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Rennó ou a beleza e o dulçor do presente


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  • Série Cicatriz


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    […] O ângulo de visão é o que estabeleceria, para Cicatriz de Rosângela Rennó, a conexão mais imediata entre a câmera fotográfica e a prisão, com seu modelo arquitetônico orientado pela panóptica (1). O espaço seria de laboratórios de poder. Naquilo que seria o território lombrosiano feito em fotografia, Rennó procura encontrar outros índices de enquadramento e resistência, de individuação, identidade e diferença. “Macbeth, Hamlet e Otelo têm cada um a sua maneira de matar e de confessar”, afirma Enrico Ferri em 1902; “Essa verdade foi recentemente adquirida pela ciência, mas tinha sido adivinhada pela arte. Para a precisar, entre o tumultuar confuso das observações comuns e das verdades verossímeis, mas superficiais, recorreu a antropologia criminal ao bisturi da anatomia psicológica, nas cadeias e nos presídios, e socorreu-se a arte humana da intuição dos grandes gênios”(2). Cicatriz de Rosângela Rennó é, de modo crítico, uma fusão panóptico-lombrosiana. A arquitetura vira o olho da câmera, como uma grande-angular no espaço da penitenciária. O panóptico talvez seja a coisa mais semelhante à câmera munida de uma lente grande-angular. No conjunto de trabalhos em torno de Cicatriz (3), Rennó escrutina como se dá a construção do panóptico visual através da fotografia. A máquina fotográfica não é acessório, mas definição e conclusão, conjuntamente instrumento e prova, como afirma Giorgio E. Colombo (4). A artista extrai seu material relativo a esse modo de construir a extensão do olho fotográfico como a própria extensão do olho do Estado. Essa incidência do olhar fotográfico do Estado recai sobre o mais íntimo do corpo e sobre a relação do indivíduo com o próprio corpo. A câmera seria um olho onividente. Já não se vigia o lugar onde está o corpo do prisioneiro, mas todos os lugares do corpo do prisioneiro. No ambiente penitenciário e lombrosiano, os corpos são fotografados, marcados por signos, catalogados – “o tipo criminoso é retalhado em sua definitiva diversidade”, diz o mesmo Colombo. Constrói-se um homem indiciário, conforme os padrões da criminologia. A lente da câmera há muito já passara a constituir-se numa espécie de olho poderoso, como a da torre central do pan-óptico nas penitenciárias. Como no caso da ação penitenciária e da polícia técnica, Rennó passa a ler o próprio corpo do suspeito, no caso já não mais o preso, mas a própria fotografia, com o seu déficit social. Finalmente, pode-se dizer que o fotógrafo é um ladrão de almas. Rosângela Rennó produz uma bertillonage (5) poética. Encontra indícios e analogias de um discurso inaparente, subterrâneo ainda que correndo à flor da pele ou em sua espessura (6). 

    Desde os grandes mestres do Japão até aquele Índio do Brasil, “as razões para uma pessoa se tatuar têm sido discutidas de muitos modos por antropólogos, criminologistas e psiquiatras: atrair boa sorte ou espantar doenças ou o mal; provar ou exibir seu lugar ou status; decorar- se em ato de vaidade ou de auto-estima”, escreve Sandi Fellman (7). Para além dessas razões, entre as imagens de tatuagem selecionadas por Rosângela Rennó para o projeto Cicatriz, está a do presidiário apelidado d’Artagnan, que faz tatuar as inscrições alusivas à polícia: MORT AUX CONDES e MORT AUX VACHES, uma em cada pé, além de ENFANT DU MALHEUR. Outro interno faz inscrever em seu corpo as palavras TRAIÇÃO E VINGANÇA. São inscrições da resistência ao processo penitenciário. No Museu de Arte Contemporânea (MoCA) de Los Angeles (1996) a instalação Cicatriz é composta por dezoito fotografias e doze textos do Arquivo Universal que falam de cicatriz, sendo que os elementos têm uma disposição randômica. Os textos são realmente esculpidos na parede e as fotos encaixadas na parede de um modo absolutamente nivelado. “É uma instalação epitelial”, diz Rosângela Rennó, “pode-se passar a mão na parede e não há nada sendo projetado para fora. Só os textos estão em recesso”(8). Desse modo, Rennó deixará a galeria inteiramente vazia, nada ocupando de sua área. Os textos seriam, pois, como poros dessa exposição. As cicatrizes, nesses textos, são marcas tanto físicas quanto metafóricas. São marcas na alma porque são marcas no corpo. A pele que se tatua é a pele do cubo branco, território da arte. 

    Rosângela Rennó, no entanto, não adota uma posição maniqueísta ou benevolente na seleção das imagens. No interior da penitenciária existe uma prática, pelos condenados por crimes contra a propriedade e a vida, de se posicionar contra os praticantes de crimes de origem sexual (estupradores) e contra a diferença sexual (homossexuais), discrepante dos padrões dominantes numa sociedade machista. O grupo de presidiários dominante tinha o código, em geral, de fazer tatuar no rosto uma pinta, pequeno círculo negro, nos estupradores e homossexuais. O serviço fotográfico do Museu em Carandiru registrou inúmeros desses casos. A privação da vida heterossexual ativa aos presidiários resultava em mecanismos de compensação de fundo psíquico variado. Rennó apresenta algumas fotos de partes de rostos marcados por aquelas pintas, sinal da diferença (9). Estranhamente, a amnésia agora requer a lembrança, permanente, explícita e indelével. Na reorganização do capitalismo pelos presidiários e do sistema informal de poder entre os internos no presídio o estigmatizado se transforma em estigmatizador. 

    Não se pode discernir. Não se pode nomear. É proibido identificar. São fatos inomináveis. Não se trata do indizível na especulação filosófica ou nos entremeios da metafísica. “Aquilo de que não se pode falar, guarda-se em silêncio”, escreve Ludwig Wittgenstein no prólogo de seu Tractatus Logico-Philosophicus (10). O que é uma investigação filosófica de Ludwig Wittgenstein dos limites do conhecimento é, mutatis mutandis, parte de uma estratégia social no interior dos limites confinantes de um sistema de dominação: o que não se pode mostrar (isto é, tornar visível) deve lançar-se em sombra. A obra de Rennó trabalha então sobre uma área de recalque. Seu projeto não é apenas o mais óbvio, que seria iluminar o terreno social, mas sobretudo mapear a sombra. Com imagens visuais ou verbais, Rennó sabe, como Walter Benjamin, que “renunciar ao homem é a mais irrealizável de todas as exigências”(11).

    A obra de Rosângela Rennó enquadra-se naquele conceito de fotografia enquanto uma prática de significação, enunciado por Victor Burgin como “trabalho com materiais específicos, dentro de um contexto social e histórico específico, e para objetivos específicos”. Pode parecer paradoxal afirmar que para a artista não houve uma decadência do papel da fotografia de tornar visível, evidenciar e aproximar. Sua obra aponta para o fato de que, no processo de amnésia social, a fotografia pode ser nova e eficiente forma de seu agenciamento, um jogo de esquecimento. Não é necessariamente a garantia absoluta de sua superação, como pareceu para alguns. Tornar visível é, portanto, apontar, dizer, recuperar a história, extrair do esquecimento. O principal do trabalho de Rennó talvez não seja resgatar a identidade, mas evidenciar o esquecimento produzindo uma fisionomia social pela recuperação de atitudes ante a fotografia e não meramente de imagens. E a partir daí, Rosângela Rennó age contra a inviolabilidade do esquecimento. Resgatar o sujeito no limite. Na arte brasileira o conceito de amnésia social de Rosângela Rennó pode ser comparado com o de “voz do gueto” de Cildo Meireles, em obras como Tiradentes: Totem – Monumento ao Preso Político (1970) e Olvido (Oblivion) (1989), ou com Emmanuel Nassar (12) a partir dos anos 80. A obra dessa artista opõe-se a qualquer operação de aphaeresis, em que a figura de retórica de supressão de um som é tomada como metáfora da supressão da própria voz sob a repressão política. Gueto seria a situação de confinamento e, sobretudo, vácuo, na qual se confronta com a impossibilidade da voz, seja ela um grito de dor ou denúncia. São ações em circunstâncias extremas em que o artista põe-se como duplo do Outro como única possibilidade de reconstituição da voz do oprimido. O que caracteriza essa produção de Rosângela Rennó é a compreensão de que o compromisso está também na forma de atuar e de organizar a obra. Victor Burgin sustenta que a imagem representa uma repressão contingente de práticas latentes: é nesse sentido que ela é ideológica (13). Naquela amnésia, o indizível não é apenas o nome esquecido e o anonimato, mas também a condição desse sujeito, transformado em ser inecessário pela ordem social. O indizível, para alguns, ficaria reservado a Deus, ou a certa tradição metafísica, como diria Wittgenstein. Na negação da imagem, Rennó revela o indizível, no recurso à extrema contundência do visível ou na sua aflitiva ausência. Sua obra, naquilo que contém de crítica à cultura, não cai na tentação de esquecer o indizível, porque busca, com toda a impotência que se queira de uma fotografia como imagem problematizada, que proteja o homem oprimido do indizível (14). 


        1.    Uma construção que permite um sistema permanente de vigilância de todas as celas de uma prisão através de uma torre central, na qual o vigilante não é visto pelos presidiários, que então nunca sabem se estão sendo vigiados e, desse modo, internalizariam a própria vigilância. 
        2.    Os Criminosos na Arte e na Literatura, 3. ed., Lisboa, Livraria Clássica, 1923. 
        3.    Grande presídio do Estado de São Paulo, onde foram massacrados 111 presidiários em 1992 numa rebelião motivada pelas péssimas condições do sistema penitenciário. O fato tornou-se agente na arte brasileira, como se enumera na nota 49 supra. Rosângela Rennó procura Carandiru exclusiva- mente no arquivo fotográfico institucional e não pelo massacre. Inicialmente a direção do Presídio do Carandiru titubeou em autorizar a realização do projeto de Rennó por defesa da privacidade dos presidiários, ainda que todos provavelmente já mortos. No entanto, a artista apresentou-lhe uma edição da tese de doutorado de Francisco Alves Corrêa de Toledo, Contribuição ao Estudo das Tatuagens em Medicina Legal (São Paulo, Seção de Obras do Estado, 1924), na qual são publicados alguns prontuários. Para manutenção da privacidade dos internos fotografados, a direção do Carandiru exigiu da artista que não reproduzisse qualquer número de identificação dos presidiários porventura existentes nas fotografias. O Museo Cesare Lombroso, mencionado neste texto, também restringe a visitação pública. 
        4.    Giorgio E. Colombo, “Le Stimmate del Galeotto”, Phototeca, 1(1): 128-120, 1980. 
        5.    O escrivão da polícia francesa Alphonse Bertillon propõe, em 1876, o uso de uma antropometria somática recurso auxiliar da identificação, conforme Maurício Lissovsky, “O Dedo e a Orelha, Ascensão e Queda da Imagem nos Tempos Digitais”, Acervo, op. cit., pp. 55-74. 
        6.    A busca da espessura da imagem, também com recurso à tatuagem, é encontrada paralelamente na obra da pintura Adriana Varejão, a partir de sua pintura Extirpação do Mal por Incisura (1994). 
        7.    “Spirituality and the Flesh: The Japanese Tattoo”, em The Japanese Tattoo, Nova Iorque, Abberville Press, 1986, p. 14. 
        8.    Depoimento oral ao autor em 10 de agosto de 1996. Na Bienal de São Paulo (1994), os textos estavam incrustados na parede e na mostra Crudo y Cocido a instalação se dava nos vãos em profundidade máxima do vão a 90 cm ou na superfície, como continuidade das paredes. 
        9.    Por seu acordo com o Museu Penitenciário, Rennó aqui não apresenta o rosto inteiro dos presidiários. 
      10.    Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, tradução portuguesa de M. S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. 
       11.   Walter Benjamin, “Pequena História da Fotografia”, em Magia e Técnica, Arte e Política, op. cit., p. 102. 
      12.    “Emmanuel Nassar: Arte de Solidões”, em Emmanuel Nassar, Niterói, Galeria da UFF, 1996. 
      13.    Victor Burgin, “Photographic Practice and Art Theory”, em op. cit., p. 67. 
      14.    Aqui foi realizada uma paráfrase de uma passagem de Theodor Adorno em Prismas, tradução espanhola de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962. 


    HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente (excerto de texto). In Rosângela Rennó. Edusp: São Paulo, 1996, pp. 115-191.


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