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Rennó ou a beleza e o dulçor do presente


Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Outrage against Power


    […] A amnésia não deve ser confundida com uma espécie de atordoamento pela mera questão de ruídos ou pane na comunicação ou com problemas dos códigos de transmissão. A amnésia reforça aquela perda do possível caráter analógico da fotografia com a realidade, como trata Umberto Eco (1). Frequentemente na obra de Rennó, num plano em que a fotografia se acentua como instrumento do poder e entre o horror e a ausência da imagem, estão permeadas a banalidade asséptica e a exacerbação afetiva. Atentado ao Poder (1992) foi realizada com uma série de treze fotografias de homens assassinados, recolhidas uma por dia, nos jornais populares do Rio de Janeiro, durante treze dias em junho de 1992, período em que a cidade sediou a conferência RIO-92 (2). Nesse período, os jornais de classe média alteraram seu perfil cotidiano no modo de noticiar a conferência, enquanto os jornais populares mantiveram seus padrões, fator indicativo da distância entre a maioria da população e os eventos políticos de tal ordem. Publicadas horizontalmente nos jornais, aquelas imagens dos homens assassinados são instaladas na obra de Rennó em posição vertical. O pequeno gesto arbitrário da artista altera o caráter estático dos cadáveres, conferindo-lhes tensão, como forma de burla de seu rigor mortis. Parecem estar desafiando a lei da gravidade. A obra produz uma espécie de desorientação. Agora, a produção de Rennó incorre sobre os códigos de transmissão da imagem. Em Atentado ao Poder, Rennó desenvolve uma alegoria do lugar da imagem fotográfica no espaço social, a exemplo do confinamento visual da violência mais extrema nas páginas dos jornais populares. Por detrás das terríveis imagens, emerge um halo verde, que não é a santificação dos mortos, mas ironização da aura da fotografia, de resto discutida por Walter Benjamin. Subjacente ao conjunto e na perspectiva da ideologia ecologista dominante está a indagação sobre o lugar do homem na natureza. Luz verde é a perda de visceralidade do quadro da morte. O desvio da conduta social, nessa perspectiva do ethos cultural brasileiro, é um índice da revolta individual e de responsabilidade coletiva. Atentado ao Poder refere-se à marginalidade social, está na tradição e no campo aberto no Brasil pela crônica Mineirinho (1962) de Clarice Lispector e a caixa Homenagem a Cara de Cavalo (1966) do artista Hélio Oiticica, realizada com a fotografia de um bandido morto pela polícia. Lispector fala da “lama viva”. […]


        1.    Umberto Eco, “Critique of the Image”, em Thinking Photography, op. cit., p.33. 
        2.    Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que teria sido até então a maior reunião de chefes de Estado da história, daí essa instalação de Rennó conter a legenda The Earth Summit.


    HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In Rosângela Rennó. Edusp: São Paulo, 1996, pp. 115-191.


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    Seu espelho, um caleidoscópio

    Her mirror, a kaleidoscope

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    Texts linked to the work Outrage against Power

      […] Se a linguagem abriga doses de violência amortizadas pela rotina, é nela que convém cavar brechas possíveis para se praticar denúncia, por meio do simples gesto de modificar ou suspender signos habituais. Com o intuito de descondicionar narrativas, Rosângela Rennó assumiu o jornalismo como mais um campo de pesquisa. Durante a Eco-92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, sediada no Rio de Janeiro em junho de 1992, a artista acompanhou a pauta de jornais populares com linha editorial sensacionalista. Aquelas páginas seguiram veiculando predominantemente coberturas policiais, a despeito do evento, que ganhou pouca repercussão. 

      Rennó selecionou treze imagens de assassinatos publicadas naquele período, uma em cada dia. Todas documentavam de forma explícita um local de crime, onde figuram em primeiro plano cadáveres de homens e mulheres estendidos no chão. A instalação Atentado ao poder (1992), originada dessa sequência, apresenta uma composição em duas alturas que emula uma hierarquia social das notícias. No nível dos olhos, um letreiro adesivo estampa, com distinção de manchete, o termo “The Earth Summit” [A cúpula da Terra], uma menção à conferência e à sua audiência internacional. No rodapé da parede, portanto, bem abaixo, as fotografias dos tabloides são apoiadas lado a lado. Posicionadas na vertical, elas ratificam a tradição do retrato e refutam o formato horizontal geralmente usado em pautas desse gênero. Ao espacializar esses elementos, a artista situa a tensão desmedida entre as lutas para dignificar as vidas da população preta e pobre frente à “necropolítica” vigente no país, responsável por subjugar suas existências e as atrelar a narrativas de delito e morte. A experiência da obra é intensificada por lâmpadas de tubo verdes que saem de trás das imagens, gerando um halo, uma aura, ou simplesmente uma zona de contraluz, que abarca sensações físicas e metáforas de ofuscamento e cegueira diante do horror. […]


      MAIA. Ana Maria. Seu espelho, um caleidoscópio (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9-35.
      […] If language contains doses of violence to which routine unsensitizes us, it is in language itself that possible breaches can be opened to denounce that very same violence, and those breaches are opened up by the simple gesture of modifying or suspending usual signs. As such, Rosângela Rennó took journalism as another field of research with the intention of deconditioning its narratives. In Eco-92, The United Nations Conference on Environment and Development, held in Rio de Janeiro in June 1992, she followed the agenda of sensationalist tabloids. In those pages, the event gained little repercussion and police coverage was dominant. 

      Rennó selected thirteen images of murders published in that period, one a day. All of them explicitly documented crimes scenes in which corpses of men and women lay on the foreground. The installation Atentado ao poder [Attack on Power] (1992) originates from this sequence. Its two-layered composition emulates the social hierarchy of the news. At eye level, a sticker sign prints with headline lettering the term “The Earth Summit,” referring to the conference and its international audience. At the bottom of the wall, far below, the tabloid pictures are propped up side by side. Put up vertically, they refer to the portrait tradition and negate the horizontal format usually employed in this genre. By spatializing these elements, the artist reproduces the unbridled tension between a struggle to dignify the lives of the black and poor population and the “necropolitics” in force in Brazil, which was responsible for subjugating their existence and tying them to narratives of crime and death. The work’s experience is intensified by green tube lamps that come out from behind the images, generating a halo, an aura, or simply a backlight zone that encompasses the physical sensation and the metaphor of blindness in the face of horror. […]


      MAIA. Ana Maria. Her mirror, a kaleidoscope (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9- 35.


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      A fúria contra o estranho


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      Texts linked to the work Outrage against Power

        […]  Com poucas variações, é esse também o perfil dos treze homens assassinados cujas fotografias aparecem, enfileiradas e apoiadas no chão e na parede, no trabalho Atentado ao poder, que Rosângela Rennó realizou logo em seguida à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada em 1992, no Rio de Janeiro (ECO 92), oito anos após o fim do regime autoritário militar. Todos os treze haviam sido mortos durante as duas semanas de realização do evento, e tiveram as imagens de seus corpos publicadas originalmente na imprensa carioca, de onde a artista as coletou. Não há identificação nominal dos retratados na instalação, e tampouco as causas de suas mortes são mencionadas, embora todas tenham sido claramente violentas, podendo ser resultado de linchamentos espontâneos ou de justiçamentos deliberados. Em quaisquer dos casos, é provável que sejam produto de uma sequela social que, ainda que antiga, amadureceu e foi disseminada nos anos ditatoriais: a ideia de que seria legítima a punição extralegal de crimes quando as autoridades fossem percebidas, por cidadãos comuns ou por milícias para-policiais armadas, como lenientes ou demoradas. Acima das duras imagens, somente a expressão The Earth Summit escrita sobre a parede, referência irônica à catástrofe humana que não se dissocia dos desastres naturais discutidos naquela reunião de cúpula. Se o título do trabalho parece sugerir que a mera existência dessas fotografias deveria ser tomada como uma afronta a quem tem o dever de proteger os cidadãos inocentes e também o de respeitar os direitos constitucionais dos que pareçam ter cometido algum crime, as imagens que o compõem indicam que há forças regressivas em operação no país que resistem a qualquer tipo de controle social, mesmo em tempos de retorno a um ambiente formalmente democrático. É curioso, ademais, que Rosângela Rennó subverta a horizontalidade original das imagens ao exibi-las como parte de seu trabalho. Arranjando-as verticalmente uma ao lado da outra, altera o que é a posição esperada dos mortos e os dota de uma presença que desestabiliza os sentidos do espectador, desacomodando ao menos um pouco o olhar anestesiado de quem já quase com coisa alguma se desconcerta. […]


        DOS ANJOS, Moacir. A fúria contra o estranho. ZUM (2016). Disponível em: https://revistazum.com.br/colunistas/a-furia-contra-o-estranho/