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O que é bom para o lixo é bom para a poesia: uma aproximação com a matéria poética de Rosângela Rennó


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    “O mundo vai sempre ter fotografias demais... Acho que devemos reaprender a ver, passar por uma espécie de reencantamento. De uma forma geral as fotografias não nos encantam mais” (RENNÓ, 2003, p. 13). Nesse depoimento (1), Rosângela Rennó se refere à demasiada quantidade de imagens fotográficas, o que faz com muitas delas acabem esquecidas. A artista – que raramente atua como fotógrafa –, desde o início de sua carreira, optou por trabalhar com as sobras da cultura, com o que estava destinado ao lixo, adquirindo, recolhendo e colecionando objetos diversos (fotogramas, arquivos pessoais, arquivos de fotógrafos populares, álbuns de família, notícias de jornais, negativos, slides). Sua matéria-prima são as imagens periféricas, memórias do indivíduo comum que, em algum momento, foram registradas e, posteriormente, abandonadas, perdidas, esquecidas, vendidas ou doadas (2). 

    Rosângela Rennó parece estar o tempo todo lidando de maneira crítica com a própria história da fotografia, que para ela não é a das grandes imagens, mas uma possibilidade de reconhecimento crítico da sociedade. “Para Rennó, o fotógrafo não é aquele que torna algo visível, mas o artista que torna a fotografia criticamente cognoscível em sua circulação social.” (HERKENHOFF, 1998, p. 152). Nesse procedimento de apropriação, geralmente relacionando imagens com textos, numa espécie de intertextualidade visual, estaria Rosângela Rennó pretendendo resgatar a memória ou mostrar a impossibilidade de sua recuperação na contemporaneidade? Ou estaria propondo uma alternativa para tratar desse excesso de imagens, ressignificando-as de maneira a propor novas leituras e interpretações? Neste caso, qual o papel da fotografia hoje: ser uma simples reprodução da realidade, do que algum dia existiu, ou produzir outras relações baseadas no subjetivo, na vida e também (por que não) nos sonhos do espectador? 

    Neste artigo, analisaremos, especificamente, a série Matéria de Poesia (para Manoel de Barros), realizada entre 2008 e 2013, na qual, após mais de vinte anos de carreira, Rosângela Rennó faz uma espécie de síntese de sua trajetória artística. Nessa série, realizada com slides recolhidos em diversas partes do mundo, a artista compõe novas imagens a partir da sua sobreposição, resultando numa aparente opacidade e numa montagem que possui uma atmosfera de sonho, quase surreal, provocando novas e múltiplas interpretações, incertezas, dúvidas e questionamentos. 


    SOBRE FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E ESQUECIMENTO 

    Para Susan Sontag (2004), a fotografia não é apenas uma imagem, mas também um vestígio de alguma coisa que existe na realidade; é sinônimo de aquisição, de posse de algo, o que daria a ela um caráter de objeto único. Entretanto, quando algo é fotografado, também passa a fazer parte de um sistema de informação, com classificações e armazenamento. A exploração e a duplicação fotográficas fragmentam continuidades e distribuem os pedaços num dossiê que nunca tem fim. 

    As fotos, que brincam com a escala do mundo, são também reduzidas, ampliadas, recortadas, retocadas, adaptadas, adulteradas. Elas envelhecem, afetadas pelas mazelas habituais dos objetos de papel; desaparecem; tornam-se valiosas e são vendidas e compradas; são reproduzidas. Fotos, que enfeixam o mundo, parecem solicitar que as enfeixemos também. São afixadas em álbuns, emolduradas e expostas em mesas, pregadas em paredes, projetadas como dispositivos. Jornais e revistas as publicam; a polícia as dispõe em ordem alfabética; os museus as expõem; os editores as compilam (SONTAG, 2004, p. 15). 

    Embora a contribuição de Sontag seja interessante por apontar a questão fragmentária da fotografia e a sua possibilidade de reconstrução por meio do seu recolhimento e arquivamento, ainda está baseada na fotografia como uma imagem que se refere a algo real, a um índice. 

    Philippe Dubois (1993) explica melhor essa definição da fotografia como índice (impressão, traço, marca, registro de algo). Para ele, o ato fotográfico pretende destacar a condição indicial da imagem fotográfica, na qual haveria uma conexão física entre a imagem captada pela fotografia e o objeto existente (referente), o que não pressupõe, entretanto, a representação física (ou mimética) do objeto. O autor destaca três características dessa concepção teórica: a singularidade, a atestação e a designação. A singularidade é a própria gênese do índice; o traço fotográfico é singular e tem origem na unicidade do referente, ou seja, há uma relação única entre o signo e objeto. Outra característica é a atestação, ou seja, a fotografia não significa, mas testemunha, certifica, autentica, remete à existência do objeto do qual procede. A fotografia tomada como índice “é por natureza um testemunho irrefutável da existência de certas realidades.” (DUBOIS, 1993, p. 74, grifo do autor). A designação está ligada à atestação e nos remete ao referente; o traço indiciário não afirma, mas designa, indica, sublinha a relação singular com uma situação referencial determinada. 

    André Rouillé (2009) escreve contra a abordagem da fotografia baseada na noção de índice – defendida por Dubois e utilizada, por exemplo, no isso foi de Roland Barthes (1984) –, que ele considera demasiadamente abstrata, essencia- lista e redutora, principalmente nos tempos atuais, quando ocorrem novas relações com as imagens. Para ele, também devemos perguntar o que foi que se passou?, dando um caráter interrogativo e não apenas constatativo à fotografia. “Na realidade, a fotografia é ícone, referência e composição, aqui e lá, atual e virtual, documento e expressão, função e sensação” (ROUILLÉ, 2009, p. 197). O autor propõe um enfoque mais global da fotografia no qual se deve reconhecer o papel que se estabelece entre o passado virtual da memoria e o presente atual da matéria, ou seja, devemos conjugar nossas percepções com a realidade física das coisas e as lembranças imateriais; e sempre que nos voltarmos para o passado, o elemento da subjetividade estará presente. Se o percurso da impressão material é da ordem da repetição, o da memória conduz à diferença e à criação. Portanto, “A imagem fotográfica nunca é repetição sem ser diferença” (ROUILLÉ, 2009, p. 223). 

    O uso da fotografia por Rosângela Rennó – assim como por Christian Boltanski (1944–) e Alfredo Jaar (1954–) – está ligado à sua tradição histórica e cultural; porém, ela é vista como ilusão do real. As obras desses artistas indicam que a fotografia hoje possui uma indeterminação referencial, uma multiplicidade de sentidos que se desdobram em direções diversas. Não há mais, na fotografia, certeza daquilo que foi, como afirmava Barthes. Ela não é garantia de memória. No seu conjunto, o trabalho de Rennó perpassa alguns questionamentos da memória no século XX, tanto a pessoal/ individual, como a coletiva, observando-se nas obras mais recentes a presença das duas memórias, como pequenos arquivos, os quais ela está sempre (retro)alimentando. 

    Na obra de Rennó, a utilização de objetos e meios obsoletos talvez demonstre sua consciência de que é impossível tudo armazenar, mesmo após a revolução documental pelos meios digitais; porém, o que interessa à artista não é a quantidade, mas a qualidade. Trabalhar com coisas que estão no lixo ou vão para o lixo a faz pensar (como ela afirma) em que medida se pode determinar o seu valor: “[...] em fotografia, pode-se falar de valor estético, valor documental, valor simbólico, valor sentimental, e por aí vai... então, quando se destinou uma imagem ao lixo, significa que ela perdeu muita coisa.” (RENNÓ, 2003, p. 15). 

    Andreas Huyssen (2000) nos diz que vivemos seduzidos pela memória ao mesmo tempo em que acusa a cultura contemporânea de amnésia e apatia, pela rapidez com que tudo se torna obsoleto, fazendo com que percamos os vínculos com os objetos. A memória (dotada de um caráter transitório) e o esquecimento são, portanto, parte de um mesmo processo. Os discursos sobre a memória e o esquecimento estão presentes, tanto na preocupação com a visualidade que demonstraram alguns poetas quanto no uso da palavra pelos artistas. 


    MATÉRIA DE POESIA OU POESIA DE MATÉRIA? 

    Rennó recontextualiza imagens perdidas, senão recuperando o que restou dos seus significados, abrindo-as para novos sentidos, lutando constantemente contra o esqueci- mento e a efemeridade do mundo contemporâneo. A artista cria maneiras para dar nova visibilidade às imagens; propõe estratégias para que possam ser vistas de novo, em outro contexto e com outro papel. O espectador não seria um sujeito passivo, mas ajudaria a reelaborar a imagem a partir da sugestão de uma narrativa que pretende desafiá-lo, fazendo com que ele formule suas próprias conexões; realize suas próprias intertextualidades; associe a fotografia ao seu repertório de imagens, e, enfim, veja o que deseja ver. 

    Vilém Flusser (1985) – que, de certa forma, atualiza as ideias de Walter Benjamin e seu estudo sobre a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica – afirma que esquecemos como decodificar imagens após o estabelecimento do que ele chama de imagens técnicas. 

    O caráter aparentemente não-simbólico, objetivo, das imagens técnicas, faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas, e não imagens. O observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos, quando critica as imagens técnicas (se é que as critica), não o faz enquanto imagens, mas enquanto visões do mundo (FLUSSER, 1985, p. 14). 

    Portanto, a aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois elas são tão simbólicas quanto qualquer outra imagem e devem ser decifradas por quem deseja captar os seus significados, revelando não o mundo, mas determinados conceitos relativos a ele. Para Flusser, as imagens são mediações entre o homem e o mundo, porém têm um caráter mágico, essencial para sua compreensão. Ele destaca ainda, nesse processo, a importância da atitude crítica do observador, que deve ser capaz de decodificar as imagens. Nesse sentido, Rennó estaria então propondo uma problematização da relação da imagem com o espectador, provocando respostas críticas. A própria artista explica o seu processo: 

    A maneira que encontrei para tentar promover esse reencantamento [da imagem] foi forçar uma falsa opacidade na imagem. Com ela provoco uma dificuldade de decodificação, um ruído, um curto-circuito, que faz com que o espectador não fique diante de uma imagem precisa. [...] Ele é forçado a voltar-se para os seus referenciais e reconstrói a imagem mentalmente, desviando-se do puro estímulo visual (RENNÓ, 2003, p. 13). 

    [...] minha estratégia é provocar uma espécie de apagamento do primeiro referencial para que você possa entrar numa viagem com o personagem e assim fazer com que essas imagens ganhem visibilidade, mas de uma nova forma, pois não faz sentido repetir o que está feito (RENNÓ, 2003, p. 15). 

    O uso do texto aliado à imagem fotográfica torna-se um elemento fundamental para alcançar esse objetivo. Como a artista afirmou em entrevista, no início teria sido uma espécie de brincadeira com títulos que pudessem remeter a algo ou provocar um estranhamento no espectador, porém aos poucos ela foi percebendo que era um mecanismo poderoso que poderia ativar um universo paralelo, mais ficcional do que documental, portanto, diferente da fotografia convencional ou tradicional (RENNÓ apud SCHENKEL, 2011, p. 182). Na mesma entrevista, Rennó diz que é muito rigorosa com a forma como o texto é utilizado, variando conforme a obra. Muitas vezes, ele entra com força; em outras ocasiões, ele é simples, quase transparente. 

    Essa simplicidade é o caso de Matéria de Poesia (para Manoel de Barros) (3), onde Rosângela Rennó retoma a intertextualidade da imagem e do texto, utilizando a poesia de Manoel de Barros (1916 – 2014). 

    Para cada poema, a artista combina uma seleção de seis imagens, criadas a partir da sobreposição de slides (encontrados ou comprados em antiquários ou briques) e ampliadas em grande formato, mantendo de alguma forma uma relação temática e/ou por tonalidade entre si. Há um conjunto para cada letra do alfabeto e eles estão identificados em Grupos de A a Z. Cada série tem um subtítulo que é composto pelos trechos dos poemas, sendo geralmente uma afirmação contundente, de alguma forma relacionada com a arte. Os poemas, com a referência bibliográfica completa e o mesmo tamanho do conjunto dos slides originais utilizados para compor a imagem, são apresentados dispostos em caixas acrílicas, ao lado das impressões. 

    O texto tem uma sobriedade e um tamanho precisos, um recato. Ele tem a escala do conjunto dos slides que foram usados para formar as imagens. É para ser lido em silêncio, o que é muito diferente da forma como você vê a imagem que corresponde a ele, que é uma imagem preta enorme. Ele é pequenininho, quase como um segundo momento da mesma coisa (RENNÓ apud SCHENKEL, 2011, p. 190). 

    Se os poemas indicam pistas ao espectador, também deixam em aberto as interpretações e as relações, principalmente porque o resultado do trabalho de sobreposição cria figuras opacas, nas quais predominam tons escuros, não havendo definições claras das imagens originais utilizadas. A opacidade da imagem em tamanho grande, em contraste com os poemas em tamanho reduzido, é mais um artifício que a artista usa para desafiar o espectador, chamar a sua atenção, promover a imaginação. 

    As imagens não têm a menor relação com os textos, são um mero pretexto para você procurar. [...] É um emaranhado de imagens no preto, então você pode achar ali o que quiser, o que você procurar. E às vezes você não vai achar nada, vai olhar e pensar: nossa, eu não vi nada daquilo. É para te provocar. Agora, os textos foram escolhidos a dedo, porque, na verdade, todos têm a ver com a coisa do nada, do vazio, do singelo, que é uma coisa característica do Manoel, essa construção a partir do ínfimo, da qual ele fala. 

    [...] O que é bom para o lixo, é bom para a poesia. Começou daí. Como eu estava lidando com esse território de imagens que não serviam para nada hoje em dia, que as pessoas jogam fora, eu tentava resgatar a poesia que tinha naquilo, porque elas já não cumpriam função nenhuma. O hábito de celebrar o ver imagens, compartilhar ao mesmo tempo em que você vê, que era o grande barato das sessões de slide, hoje você não tem mais (RENNÓ apud SCHENKEL, 2011, p. 192). 

    Esses slides funcionaram em determinado momento como um rito social, utilizando a expressão de Susan Sontag (2004); eram produzidos para ser vistos em conjunto e compartilhados; por meio deles foram construídas crônicas visuais de indivíduos, da família, de determinados grupos, de viagens, etc. A artista junta os restos de memórias de diversas pessoas em diferentes lugares e aponta para uma nova construção, a partir da observação de cada um. Ao utilizar slides sobrepostos, ela está utilizando imagens diversas, que juntas, acabam formando uma nova, porém mantendo a sua condição fragmentária. Seria como se a aura (nos termos de Benjamin), ou o punctum (de Barthes), que um dia existiu de alguma maneira para alguém naquelas fotografias, se reconfigurasse em diversas e múltiplas outras possibilidades, dependendo da experiência pessoal e de vida dos diferentes espectadores. Conforme Camila Schenkel (2011, p. 156), Rosângela Rennó 

    [...] trabalha com a perda da função social da fotografia que se torna uma superfície opaca, ao se distanciar de seu referente, deslocar-se de um álbum, perder-se de seu dono, escapar de um arquivo. Rennó sublinha essa tendência da fotografia à deriva e ao desvio de seus usos originais, ao associar essas imagens a novos textos e vozes, dando-lhes novos rumos, ora mais ficcionais, ora mais críticos. 

    Rennó nos mostra que aquelas imagens aparentemente mortas e apagadas estavam na verdade adormecidas, à espera de olhares que possam, não apenas vê-las, mas observá-las e reinterpretá-las. O que parecia invisível se torna novamente visível, embora de maneira diferente. Há uma relação entre a imperfeição da própria fotografia e da memória, no sentido em que ambas são fragmentárias e não podem dar conta de uma totalidade, de uma verdade, de uma certeza. 


    O (RE)ENCANTAMENTO DO OLHAR 

    Vejamos este trecho de um poema de Manoel de Barros (4). 

    Não tenho bens de acontecimentos.
    O que não sei fazer desconto nas palavras.                                                                                           Entesouro frases. Por exemplo:                                                                                                                     – Imagens são palavras que nos faltaram.
        – Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
        – Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
    Ai frases de pensar!
    Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
    Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)                                                                       Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
    Outras de palavras.                                                                                                                                     Poetas e tontos se compõem com palavras. 

    Percebe-se, pela citação acima, como a sua poesia é instigante, desafiadora e original. Entre as características do universo literário do poeta, sobressai a reinvenção do cotidiano, a partir do lixo, desviado do sentido usual e o desejo de explorar o não sabido. Apesar de lidar com temas da natureza, da região pantaneira propriamente dita, portanto regional, o seu fazer poético possui uma dimensão global, por contemplar problemas inerentes à condição humana. Ele não utiliza as formas tradicionais de representar a realidade, aposta no trabalho poético de desconstruir o mundo e reconstruí-lo por meio da imaginação, dando espaço para a interpretação, para o sonho, para o delírio, num processo onde o leitor não é apenas um receptor passivo, mas um construtor participativo. 

    É impossível não ver semelhanças entre a poesia de Manoel de Barros e o trabalho artístico de Rosângela Rennó que estamos tratando neste texto. Ambos tomam sua matéria-prima do lixo e constroem universos poéticos que poderíamos chamar de mágicos, cada um à sua maneira. Os dois tratam de questões da contemporaneidade, do caráter multicultural das sociedades contemporâneas, das novas articulações entre o local e o global, não mais polarizados, mas como uma rede de relações de troca, onde as identidades culturais não são mais fixas, mas estão em constante reinvenção. 

    No caso específico de Rosângela Rennó, se em alguns trabalhos anteriores foi privilegiada a noção ou definição de uma identidade – como nas séries Cicatriz (1996) e Vulgo (1998), por exemplo – em Matéria de Poesia, a artista constrói um caleidoscópio de memórias e identidades diversas e as junta, possibilitando um cruzamento e um encontro que não seria possível na realidade. Seu trabalho tem como resultado um aspecto onírico, de sonho, que mistura realidades passadas, borradas, que não existem mais, com uma ficção que não é dada pela artista, mas construída pelo olhar do espectador. 

    Matéria de Poesia é a colocação em prática da afirmação de Rennó que diz que “a fotografia sempre cria um mundo paralelo” (RENNÓ, 2003, p. 21) e também reafirma a possibilidade de que a arte possa despertar emoções e sentimentos. “Muitas vezes, o trabalho pode ser melodramático e provocar lágrimas. Por que não? Eu gosto disso, eu preciso disso e sinto falta disso nas práticas contemporâneas.” (RENNÓ, 2003, p. 17). 

    Pode-se afirmar ainda que Rosângela Rennó atua como artista pensando a fotografia de forma multifacetada, como na proposição de André Rouillé (2009, p. 449): “[...] no plural, entrecruzando as imagens, as práticas, os usos, as formas, os territórios, e suas variações contínuas”. Isso só é possível a partir do declínio da utilidade prática da fotografia e também devido à grande quantidade de sua produção, permitindo que seja resgatada através de um olhar mais livre e crítico. 

    Em praticamente todo o seu trabalho, durante sua trajetória e, particularmente, neste que é tema do presente artigo, Rennó problematiza o entendimento da fotografia como duplicação do real, liberando-a da representação e da imitação. O que mais parece interessá-la é a possibilidade de tornar visível o que, em algum momento, perdeu o seu valor, suas funções e significados iniciais, num processo que, mesmo afirmando e demonstrando em princípio a sua opacidade, permite a abertura para novas e diversas interpretações. Em Matéria de Poesia, a artista nos mostra que é possível reaprender a ver e nos reencantarmos com fotografias e imagens, mesmo na contemporaneidade. 

        1.    Nascida em Belo Horizonte (MG), em 1962, a artista plástica Rosângela Rennó formou-se em Arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1986, e em Artes Plásticas pela Escola Guignard, em 1987. Em 1997, recebeu o título de doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA – USP). Radicada no Rio de Janeiro desde o final dos anos 80, a artista trabalha com apropriações de fotografias, produz vídeos e instalações. As primeiras obras de Rennó remetem à memória pessoal, familiar, íntima, a partir de fotografias da família. O hábito de colecionar fotos alheias iniciou-se com os fotogramas encontrados nas lixeiras próximas às salas de montagem na ECA-USP. Rennó passou a vasculhar também os antigos estúdios de retratos do centro do Rio de Janeiro e os chamados mercados de pulgas ao redor do mundo. Essas coleções resultaram em obras como Cerimônia do Adeus (1997 – 2003), Bibliotheca (2002), Menos Valia (2005), entre outras. A artista também busca material em acervos institucionais, como nos arquivos do Museu Penitenciário Paulista, nas séries Cicatriz (1996) e Vulgo (1998); na Biblioteca Nacional com a obra 2005-510117385-5 (2009); no Arquivo Público do Distrito Federal, com Imemorial (1994); nos jornais, como em Atentado ao Poder (1992), Espelho Diário (2001), Arquivo Universal (desde 1992), entre outros trabalhos. 
        2.    A artista, num depoimento a Paulo Herkenhoff (1998, p. 123), diz que optou pela história dos vencidos contra a história dos vencedores. 
        3.    Manoel de Barros nasceu no Beco da Marinha, beira do Rio Cuiabá em 1916; morreu em 2014. Foi advogado, fazendeiro e poeta. Escreveu seu primeiro poema aos 19 anos. É autor de inúmeros livros e ganhador de vários prêmios. Seus poemas se destacam pela temática que envolve a natureza e o cotidiano; pela busca de uma nova linguagem, inventando novas expressões e significados nas palavras; pela criação de neologismos e figuras poéticas a partir do prosaico, do simples, do chulo, do infantil, do lixo e do nada. 
        4.    Trecho do poema Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada, do livro O Guardador de Águas. Disponível em: <http://www. revista.agulha.nom.br/manu.html#retrato>. Acesso em: 20 jun. 2014. 


    ROSSI, Élvio. O que é bom para o lixo é bom para a poesia: uma aproximação com a matéria poética de Rosângela Rennó. In Ícone. Revista Brasileira de História da Arte, v. 1, n. 1, 2015, pp. 8-21.