igualmente amarelado, mas reagente à luz. O hipocampo, parte do cérebro humano que dá nome à instalação, é responsável por organizar a memória, além de regular as emoções e comportamentos. Ao promover a experiência de um instante de aparição, seguido por um hiato propício à falta e à formulação, a obra procura demonstrar justamente a lembrança como um fenômeno que acontece entre a fisiologia dos corpos e sua exposição às vivências e aos enunciados. […]


      MAIA. Ana Maria. Seu espelho, um caleidoscópio (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9-35.
      […] Lamps and descriptive texts emulate photographic attributes, but they exist above all to affirm and signify the absence of photography. The choice of not showing certain images emerges as an attempt to break with a state of anesthesia and return to the foundations of a politics of the gaze. This is the reasoning behind Arquivo Universal [Universal Archive] (1992-) Rennó’s longest- running project, which is still in progress and approaching its 30th anniversary. During this period, the artist has been building up a large collection of newspaper articles in which references to photography are interspersed in the description of personal stories. Her filter captures quite diverse passages, such as “The Funai employees were outraged by the company’s carelessness, as only a list of names was sent, without photographs,” or “The Indian woman, V., pulled the grimy photo from between her clothes.”Each story is typeset to gain a specific visuality and become a kind of mental image, or what Rennó calls a “latent image.” Simple layouts promote a back noise of enjoyment by the simple fact of being set up on walls, where one usually exhibits pictorial works. 

      Hipocampo [Hippocampus] (1995- 98) brings in the concept of an immersive environment using texts from Arquivo Universal. The installation requires a completely enclosed room equipped with a light timer. When lit by powerful spotlights, the space appears empty and painted from floor to ceiling in a shade of yellow. When the lights are turned off—which happens every few minutes—darkness reveals on the walls and pillars a series of texts painted with phosphorescent pigment. They are also yellowish, but reactive to light. The hippocampus is a part of the human brain responsible for organizing memory, as well as regulating emotions and behavior. By promoting the experience of an instant apparition, followed by a hiatus conducive to absence and verbal formulation, the work seeks precisely to demonstrate how memory is a phenomenon that takes place in the interface between the physiology of the body and its exposure to experiences and statements. […]


      MAIA. Ana Maria. Her mirror, a kaleidoscope (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9- 35.


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      Entre as linhas

      Between the lines

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      • Hipocampo


      Texts linked to the work Hippocampus

        A arte de Rosângela Rennó lida com a impossibilidade de memória coletiva, e o modo com que ela tende a ser sifonada pelos receptáculos que desenvolvemos para contê-la. Embora a descrição possa parecer extremamente direta, e embora a combinação de fotografia e texto continue sendo para muitos artistas contemporâneos um campo prático definido, existem vários aspectos da prática de Rennó que diferenciam sua obra daquela de outros artistas que trabalham estruturas estilísticas paralelas em outras partes do mundo. Entretanto, o impacto de sua obra se extende para muito além das discussões sobre sua comparativa originalidade, o mesmo sobre sua considerável habilidade em lograr realizá-la.

        Por um lado, ela tem estado profundamente engajada pelas qualidades visuais de fotografias antigas (ou nem tão antigas) e semi-autônomas, em especial aquelas que foram produzidas para fins institucionais, jornalísticos, ou legais, e onde houve pouco ou nenhum esforço de produzir uma imagem do modelo que pudesse ser considerado como artística. De fato, às vezes ocorre que as imagens selecionadas por Rennó como base de uma determinada peça mal possam ser decifradas como a semelhança de determinada pessoa. Como exemplos de representação, elas permanecem marginalizadas, tanto no sentido literal como no sócio-cultural da palavra. As imagens estão freqüentemente fora de foco, e seu desafio à autoridade visual de nosso mundo – em outras palavras, ao papel ominipotente desempenhado por uma imagética fotográfica de alto contraste, gerada por computador e baseada em vídeo é quase digna de pena em sua modéstia. Porque elas nos lembram nossos limites e imperfeições (para não dizer nossa mortalidade), as imagens de Rennó provocam uma reação complexa, composta em partes iguais de nostalgia e rejeição do passado.

        Para Rennó, a seleção e desenvolvimento de textos tem sido outra preocupação. Procurando seu caminho por entre as vastas florestas de boatos, insultos amargurados e puro folclore que constituem atualmente a imprensa – sobretudo num país com hábitos de leitura tão diversos e vorazes como o Brasil –, Rennó isola e nos devolve certos fragmentos em forma de citações anônimas. Enquanto não podemos valer-nos das fontes para estes fragmentos, e devemos então abandonar nosso compreensível instinto para vê-los como parte de uma continuidade narrativa, o sabor e a intenção originais de cada pedaço de texto são bastante claros. De fato, ao absorvermos os significados submersos que as técnicas de recorte e colagem de Rennó tendem a trazer à luz, nos tornamos igualmente conscientes do fato duplo de que o pretenso leitor do texto não somos nós e que, mais importante ainda, os significados que escolhemos através da reconfiguração de Rennó pretendiam ser absorvidos apenas no nível mais inconsciente e subliminar pelos grupos de consumo aos quais estas revistas e jornais foram dirigidos.

        Na  instalação Hipocampo, Rennó temporariamente deixa de lado a fotografia por completo e resolve focalizar apenas as palavras – ou melhor, os textos que tomam a forma imagética. Apresentando estes textos através de um complexo sistema de iluminação que modifica de modo significativo a relação perceptual do visitante com a sala em que são exibidas, Rennó transforma o ato público da leitura numa espécie de jogo de visibilidade, invisibilidade e claro-escuro. O ato de tornar visível que é transmitido pela lenta metamorfose de uma parede aparentemente vazia em blocos de texto nos assegura que a relação com a fotografia (sob a forma de técnicas de câmera escura) ainda se vê bastante presente.

        De modo realmente profundo, Rennó está interessada nas sobras da cultura – naquilo que foi deixado de lado durante o processo de resolver-se o que tem valor. O irônico nome de Arquivo Universal por ela dado à sua vasta coleção de materiais encontrados reflete uma noção de que a sociedade poderia freqüentemente ser melhor representada justamente através dos tipos de objetos aos quais ela não deseja delegar a responsabilidade de sua imagem. Sua maneira de re-apresentar este material desfaz uma parte da mística da representação, e nos proporciona (em seu lugar) um autoretrato coletivo, baseado nas incontroversas meias-verdades que constituem grande parte da dieta cultural de qualquer indivíduo razoalvelmente letrado. Neste preciso enfoque detalhístico, porém, a atividade de Rennó também pode ser compreendida como uma tentativa de rehumanizar o processo de receptividade para leitores e espectadores. Sua suposição não-declarada parece ser a de que até mesmo o aparente descuido com que as palavras são utilizadas por uma sociedade que se baseia na informação seja apenas o que ela nos convida a fazer. Através do reconhecimento e captura dos aspectos humanos de uma área cada vez mais desumanizada da produção cultural, Rennó nos lembra também que a busca de valores universais constitui o verdadeiro significado da arte.


        Cameron, Dan. Entre as Linhas. In Rosângela Rennó. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1995, p.6-9.
        Rosângela Rennó’s art deals with the impossibility of collective memory, and the way that it tends to get siphoned off by the receptacles that we have developed to contain it. As direct as such a description sounds, however, and as defined an area of practice as the combination of photography and text remains for many contemporary artists, there are several aspects of Rennó’s practice that make her work quite distinct from those of other artists working within parallel stylistic structures in other parts of the world. Still, the impact of her work extends far beyond arguments about its comparative originality, or even her considerable skills in getting it made.

        On the other hand, Rennó has been deeply engaged by the visual qualities of old (or not so old), semi-anonymous photographs, especially those produced for institutional, journalistic or legal purpose, and where little if any attempt was made to produce an image of the sitter which could be thought of as artistic. In fact, it is sometimes the case that the image(s) which Rennó selects as the basis of a particular piece can barely be deciphered as the likeness of a particular person. As examples of representation, they remain marginalized, in both the literal and sociocultural senses of the world. Their focus if often fuzzy, and their challenge to the visual authority of our world – in other words, to the omnipotent role played by high-contrast photographic, computer-generated and video-based imagery in our contemporary visual environment – is almost pitiable in its modesty. Because they remind us of own limits and imperfections (not to mention mortality), Rennó’s images provoke a complex reaction on our part, made up of equal parts nostalgia for and rejection of the past.

        The other important area of Rennó’s concern has been in the selection and development of texts. Making her way through vast jungles of rumors, embittered slurs and sheer folklore that constitute the written press of today – especially in a country with such diverse and voracious reading patterns as Brazil -, Rennó has isolated certain fragments and given them back to us in the form of anonymous quotations. While we cannot avail ourselves of the sources for these fragments, and must therefore abandon our understandable instinct to see them as part of a narrative continuity, the original flavor and intent of each piece of text is all too clear. In fact, as we absorb the submerged meanings that Rennó’s cut-and-paste techniques tend to bring to light, we are equally aware of the double fact that the intended reader of this texts is not us, and, more importantly, that the meanings we have gleaned from Rennó’s re-configuration were only meant to have been absorbed on the most unconscious, subliminal level by consumer groups to which these magazines and newspaper are addressed.

        In the installation Hipocampo, Rennó has temporarily set aside photographic imagery altogether, and chosen to focus on words by themselves – or rather, on text which takes the form of imagery. Presenting these texts through the medium of a complex lighting system that significantly modifies the visitor’s perceptual relationship to the room in which they are displayed, Rennó transforms the act of reading in public into a kind of play of visibility and invisibility, and of darkness and light. In particular, the act of coming-into-visibility conveyed by the gradual metamorphosis of a seemingly blank wall into a block of text assures us that the relationship to photography (in the form of darkroom techniques) is still very much present.

        In a profound way, Rennó is interested in culture’s leftovers – what has been tossed aside in the process of deciding what is valuable. The ironic name Universal Archive, which she has given to her vast collection of found materials, reflects the notion that society can often best be represented through precisely the kind of objects which it does not want to have bear the responsibility of its likeness. Her manner of re-presenting this material strips away some of the mystique of representation, and gives us instead a collective self-portrait, based on the unquestioned half-truths that constitute a large part of the cultural diet of any reasonably literate person. But in this precise focus of detail, Rennó’s activity can also be understood as an attempt to re-humanize the process of receptivity, for readers as well as spectators. Her unstated assumption seems to be that even the apparent carelessness by which words are flung about in an information – based society is merely the opposite side of the coin from the kind of measured, critical reading that she invites us to undertake. Through recognizing and capturing the human aspects of an increasingly dehumanized area of cultural production, Rennó also reminds us that the search for universal values is what making art is all about.


        Cameron, Dan. Between the Lines. In Rosângela Rennó. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1995, p.6-9.



        Rennó ou a beleza e o dulçor do presente


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        • Hipocampo


        Texts linked to the work Hippocampus


          […] “Que em sombra e luz nos fogem, num repente”, exclama o poeta Bastos Tigre (1), num verso que bem poderia chamar-se “Hipocampo”. Na instalação Hipocampo (1995), Rosângela Rennó toma o cubo branco, ideal arquitetônico do espaço expositivo moderno, para revertê- lo em cubo preto de escuridão. A inversão articula também aspectos da fotografia como as polaridades negativo/positivo ou fotografia em preto e branco. O espaço poderia ser, então, o carro de Netuno, puxado pelo animal fabuloso, Hipocampo – um monstro marinho metade cavalo metade peixe -, no percurso do excesso à ausência de luz. O roteiro de Hipocampo é por regiões abissais da memória. Nas paredes brancas, os textos são escritos em planos perspectivados com pigmento fosforescente (2). O olhar deve faiscar significados. “Duma maneira geral. Fotografia é o maravilhoso processo de fixar as imagens dos objetos formados pela luz no interior de um aparelho fotográfico”(3). Em Hipocampo, um minuto de luz ativa a fosforescência. De uma maneira específica, Fotografia é o maravilhoso e às vezes doloroso processo de fixar as imagens dos objetos formados pela luz no interior de hipocampos. Hipocampos, Grande ou Pequeno, são regiões do cérebro, estruturas curvas salientes do corno temporal e occipital dos ventrículos laterais. Parecem imprimir na retina a fotografia que aqui não está. Iluminadas, a legibilidade dessas máculas é precária. Na escuridão, tudo se torna legível. Os textos flutuam como pura luz fantasmagórica, que logo passa a se esvair. De novo o espectro de Benjamin ronda a obra. Irônica, Rennó reduz a fotografia ao verbo, à sua negação, à escritura em luz fugidia. Antes a palavra na obra de Rennó tinha corpo (como nos volumes negativos das letras em Private Collection), funcionando como um diagrama da presença tangível da cópia. Agora a escrita é pura luz, a fotografia se anuncia como uma visagem. É o trabalho que mais se desloca do olhar como cultura para o nervo óptico. A fotografia, linguagem da luz, é reposta em sua condição de fenômeno luminoso. Rennó põe em xeque e põe a nu os próprios mecanismos da percepção. A fotografia agora seria uma espécie de enervação. São imagens que parecem se transformar em visões hipnagógicas. O que se vê é a perda da memória da fosforescência, diagrama do processo de oblívio tratado por Rennó. Oblitera-se a memória do próprio cubo branco da galeria, espaço social da arte. Hipocampo passa a ser o local do cérebro no qual os cientistas acreditam estar situada a memória. Nesse teatro do esquecimento, o trajeto do Hipocampo mítico é agora o da desmemorização. Nessa vertigem, os textos estão em fuga, porque a escrita, sendo em perspectiva, acentua a questão do ponto de vista (não do fotógrafo, mas do espectador). “Não confieis tão-somente à retentiva”, adverte em verso premonitório o poeta Bastos Tigre aos espectadores de Hipocampo

          “As crianças tinham acabado de sair do templo quando os jatos lançaram quatro tonéis de napalm e quatro bombas. A área toda foi consumida por uma gigantesca bola de fogo. X foi atingida por gotas de napalm. Arrancando suas roupas em chamas do corpo agonizante, ela correu uivando de dor em direção à câmera do fotógrafo e a um lugar na história”(4). 

          Rosângela Rennó inverte aquilo que era pura imagem em excesso e exclusividade verbal. A realidade fotográfica, nesse lance de Hipocampo, é agora puro referencial textual, mas conserva a noção de escritura, que remonta à tradição da poesia concreta e sua arte. Tudo foge. A notícia renega a presença da fotografia. “É a fotografia retenção da alma” diz a índia. O modelo foge da câmera. É a antipose. O espaço remete ao tempo. É o ponto de fuga. A escritura do texto é impressão fugaz na retina. É memória de instabilidades. Kim, a menina vietnamita, corre nua, pede socorro ao fotógrafo, foge do napalm ardendo em seu corpo. É o átimo de uma fotografia sem punctum. Aqui, o olho da câmera é o alvo da pulsão de vida no devir da talvez mais dramática imagem fotográfica de todos os tempos. É experiência da dor, circunstância inapreensível pelas possibilidades da comunicação verbal, diz-nos, diante dos jogos de linguagem. Wittgenstein: “Não pense, mas veja!” (5). Só a fotografia insiste em aprender o tempo. É o lugar da retina na topologia do esquecimento ou de um lugar na história. 

          Como numa instalação de Gary Hill, Hipocampo instala o olhar num campo de fantasmagorias de luz. Se em Hill há um diálogo e enfrentamento do corpo reduzido a uma potente imagem diáfana, na instalação de Rennó trabalha-se com a memória fantasmagórica do Outro, através de índices tênues do corpo. Em Rennó, já antes não se tinha a fotografia, substituída por notícias sobre elas. Agora nem mesmo se deseja a fotografia. Toda notícia agora nega a fotografia, como a de uma índia com suas razões míticas. A obra de Rosângela Rennó tem algo de reespelhamento. “No que se apresenta a mim como espaço de luz, o que é o olhar é sempre um jogo de luz com a opacidade”, diz Lacan. Configura-se então como uma dialética do desvendamento.


              1.    R. A. Freundfeld, “A Fotografia”, em op. cit., p. 8. Um verso dessa poesia deu origem ao título do presente ensaio. 
              2.    O efeito de fosforescência é construído com um pigmento que capta e retém a luz, a qual é proje- tada através de uma lâmpada de tungstênio operada por um temporalizador. O processo compreende cerca de um minuto de exposição a essa luz e dois minutos e meio de escuridão. 
              3.    G. dos Santos Leitão, Compêndio de Fotografia para Amadores, Rio de Janeiro, Giannini Fedrighi & Cia., 1926. 
              4.    Fotofrafia de Huynh Cong (“Nick”) Ut numa estrada perto de Trang Bang no Vietnã (1972). 
              5.    Investigações Filosóficas, n. 66, tradução de José Carlos Bruni, São Paulo, Abril Cultural, 1975. Essa sentença surge no contexto do raciocínio sobre parentescos de linguagem a partir da compara- ção dos processos de jogos de tabuleiro. 


          HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In Rosângela Rennó. Edusp: São Paulo, 1996, pp. 115-191.


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