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febre do cerrado, 2008  

savanna fever, 2008

impressões digitais em papel de algodão Mitsubish Smooth 300gr, emolduradas

da esquerda para a direita, os autores das seis sequências fotográficas e dos depoimentos: João Castilho, Leo Drumond, João Castilho, Odilon Comodaro, Leo Drumond e Joel Silva

189 x 47 cm (cada foto) e 22 x 32 cm (cada depoimento)

assistência de produção e pesquisa de imagem: Simone Rodrigues

framed digital prints on Mutsubish Smooth 300gr cotton paper

authors of the six photographic sequences and testimonies/texts from left to right: João Castilho, Leo Drumond, João Castilho, Odilon Comodaro, Leo Drumond e Joel Silva

189 x 47 cm (each photo) e 22 x 32 cm (each testimony)

production assistance and image research: Simone Rodrigues

© Paulo Costa

Se fotografar é apropriar-se da coisa, em si, apropriar-me de fotografias é apropriar-me duplamente da coisa, isto é: da coisa, em si, e da cópia da coisa. Deve ser considerado como uma ‘possessão dupla'. O redemoinho -fenômeno que surge e se desfaz em segundos e, obviamente, difícil de fotografar- tem grande carga simbólica no sertão mineiro: é visto como uma espécie de materialização do demônio. Partindo desse princípio alegórico, fotografar um redemoinho é como fotografar o próprio demo e cabe a nós, criadores e expectadores, fazermos parte desse pacto. 

Em 2008 eu quis conhecer a região do sertão mineiro que inspirou meu ilustre conterrâneo João Guimarães Rosa e, lá, fotografar redemoinhos. A viagem não se realizou; então, empreendi uma grande pesquisa, entre fotógrafos -amigos, desconhecidos, famosos- procurando aqueles que já tivessem conseguido realizar essa façanha e que pudessem compartilhar comigo e com o mundo, não apenas a documentação daquele fenômeno natural e efêmero, mas a sensação de fotografá-lo. Como? Através de seu próprio relato sobre aquele momento mágico, algo que o aproximasse da própria magia do Grande Sertão Veredas. O depoimento do outro é um agente ativador: compartilhar histórias é aproximar o fotógrafo da literatura.  O sertão do romance virou o romance no sertão. O que há de mais próximo do demo do que o delírio da febre ou da paixão? 

Durante a pesquisa em busca das imagens, ouvi mais histórias sobre redemoinhos passados e perdidos do que vi redemoinhos efetivamente fotografados. Mesmo que nada de substancial tenha mudado na paisagem, percebe-se que houve uma presença, ali, fugaz, como um calor súbito, um perfume ou acordes de uma canção. Mesmo que não reste uma imagem como testemunho, através do relato, da narrativa, fica a reminiscência, a mágoa, a cicatriz. O que resta de uma febre, senão a lembrança de que ela veio e se foi


Rosângela Rennó, 2008
If photography is appropriation, to appropriate photographs is a double appropriation, of the thing itself and its copy. It should be seen as a 'double possession.' A whirlwind —a phenomenon that comes and goes in seconds and is, obviously, difficult to capture— has great symbolic significance in the hinterlands of Minas Gerais: it is seen as a kind of embodiment of the devil. Based on this allegorical principle, registering a whirlwind is like registering the devil himself, and it is up to us, creators and viewers, to comply with this pact.

In 2008 I wanted to visit the hinterlands of Minas, the territory that inspired my illustrious countryman João Guimarães Rosa, in order to photograph whirlwinds. The trip did not materialize, so I did extensive research, among photographers —friends, unknown, famous— looking for those who had managed this feat and could share it with me and the world, not just the documentation of that natural and ephemeral phenomenon but the sensation of photographing it. How? Through their own account of that magic moment, something approaching the magic of Guimarães Rosa’s Grande Sertão Veredas. The testimony of the other functions as an activating agent: the sharing of stories brings the photographer closer to literature. The hinterland of the novel becomes the novel in the hinterlands. What lies closer to the demon than the delirium of fever or passion?

During the research, looking for images, I heard more about whirlwinds ephemerally witnessed than actually photographed. Even if nothing substantial had changed in the landscape, one recognized a presence, fleeting, like a sudden heat, a mist, or the chords of a song. Even if no image remains as evidence, through the story, through narrative, the memory lingers, the bitterness, the scar. What remains of a fever, except the memory of it coming and going[R1] ?


Rosângela Rennó