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obituários, 1991

obituaries, 1991
Obituário transparente, 1991
84 negativos fotográficos 4 x 5 em resina de poliéster e parafusos
112 x 8 x 1 cm

Obituário preto, 1991
378 negativos 3x4 cm, veludo sintético, espuma, alfinetes e parafusos
115 x 84 x 0,5 cm


Transparent obituary, 1991
84 photographic 4x5 negatives in polyester resin and bolts
112 x 86 x 1 cm

Black obituary, 1991
378 3x4 cm photographic negatives on sinthetic velvet with foam, pins and bolts
 115 x 84 x 0,5 cm

Obituário transparente
© Cesar Duarte
Obituário preto
© Eduardo Ortega
[…] A partir de um arquivo de milhares de negativos para retratos 3 x 4 de um estúdio fotográfico popular, Rosângela Rennó produz muitas obras, inclusive o conjunto de Obituários. Fixa-se seu interesse em trabalhar sobre o esquecimento da identidade produzido na vida social e pela acumulação. Rennó não exalta os aspectos fisionômicos dos retratados. A consequência é que centenas e milhares de rostos reunidos parecem perder todos a possibilidade da diferença, tornando-se uma superfície virtualmente cega. O óbito aqui não é a relação morte/fotografia, mas um fato concernente à representação. Cada um desses negativos parece deixar de atuar como representação do indivíduo. O conjunto de negativos abdica de ser uma representação coletiva. A única representação possível de que essas imagens seriam capazes é uma metarrepresentação, a dos limites da representação. A Rennó interessa essa cegueira provinda da aparente dissolução de uma realidade interior da fotografia, de que fala Boris Kossoy (1), ou de potencialidade informacional, discutida por Aline Lopes de Lacerda (2). Obituário Preto (1991) é uma rede de negativos de retratos isolados, com uma moldura de veludo negro que lhe traz peso, luto, volúpia e sensualidade. Há outra peça semelhante – Obituário Transparente (1991) (3) – em que a artista trabalha a transparência através de 378 negativos 4 x 5 em preto e branco em resina de poliéster. Nesse par de obras, a oposição entre opacidade e translucidez prepara para afirmar que as qualidades físicas importam mais para o nível metafórico dessas imagens. De fato, na medida em que a acumulação de centenas de negativos para fotos 3 x 4, não importando se escuros ou transparentes, dissipam a singularidade e a diferença nesses Obituários, a fotografia atinge, então, seu grau zero de expressividade. Essas pequenas fotografias são ditas fotos de identidade, para documentos oficiais. São como dejetos de imagens, recuperados por uma operação de escatologia semiológica, que lhes inventa uma possibilidade última de existência simbólica. A idealidade da pose e a identidade submergem no mesmo vazio de sentido do sujeito. Narciso encontra um espelho cego. Essas caras não seriam aquelas que Donald Kuspit analisa em “The Repressed Face”(4), porque não é mais o rosto que aceita ser visto por outros, tampouco é o rosto que se recusa a ser visto. “Existe de fato um rosto verdadeiramente aberto, que nada tenha a esconder?”, indaga Kuspit. Nesse mar de Outros, a alteridade se rearticula numa ordem de corporeidade, sob a organização formal por proximidades dos tons, desbotados no tempo. O Outro aqui é Ninguém, ser sem nenhuma identidade. A existência serial da obra de arte com a fotografia, analisada por Walter Benjamin (5),parece transferir-se, no processo de massificação, para o próprio modelo da fotografia. A perda da autenticidade da fotografia encontraria, então, sua correspondência no anonimato desses indivíduos. Para Pierre Bourdieu a fotografia é produção de índices sociais, de um grupo que os produz de sua própria integração. Num sentido, Rennó busca esses índices sociais nos espaços nos quais ainda teriam existência mínima nesses pequenos retratos (3 x 4 cm) para documento de trabalho e outras funções. Rennó promove devassas nesses territórios de sombras, tornando-os alegorias da noite social. […]
 
    1.     Boris Kossoy, “Estética, Memória e Ideologia Fotográfica”, em op. cit., pp. 13-24.
    2.    Idem, pp. 41-53. 

    3.    Obituário Transparente, Obituário Preto, Puzzles, Irmãs Siamesas, O Grande Jogo da Memória e Amnésia fazem parte da exposição intitulada A Identidade do Jogo, apresentada pela primeira vez no Centro Cultural São Paulo em 1991. 
    4.    Donald Kuspit, “The Repressed Face”, Aperture, n. 114, primavera de 1989, pp. 48-54.

    5.   Walter Benjamin, “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica” (primeira versão), em op. cit., pp. 165-196.


HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente (excerto de texto). In Rosângela Rennó. Edusp: São Paulo, 1996, pp. 115-191.


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