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Rosângela Rennó: Good Apples Bad Apples


Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Good Apples | Bad Apples

    Na Galeria Cristina Guerra, Good Apples Bad Apples de Rosângela Rennó (Belo Horizonte, 1962) surge, nas paredes, como uma configuração reticular. Uma teia tricolor (vermelho, branco, negro) de sequências, de linhas, uma malha de movimentos. Ou, antes, um texto, a uma certa distância, indecifrável que se espalha sobre o espaço em ritmos distintos, quase opostos. De uma posição mais próxima, esse texto (ou desenho) dá lugar a uma constelação de imagens fotográficas entre si ligadas por um motivo repetido: a representação de Vladimir Lenin em monumentos e estatuária no espaço público. É a imagem do líder histórico e revolucionário, comunista e soviético que as imagens reproduzem, num mapeamento que cruza países, cidades e épocas diferentes. À medida que se observa, mais detalhadamente, o conjunto de composições, revela-se uma origem e um sentido. Grande parte das fotografias foi recolhida na Internet em sites e blogs antes da artista proceder ao seu emolduramento e manipulação. Rosângela Rennó viu, selecionou, compôs. Interveio sobre as imagens encontradas, ressignificando-as, libertando-as da circulação opaca e silenciosa do domínio digital. São estas atividades que permitem recortar de Good Apples Bad Apples questões como o arquivo — representado na Internet, essa grande síntese da alta e da baixa cultura — a história política das utopias, a relação que os indivíduos estabelecem com os monumentos políticos.

    Antes de se transformar numa pesquisa, o trabalho teve o seu princípio num episódio mundano: um amigo ofereceu à artista um conjunto de postais turísticos da era soviética. Realizados em várias cidades da ex-URSS, todos se encontravam visualmente dominados pela presença semidivina, incontornável, dinâmica de Vladimir Lenin. Feita tal descoberta, seguiu-se outra, mas agora no interior do vasto e imaterial espaço da internet: a de que a representação escultórica de Lenin ainda existe, precisamente aí. Ou, reformule-se, ainda circula na rede como ícone, personagem, fantasma, símbolo pixelizado. Foi dessa premissa e realidade que a artista trabalhou, tornando material, concreto (emoldurando, imprimindo, comentando pela escrita) o que se tornara da ordem do imaterial: a própria imagem fotográfica, neste caso de uma figura história representada pela escultura. Interrompendo a sua circulação, Rosângela Rennó resgatou-a da produção e do consumo que está implícito no seu trânsito veloz e invisível, para que a possamos ver. E vemo-la no que pode ter de pungente, singular, desarmante: enquanto instante (se não retrato) das relações que as pessoas estabelecem com a estatuária na sua acepção mais política e cultural.

    Organizadas numa trama, as fotografias aparecem em colunas organizadas alfabeticamente. A cada letra corresponde uma cidade e em cada coluna é possível ver estátuas que existem ou existiram nas cidades identificadas. A menção a diferentes tempos verbais é importante. Algumas estátuas já não existem — vemo-las a serem derrubadas e destruídas — outras ainda permanecem no seus plintos e praças, como tivessem resistido, indiferentes, à violência dos sismos políticos. As primeiras são enquadradas por molduras negras e encontram-se “classificadas” pelo carimbo de uma maçã preta, as segundas são delimitadas por molduras vermelhas e têm um carimbo da mesma cor. Com humor e até alguma candura, Rosângela Rennó alude ao facto de a história, na sua transigência, decidir sobre o destino de ideologias e sistemas políticos e sobre a permanência simbólica e a memórias das suas principais figuras. Nos países ex-comunistas (Ucrânia, Polónia, Roménia, etc.), esse juízo, que corresponde também à posição de maioria, por mais contingente que seja ou tenha sido, foi severo e iconoclasta, enquanto noutras latitudes (Vietname, Cuba, Rússia) tomou a forma de indiferente benevolência ou de uma reservada consideração.

    Numa mesma coluna, é possível encontrar momentos de iconofilia e de iconoclasta, cerimónias oficiais e momentos de destruição e purga. Entre uns e outro, a artista introduz com frequência outro tipo de molduras. Umas, brancas, documentam o modo como as pessoas se apropriaram das estátuas, pintando-as, vestindo-as, deslocando-as. Desaparecida a legitimidade e a autoridade que o regime impunha, Lenin passou a ser apenas mais uma estátua ou um busto, uma figura humana escupida em bronze ou ferro, vulnerável, desprotegida, movível, sujeita a toda o tipo de ações. Em muitas dessas fotografias, o que se testemunha são situações em que a estátua não é mais do que um motivo carnavalesco, cuja ressonância política e simbólica, embora sem desaparecer (e com efeito, por vezes regressa) se vai tornando difusa e distante. Noutras, pelo contrário, as imagens documentam a violências dos conflitos, os efeitos das mudanças do regime no culto passado das figuras.

    Finalmente, restam o outro tipo de molduras, aquelas sem imagem, vazia, como se deixando interrogações sem resposta, imagens não encontradas, hiatos não preenchidos na história de certa escultura ou de monumento. Esta alusão à dificuldade de saber e documentar afirma os limites da pesquisa e por isso a sua natureza artística e em certo sentido, também, iconoclasta. Rosângela Rennó comenta com humor as poses das esculturas, a fisionomia impressa nos bustos, os Lenine pintados ou transformados.

    A irreverência das palavras, contudo, nunca se confunde com caricatura ou sarcasmo, não sugere qualquer julgamento político. A artista aponta e informa, mencionando a origem das imagens, as suas fontes. A esmagadora maioria das fotografias foi realizada na Internet, circulam na internet, mas na galeria aparecem para ser seguidas, vistas, lidas. O exercício pode ser cansativo, até exasperante. Há a tentação de percorrer rapidamente as imagens, quando o que o trabalho nos pede é que nos detenhamos, que observamos com atenção as cenas, os monumentos, os lugares onde estiveram ou ainda estão. Desse trabalho de observação, emergem detalhes surpreendentes: um busto no fundo do Mar Negro, uma escultura no jardim em Seattle, um plinto vazio, um monumento de escala gigantesca e pose hierática, uma escultura que existiu em nome da arte (como a criada para o filme do cineasta, O Olhar de Ulisses de Theodoros Angelopoulos).

    Ao salvar da Internet, ao tornar objetuais, como superfícies hápticas, as fotografias, a artista permite ao espectador ver gestos e situações que são particulares da esfera política. Tal fazer pode ser interpretado à luz do atual contexto político e social no Brasil na sequência da eleição da Jair Bolsonaro. É também nesse domínio onde a artista intervém, mas sem didatismo ou qualquer atitude panfletária. A sua provocação é a de uma inteligência que recusa qualquer sacralização das figuras políticas, mas, pelo contrário, lembra a sua inevitável fugacidade. O lugar de Rosângela Rennó não é o da idolatria ou da iconofilia, mas o do trabalho com a fotografia. Esta prática é nuclear na exposição em termos visuais, conceituais e, até existenciais. Note-se o outro conjunto, onde vemos representadas imagens que aludem à câmera fotográfica. Parecem inusitadas na galeria, mas não são. Enfatizam precisamente aquilo que imagens de Lenin, ao serem retiradas da Internet, também nos parecem dizer: que a imanência indexical da fotografia não aparece apenas para nos assombrar, também instiga a compreensão do que acontece. E como imanência também comporta uma materialidade.


    MARMELEIRA, José. Rosângela Rennó: Good Apples Bad Apples. In Contemporanea #3, 2019, disponível em: https://contemporanea.pt/edicoes/06-07-2019/rosangela-renno-good-apples-bad-apples


    Arquivo e entropia


    Textos relacionados ao trabalho


    Texts linked to the work Good Apples | Bad Apples

      As questões em torno da relação entre fotografia e percepção da história têm estado no cerne das motivações artísticas e reflexivas de Rosângela Rennó. O interesse pelos processos de memorização, com destaque para a noção de arquivo (como sistema de acumulação e regulação discursiva), e correlativamente sobre as possíveis articulações conceptuais, morais e estéticas entre história, arte e política, permitem situar o seu trabalho no contexto de tendências artísticas que reclamam uma atitude analítica e crítica perante a situação contemporânea, apelando à memória dentro da atualidade e à compreensão da atualidade dentro da história.

      Esta exposição é coerente com esse conjunto de preocupações, agora escrutinadas à luz de fenómenos recentes, designadamente, as mudanças tecnológicas, mediáticas e socioculturais que parecem estar a induzir alterações significativas no modo como nos habituamos a perceber o devir histórico através das imagens fotográficas. Uma das primeiras razões para este momento reflexivo e autocrítico advém do fato da fotografia ter passado, desde o final do século XX, por um inelutável processo de superação tecnológica. Desde logo, porque todo um sistema de técnicas, métodos e equipamentos de produção fotográfica foi sendo substituído por uma outra superestrutura de modos e dispositivos (de base electrónica, ou digital, como se vulgarizou dizer) que mudaram e ampliaram de forma avassaladora as possibilidades de captação, edição e circulação da imagem.

      Das obras presentes na exposição, comecemos por A imagem persistente, uma composição de fotografias que configura um olhar sobre objetos, brinquedos, gadgets e imagens que remetem para uma cultura técnica e material já notoriamente obsolescente. A artista convoca uma memorabília que nos relembra o anterior apego popular pela parafernália da fotografia analógica, sintomas que nos dirigem para uma arqueologia da fotografia moderna. Cabe-nos perguntar: o que ainda resta deste imaginário e dos regimes visuais que a fotografia foi sedimentando ao longo dos últimos dois séculos? Como será possível repensar e atualizar a prática do arquivo neste novo sistema digital e virtual, onde tudo tende a ser sujeito à indexação algorítmica e alocado algures numa nuvem?

      É importante salientar que as consequências desta (r)evolução digital não se confinam às alterações desencadeadas por uma nova tipologia de produção fotográfica. Na verdade, os seus efeitos são ainda mais radicais se pensarmos no impacto que têm tido num plano societal mais vasto, constituindo-se como uma parte essencial de um novo paradigma comunicacional caracterizado pela profusão de fluxos de trocas e de partilhas de dados e de signos visuais. Como nunca antes, vivemos cercados de imagens, ainda que a maior parte delas nos sejam invisíveis, simplesmente porque a atenção que lhes dirigimos ser cada vez mais rara e fugaz. Daí a dúvida de saber o que vale a imagem no singular quando ela parece ser um elemento mínimo condenado à irrelevância no seio de uma rede superabundante e imparável de mercadoria imaginária.

      Hoje, fotografamos com câmeras fotográficas (que, sintomaticamente, permitem captar e editar fotografias e filmes), mas com maior frequência com smartphones. Tudo (imagens, palavras, objetos, lugares...) parece destinado à sua transcodificação cibernética. É um sistema que se organiza no primado da ubiquidade, facilidade processual, conectividade, extrema fluidez e circulação. O que dizer, quando dados recentes, referem que todos os dias são carregadas 1,8 biliões de novas imagens na internet, o que perfaz um total anual de 657 biliões, um cenário que não estava provavelmente nas melhores (ou piores) cogitações de Jean Baudrillard quando no início dos anos de 1980 elaborava o seu seminal livro, Simulacros e Simulação.

      A maior peça da exposição é Good Apples | Bad Apples [proposal for a document-monument], uma instalação de aproximadamente 700 imagens, retiradas maioritariamente da internet. As imagens representam os monumentos escultóricos dedicados a Lenin, em vários países, que foram destruídos após a dissolução do bloco soviético, bem como os que persistem nos locais públicos, embora muitos deles tenham sido reposicionados em outros locais menos relevantes da paisagem urbana. Também se incluem algumas fotografias históricas que mostram as esculturas nos seus locais originais.

      Cada umas das imagens foi intervencionada com escritos à mão, proporcionando informações complementares a cada imagem. A autoria das fotografias e o local onde foram publicadas aparecem escritos sobre as próprias molduras. Além disso, a escolha da cor de cada moldura obedece a uma codificação que tem em conta o estado físico do monumento: as molduras vermelhas contêm as fotografias que mostram a totalidade do monumento no seu local de assentamento original; as molduras pretas abrangem imagens com manifestações de iconoclastia; as brancas apresentam os locais para onde os monumentos foram deslocados, ou alguma outra situação de releitura ou ressignificação desses monumentos. As fotografias são organizadas pelo nome da cidade, numa ordem alfabética (de A a Z ou de Z a A, conforme o movimento do visitante), espalhando-se horizontalmente no espaço expositivo. Por fim, é de notar também a existência de carimbos sobre as imagens de maçãs de cor vermelha, preta e branca. Marcações ambíguas que implicam o espectador nesta aferição especulativa sobre como entender a figura de Lenin, entre o mito e a infâmia – ou como distinguia a popular metáfora, entre ser uma “boa” ou uma “má” maçã.

      Do monumento ao anti-monumento, a figura de Lenin é sujeita ao confronto entre idolatria e iconoclastia. A escolha desta figura está longe de ser casual. É inevitável discernir nesta instalação uma reação à crise política, institucional e social que afeta o Brasil, nomeadamente, no decurso do processo histórico que conduziu ao impeachment de Dilma Rousseff e à recente eleição de Jair Bolsonaro. Ao convocar a figura de Lenin, a artista parece suscitar a questão: o que aconteceu à esquerda? O que resta, o que prevalece do seu legado? Uma escultura com duas sandálias Havaianas do pé direito, com a data 2019, indicia uma resposta vazia, pessimista, desolada. À entropia da imagem a artista associa a entropia do discurso político. Com efeito, vivemos em condições mediáticas, tecnológicas e culturais que exacerbaram os fenómenos de erosão do sentido das coisas, das imagens, das palavras, das ideologias. É neste contexto que a artista procura reafirmar uma das mais prementes funções do artista visual contemporâneo: coligir, (re)posicionar, (re)montar as imagens, reformular o seu sentido e o seu estatuto, assumindo-se cada vez mais como figura de compromisso entre o criador, o arquivista, o editor, o historiador e o crítico do fenómeno das imagens, alguém que entende que o seu trabalho está efetivamente no meio, entre a prática e a teoria, entre arte e a realidade social, entre as genealogias da arte e a atual cultura mediática e cibernética.


      MAH, Sérgio. Arquivo e entropia. In Cristina Guerra (2019). Disponível em: https://www.cristinaguerra.com/exhibition/rosangela-renno---good-apples-bad-apples/