work title
selected texts
projeto terra de José Ninguém, 2021 projeto eaux des colonies, 2020-2021
good apples | bad apples, 2019-2023
lanterna mágica, 2012
Río-Montevideo, 2011/2016
corpo extranho africano, 2011
per fumum, 2010-2011
menos-valia [leilão], 2010
matéria de poesia, 2008-2013
febre do sertão, 2008
a última foto, 2006
apagamentos, 2004-2005
experiência de cinema, 2004
corpo da alma, 2003-2009
bibliotheca, 2002
espelho diário, 2001
série vermelha (militares), 2000-2003
cartologia, 2000
vera cruz, 2000
parede cega, 1998-2000
vulgo/texto, 1998
vulgo, 1997-2003
cerimônia do adeus, 1997/2003
cicatriz, 1996/2023
paisagem de casamento, 1996
hipocampo, 1995/1998
círculos viciosos (472 casamentos cubanos), 1995
imemorial, 1994
atentado ao poder, 1992
a bela e a fera, 1992
duas lições de realismo fantástico, 1991/2015
as diferentes idades da mulher, 1991
obituários, 1991
paz armada, 1990/2021
anti-cinema, 1989
Entre tempos e olhares:
sobre a noção de testemunho na prática artística de Rosângela Rennó
"Los pensamientos binarios, los pensamientos del dilema son por lo tanto ineptos para captar algo de la economía visual como tal. No hay que elegir entre lo que vemos (con su consecuencia excluyente en un discurso que lo fija, a saber la tautología) y lo que nos mira (con su influencia excluyente entre el discurso que lo fija, a saber la creencia). Hay que inquietarse por el entre y sólo por él. No hay que intentar más que dialectizar, es decir tratar de pensar la oscilación contradictoria en su movimiento de diástole y sístole (la dilatación y la contracción del corazón que late, el flujo y reflujo del mar que bate) a partir de su punto central, que es su punto de inquietud, de suspenso, de entre-dos. Es preciso tratar de volver al punto de inversión y convertibilidad, al motor dialéctico de todas das oposiciones. Es el momento preciso en que lo que vemos comienza a ser alcanzado por lo que nos mira, un momento que no impone ni el exceso de la plenitud de sentido (al que glorifica la creencia) ni la ausencia cínica de sentido (a la que glorifica la tautología). El momento en que se abre el antro cavado por lo que nos mira lo que vemos."
- (Didi-Huberman, 2010, p. 47, grifos no original).
- (Didi-Huberman, 2010, p. 47, grifos no original).
Derivada de uma reflexão sobre a relação intersubjetiva nos domínios da arte, a proposta apresentada pelo historiador da arte francês George Didi-Huberman pode nos orientar nos domínios da história em geral e da história oral em especial, a considerar os sentidos do testemunho na configuração de passados possíveis. O que se revela no trecho citado é a necessidade de superar a dicotomia entre sujeitos de tempos distintos e fomentar a capacidade de tomar para si algo que nos é exterior e de tornar própria a diferença que marca a distância entre o que eu vejo e o que me olha, uma necessidade na condição contemporânea do testemunho.
Apoiado na percepção de que a produção do conhecimento histórico é resultado de uma ação consciente de mise-en-abîme (Visconti, 2003) – em arte significa colocar uma evidência em evidência através de recursos visuais –, este artigo propõe-se a se debruçar sobre a prática artística de Rosângela Rennó, reconhecendo em sua ação uma “atitude historiadora” (Mauad, 2018), em que o passado recria-se em operação visual e os sujeitos inscrevem-se na imagem na condição de testemunhos. O olhar mudo de sujeitos anônimos revela-se pelo retorno eloquente da ação da artista visual. Como uma historiadora visual, Rosângela Rennó compõe em suas obras narrativas de passados prováveis. Para compreender os sentidos atribuídos à noção de testemunho na abordagem da prática artística da autora, apoio-me em entre- vistas realizadas com ela em 2015 e 2018 e na análise de um de seus projetos artísticos – Imemorial (1994).
Primeiros contatos
No dia 27 de setembro de 2012, no âmbito do 21o Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap), participei como mediadora de uma mesa-redonda intitulada Ficção, imagem e história, composta pela artista visual Rosângela Rennó e por Marcio Seligman -Silva, professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Creio que no convite, tanto pela minha vinculação institucional quanto pela trajetória dos meus trabalhos, estava implícita a necessidade de colocar em questão o lugar ocupado pela história nos debates contemporâneos sobre a produção visual no campo das artes.
A dinâmica da mesa se iniciou com Rosângela Rennó e o relato de sua experiência artística. O relato foi pontuado pela apresentação de seus trabalhos, cada qual associado a uma história que remontava a uma experiência que havia mobilizado o processo de criação. Histórias dentro de histórias reveladas pelas suas obras me ofereceram uma oportunidade excepcional para me aproximar de sua produção artística da maneira mais interessante possível, ou seja, por meio da sua própria rememoração. Sem contar, é claro, o valor agregado pelos comentários de Marcio Seligmann-Silva, cuja sensibilidade projetou a obra da artista no campo da estética, tratando, em especial, da tensão entre ficção e história nas formas de narração do passado por diferentes sociedades.
O relato da artista me suscitou uma questão que acabou por definir o ponto de partida para minha aproximação com o trabalho dela: “Por que o passado faz diferença? Toda a sua obra está perpassada por uma arqueologia que apropria os vestígios do passado de uma maneira especial. Por que o passado faz diferença para a sua prática artística?”. E a resposta foi a seguinte: “É matéria de imaginação”.
Como matéria de imaginação, o que passou como experiência emanada de vestígios dela mesma deixa de ser o passado para se tornar um passado possível. Entre tantos caminhos que poderia aquela vivência ter tomado, um deles, sem dúvida, foi o de ser matéria de arte. Por outro lado, o uso reiterado de fotografias como vestígio dessa experiência qualifica o interesse da artista em entender o que está em jogo ao se impregnar a imagem de humanidade e os destinos que essa prática implica para a própria imagem: o álbum de família, o arquivo policial, o lixo do descarte. Que sociedade é essa que se deixa fotografar e guarda as suas fotografias em álbuns e arquivos, mas que ao mesmo tempo descarta, desqualifica e desapropria a imagem da sua humanidade ao transformar todos em “fantasmas da gelatina”, para usar uma expressão da artista?
Entretanto, no trabalho de Rennó o exercício de referenciar o passado se faz por meio de uma prática artística que, ao mesmo tempo, nos aproxima e nos distancia da experiência comum e prosaica: os anônimos retornam sujeitos de uma história que cada um pode completar, por meio de estratégias e recursos técnicos que, embora sejam padronizados por uma prática institucionalizada, em seu trabalho são reorientados para um novo objetivo, que é o da construção de uma narrativa sempre aberta e porosa que se completa pela afecção provocada em cada espectador. Nesse sentido, a fotografia é para a artista um gesto de trazer à tona um passado possível para cada sujeito descartado como imagem em um arquivo morto. Em certa medida, ecoam nessa aproximação as referências a Agamben (2007, p. 29), segundo o qual: “A imagem fotográfica é sempre mais que uma imagem: é o lugar de um descarte, de um fragmento sublime entre o sensível e o inteligível, entre a cópia e a realidade, entre a lembrança e a esperança”.
Paralelamente, observa-se na arqueologia de Rennó o florescimento de um pensamento plástico, engendrado pela forma como a fotografia ganha contornos narrativos em suas obras, compondo um exercício de história visual, sendo ela mesma uma historiadora visual. Nessa função, a artista trabalha a biografia das imagens, traçando as suas diásporas e utilizando-se de sua atribuição de autora, para promover a migração de métodos e estratégias de um campo para o outro – práticas que tensionam os limites tênues entre o que referencia a verdade histórica e o que delimita a competência ficcional. Munida dessas questões, organizei minha bagagem para uma primeira entrevista.
A entrevista realizada em 2015 integra um projeto sobre fotografia pública (1), entretanto seguiu os protocolos de pesquisa já utilizados nas entrevistas com fotojornalistas, que se apoiavam na modalidade história de vida. Aqui vale um esclarecimento, pois esse conjunto de entrevistas compõe um projeto continuado no Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi) da Universidade Federal Fluminense (UFF) sobre a “memória e história da fotografia e dos fotógrafos e fotógrafas no Brasil” – que inclui a manutenção de uma base de informações em formato de dicionário, com verbetes temáticos e biográficos (2).
Como uma entrevista de história de vida, estruturei um roteiro em quatro blocos: primeiros estudos, estudos superiores, profissionalização e, para o último bloco, propus um recorte temático para discutir a relação da artista com a história, pelo viés do debate da história pública e de sua prática artística. Não se trata, portanto, de apresentar a entrevista em seus quatro blocos, mas estabelecer uma sincronicidade entre a trajetória da artista, seus projetos e práticas e a emergência daquilo que denomino de atitude historiadora – colocar-se como parte de um processo reunindo passado e futuro.
Mineira de Belo Horizonte, Rosângela Rennó nasceu em 1962, nove anos depois de seu irmão, quinto filho, e 16 anos depois de sua irmã mais velha. Filha de um professor de Engenharia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e com irmãos todos engenheiros, à exceção da irmã mais velha, professora, Rosângela Rennó dividiu sua formação entre artes e engenharia. Entre 1981 e 1987, cursou a Escola de Arte Guignard em Belo Horizonte e o curso de Engenharia/Arquitetura na UFMG, tornando-se a sexta engenheira na sua casa. Quando indagada sobre o porquê de ter investido na dupla formação, a artista responde:
[...] eu tinha muito claro na minha cabeça que eu queria estudar artes visuais ou artes plásticas. E era uma mera questão de tempo e uma questão de justamente esperar, porque eu tinha que passar por aquelas matérias todas insuportáveis, [...] e na época meu pai estava muito doente, na verdade foi quando ele quase morreu. Eu estava no final do segundo grau, aí eu achei que eu devia fazer, meio que até para sossegar um pouco o espírito dele, fazer o curso de Arquitetura era uma forma de fazer uma espécie de concessão, fazer um meio-termo e uma mediação com os desejos dele, que se preocupava de ‘Ah, não, você vai fazer artes plásticas, isso não dá dinheiro para ninguém! Não é carreira! É difícil’. Mas não só por isso, eu sempre gostei muito das disciplinas exatas, das matérias exatas. [...] Eu já imaginava que a interdisciplinaridade era uma coisa fundamental ali para a arquitetura, mesmo sem conhecer, sem ter trabalhado, eu já intuía que isso me interessava mais do que trabalhar só com artes plásticas e ter eu mesma como cliente de mim mesma, entendeu? E eu achei que a formação pudesse ser mais interessante, mais ampla. (Rosângela Rennó, 2015).
A primeira exposição de Rennó, artista e arquiteta, foi de fotografia, em 1985, ainda estudante, no Itaú Galeria, numa proposta que já ensaiava um tratamento próprio para a fotografia:
Nessa época eu ainda fotografava, paisagem urbana. Mas a maior série que eu fiz nessa época, meu grande projeto era o que hoje se convenciona chamar de fotografia construída ou fotografia encenada. Só que naquela época isso não existia, ninguém fazia e eu não sabia de ninguém que fizesse, eu resolvi fazer. E não tinha nome. Era simplesmente você fotografar estruturas feitas para fotografar. Quer dizer, cenários e pequenas estruturas, pequenos displays, cuja finalidade é apenas ser fotografado. E depois você desaparece com aquilo e só apresenta a reprodução fotográfica dele. (Rosângela Rennó, 2015).
Entretanto, a fotografia entraria bem antes na sua história, por meio da câmera tomada de empréstimo do seu pai, quando ela ainda era adolescente:
[...] na verdade é o seguinte: eu sempre gostei de fotografia. Desde adolescente eu fotografava com a câmera do meu pai, porque, para ter uma câmera razoável, eu levei muito tempo para ter uma. A minha primeira câmera razoável foi uma AE-1 que eu comprei na Europa, eu tinha 18 anos. Porque até então eu usava a câmera do meu pai, que era uma Ricoh com fotômetro por fora, então tinha que fotometrar para depois ajustar a câmera. Aí eu falei: ‘Ah, não, pelo amor de deus, eu quero ter uma câmera que pelo menos eu tenha um fotômetro embutido’. (Rosângela Rennó, 2015).
A fotografia traçaria o rumo da profissionalização de Rosângela Rennó:
Para sobreviver a gente faz várias coisas [risos]. Eu fotografava muito, fiz muita reprodução de obra de arte, de trabalhos de artistas, de fazer retratos para jornal, cheguei a fazer um pouco de moda – que era o que dava mais dinheiro. Fotografei para várias grifes mineiras na época. Porque os anos 80 [1980] foi uma época de explosão da moda mineira [...]. E eu cheguei a fazer publicidade para revista, para jornal, tipo propaganda. É, isso que eu fazia para ter minha graninha. (Rosângela Rennó, 2015).
Fotografia como meio de sobrevivência em sentido amplo, pois a dimensão fotográfica na prática artística de Rennó foi ganhando contornos cada vez mais complexos. Rennó orientava seus projetos dentro de um campo de possibilidades definido pelas normas acadêmicas do estudo e da produção de conhecimento, ao mesmo tempo em que buscava uma inserção no mundo das artes visuais. Em 1989, ingressou no mestrado da Universidade de São Paulo (USP) e, quatro anos depois, apresentou seu projeto de qualificação, e seu orientador, prof. Eduardo Peñuela Cañizal (1933-2014), recomendaria a passagem direto para o doutorado. A opção foi aceita pela artista, para ganhar tempo e conseguir sintonizar o mundo acadêmico e das artes, pois havia sido selecionada para participar, com outra proposta, da Bienal de 1994.
Todos os seus projetos tinham em comum o princípio de um “arquivo universal”, que foi sendo montado como uma espécie de reserva de memória de vivências coletivas, restos de experiência e registros de esquecimento:
Aí a gente está falando da Bienal de 94 [1994], a minha questão era, bom, pra variar, esquecimento, memória, era um álbum de família exposto na parede, onde as fotos eram quase preto sobre preto, as molduras eram quase que incrustadas na parede e os textos eram incrustados também em branco, eles eram em relevo branco na parede branca. [...] Em 92 [1992], eu comecei a colecionar os textos de jornal sobre fotografia, foi aí que nasceu o projeto Arquivo universal, eu vinha fazendo as coleções e vinha usando esse material ao longo dos anos, ora eram apresentados só os textos, ou eram textos com imagens de repertórios variados, e isso tudo foi ficando interessante porque uma das questões que o Peñuela mais trabalha era a intertextualidade, e a gente foi entrando cada vez mais na ideia dos cruzamentos dos arquivos de proveniências diferentes, promovendo esses cruzamentos e criando sentido a partir disso, do arquivo universal com outros pequenos arquivos. Aí as coisas foram meio que tomando o rumo natural a partir dessas pequenas coleções e das pequenas edições... Junta texto com a imagem aqui, junta só texto ali, fui construindo dessa forma. Foi então que em 95 [1995] o Marco Antônio Vilaça, que era meu galerista desde 93 [1993], me manda um envelope, dentro tem uma matéria de jornal sobre o museu penitenciário. [...] Mas o museu penitenciário naquela época não existia de fato, era um amontoado de caixas e de coisas. Então, foi aí que eu vi a menção de uma coleção de negativos de vidro que estava semiabandonada – e ainda continua até hoje; eu falei: ‘Não, gente, eu tenho que ir lá ver isso’, aí eu marquei uma visita, em uma das minhas idas a São Paulo, e fui lá ver como é que era. Eu fiquei enlouquecida com o que eu vi, eu falei: ‘Olha, eu tenho que conseguir fazer alguma coisa’. A luta nesse momento foi conseguir que me deixassem pesquisar, porque a gente não pode esquecer que o massacre do Carandiru aconteceu dois anos antes... dois anos e meio antes. [...] Porque qualquer menção a trabalhar com imagem do Carandiru para eles dava nervoso. Mas então foram nove meses para conseguir provar para eles que aquele material, inclusive, era um material pesquisável e, para ser pesquisável, eles tinham que acondicionar esse material, que era responsabilidade deles, a conservação e a guarda desse material histórico. Porque eram negativos produzidos na década de dez do século XX, dez, vinte, trinta, até a década de cinquenta. [...] Isso foi a base do projeto de doutorado e das instalações que eu chamei de Cicatriz, que era na verdade o projeto que foi parte doutorado e parte instalação que eu fiz em Los Angeles. No doutorado foi um projeto de livro de artista, que acabou se tornando um dos capítulos do livro O arquivo universal e outros arquivos. Porque o que aconteceu foi que eu não consegui grana na época pra publicar o livro como eu gostaria, em papel pergaminho e tal. É muito difícil, porque nós estamos falando de vinte anos atrás. Aí acabou sendo quase dez anos depois um capítulo grande do Arquivo universal. (Rosângela Rennó, 2015).
Arquivo universal seria o título de uma das obras da artista em que se consolida uma prática artística que ela reconhece como tributária não da reconhecida Geração 80, mas da emergência de um pensamento fotográfico. Observa-se, pelo depoimento da artista, que no projeto do Arquivo universal se gestaria uma atitude historiadora dentro dos mundos da arte, uma estratégia de tomar o arquivo como uma plataforma de projeção de futuros possíveis, com despojos de uma história invisível, cotidiana e prosaica. O artista se lança no jogo de apresentar a representação, tornando visíveis os meios pelos quais ele mesmo se torna parte da mise-en-scène:
Aí é que está, eu sou dessa geração, mas eu não faço parte da Geração 80 porque eu não sou pintora, eu nunca fui. [...] para mim era quase que natural continuar um diálogo como Waltercio Caldas tinha no Manual da ciência popular. Aquilo era para mim o máximo do pensamento fotográfico. Era aquilo que eu queria fazer. Eu queria poder seguir raciocinando daquela forma. Então não tinha uma espécie de ruptura. Tinha uma ruptura em relação ao documentarismo puro e simples, porque aquilo não me interessava. Mas a questão de discutir o meio usando o próprio meio era o que eu queria fazer. Acontece que naquela época ninguém fazia isso. Então muito poucas pessoas faziam fotografia com esse tipo de pensamento na época. A Rochelli era uma grande colega, aqui no Rio tinha a Paula Trope. Éramos muito poucos. Rubens Mano [...]. (Rosângela Rennó, 2015).
A proposta de romper com a lógica do documentarismo construindo um pensamento fotográfico com base na montagem de um arquivo universal parece contraditória, mas tem como sustentação a compreensão de que não existe um único passado, e sim passados possíveis que são acessíveis somente por meio das fotografias (Lissovsky, 2011). Na condição de historiadora visual de passados possíveis, Rosângela Rennó reconhece na sua metodologia o princípio da ação aleatória na busca da vida pregressa das imagens:
Olha, tem muita coisa que eu não sei explicar para você exatamente como é que as decisões são tomadas. Na verdade, assim, há várias possibilidades, e eu inclusive mudo coisas também. Por exemplo, uma mesma imagem pode se prestar a vários suportes e ela pode migrar de um trabalho para o outro. Eu uso uma foto aqui, e uso ela de novo em outro contexto se for importante para mim. Eu não tenho pudor nenhum nesse sentido, não, [...] até porque talvez tenha aprendido a investigar, saber e gostar de entender a origem do trabalho... Eu tenho que ser pesquisadora de todo material que cai na minha mão e me interessa. Quer dizer, se caiu na minha mão e me interessa, aquilo é mais poderoso do que eu, aquilo é imantado por alguma coisa, é uma entidade. [...] o que acontece é que se eu tenho um arquivo grande ou tenho uma imagem, uma coleção de slides e eu sinto que essa coleção ela me lembra ou me remete a alguma coisa e aquela coleção só passa a fazer sentido se ela estiver conectada com outra coisa, enfim. Porque o próprio material me conduz. Eu aprendi a olhar para aquilo e analisar, estudar e deixar o material falar. [...] É porque é isso, no fundo, mesmo quando a coisa não pressupõe uma pesquisa imediata, um álbum que eu comprei na Praça XV pode se transformar numa coisa pesquisável, depende da relação que você estabelece com aquele objeto. E isso na verdade é muito gostoso também, aprender que cada material, ou cada tipo de imagem, tem seu circuito próprio e tem o seu ciclo de vida próprio. E você aprender a entender e avaliar, entender a extensão. Por exemplo, quando você pega uma fotografia, você criar um arquivo de foto de jornal e entender qual é o alcance desse tipo de imagem. E brincar, produzir arquivos falsos, criar meus próprios arquivos. Não trabalhar apenas com arquivo que já existe, mas gerar um arquivo. Meu ateliê é um pouco isso, serve para isso. E é esse exercício que sempre me interessou [...] deixar o material falar como se fosse matéria mesmo. Aí eu acho que tem a ver as artes plásticas. Quer dizer, eu acho que é uma forma diferente dos fotógrafos usarem, porque eu entendo as imagens muito mais dentro de um contexto no qual elas foram produzidas, porque me interessa trabalhar dessa forma. [...] para mim é uma prática de vida, então eu vou e quero e gosto. Eu falei assim: ‘Ah, agora eu estou interessada em fotografia de crime’, então eu vou pesquisar, tudo. Por quê? Porque caiu uma fotografia que me interessou, aquilo mexeu comigo por alguma razão, aí eu fui descobrir que eu já tinha umas fotos, aí alguém me deu, aí vi uma matéria de jornal, aí começa... Às vezes tenho claro que não vou conseguir fechar um assunto todo porque também não me interessa, tem coisas que você se satisfaz com aquilo ali para aquele momento para começar alguma coisa. E aí as decisões são tomadas a partir disso. Por isso que eu não tenho muito como explicar. Porque tem materiais e tem coleções que eu fico dez anos. E aquilo porque comprei um negócio. Porque eu ganhei. Porque era lindo. Porque aquilo era altamente sedutor. Então não vou mexer com aquilo, não sei o que fazer com aquilo. Eu não tenho que fazer nada com aquilo agora. E as coisas vão ficando, você vai processando aquilo ali. E aí um belo dia faz sentido aquela coisa. Por que você não resolveu naquela época e agora faz sentido? Porque não fazia sentido naquela época, também não vou ficar tentando achar explicação para tudo. Aquilo não fazia sentido porque não era necessário para mim naquele momento. As coisas passam a fazer parte da minha vida e serem necessárias no momento em que elas justamente encontram uma razão de ser ali, de estar ali. (Rosângela Rennó, 2015).
Os longos trechos da entrevista aqui reproduzidos circunscrevem aspectos importantes que fornecem sentido e densidade tanto à noção de “atitude historiadora” quanto ao papel de “historiadora visual” atribuído a Rosângela Rennó. O primeiro deles associa-se à sua formação acadêmica interdisciplinar realizada ao longo dos anos 1980 e 1990. Formada em Arquitetura e Artes Visuais, com doutorado em Artes pela USP, a artista tomaria a experiência fotográfica como elemento central da sua prática artística. Embora tenha trabalhado como fotógrafa, não investiu na sua própria prática fotográfica como meio de expressão; ao contrário, distanciou-se da fotografia como meio para investir em experiências passadas só acessíveis porque fotografadas, o que a levou aos arquivos e à elaboração de um método de trabalho em diálogo com os debates sobre a renovação historiográfica dos anos 1980 e 1990.
Esse ambiente de debate e discussão sobre a história e seus objetos e problemas não se limitou aos cursos de pós-graduação em História, tendo em vista que a questão da interdisciplinaridade foi central para a renovação epistemológica do final do século XX. Portanto, um segundo aspecto a ser ressaltado é o seu reconhecimento a uma geração, não àquela definida pelos cânones da história da arte recente, que ela mesma enfaticamente não reconhece, mas àquela geração que vivenciou os processos de defesa do Estado de direito e que tomou o tema da memória como chave para as suas inquietações (Meneses, 1992).
Por fim, mas fundamental para identificar na prática artística de Rennó uma atitude historiadora, consiste a centralidade da fotografia em seu método de trabalho e sua relação com o passado como problema, questão a ser enfrentada. A fotografia revela-se como experiência histórica que só pode ser decifrada à luz da consideração de sua vida social, de uma biografia atribuída, de forma completamente imaginativa, pelos efeitos da ação artística. Esse exercício a afasta da história factual, da fotografia como prova e da imagem como simples representação (ou reapresentação), lançando o olhar do observador para além do que pode racionalmente apreender, convocando-o a lançar-se no fluxo da história e assumir uma “atitude historiadora” e reconhecer na potência do presente em que se vive a configuração de passados possíveis (3).
Testemunhos imemoriais
Uma das empreitadas arqueológicas de Rosângela Rennó pelos arquivos resultou na série Imemorial (1994), uma instalação de 50 fotografias provenientes de retratos dos trabalhadores – adultos e crianças – que construíram Brasília. A série Imemorial, apoiada pelo Instituto Goethe de Brasília e pela Fundação Athos Bulcão, integrou a mostra coletiva Revendo Brasília e foi exibida na Galeria Athos Bulcão, Teatro Nacional, em Brasília, entre 1o e 25 de setembro de 1994. A mostra foi exibida entre outubro de 1994 e maio de 1995, em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre.
Nos espólios da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), órgão criado em 1956 pelo governo de Juscelino Kubitschek para gerenciar a construção da nova capital do Brasil, guardados em um armazém do Arquivo Público do Distrito, a artista deparou-se com mais de 15 mil arquivos relativos aos empregados da companhia acompanhados de imagens:
[...] eram todos retratos 3x4. Na época, obviamente, eram todos retratos preto e branco, mas colorizados de alguma forma pela ação do tempo, e dos grampos, de grampeador, que oxidaram sobre a imagem. Eles todos pertenciam as fichas de identificação da Novacap, que era a construtora do governo, que é o único arquivo que ainda permanece hoje no Arquivo Público do Distrito Federal, em Brasília. (Rosângela Rennó, 2018).
Para montar sua série, Rosângela Rennó confrontou-se com um desafio:
O difícil foi obter esses retratos, porque a maioria das fichas funcionais não contém retrato. Então essa foi a composição, encontrar fichas, encontrar funcionários comprovadamente mortos e, ainda por cima, encontrar fichas de funcionários, operários, mortos, que continham fotografias 3x4. (Rosângela Rennó, 2018).
A instalação Imemorial organiza-se em duas dimensões. Na vertical, dez retratos em cor, em que a tangibilidade da imagem se expressa pela exacerbação da passagem do tempo – marcas de ferrugem, esmaecimento, rasuras etc. Nessa série, o tratamento dado é explicado pela artista: “Na parede eu tenho os dez retratos em cor, bem escuros, um processamento colorido convencional, mas escurecido, pois eu pedi para fazer a cópia mais densa mesmo” (Rosângela Rennó, 2018). Na horizontal, encontram-se montados em bandejas 40 retratos:
As bandejas que estão no chão contêm os retratos dos operários mortos, e eles foram executados na verdade com película gráfica, uma das marcas era Kodalite, película de fazer fotolito. E elas eram pintadas por trás, na verdade eram uma espécie de recriação do ferrótipo, um ferrótipo falso, onde eu tenho imagens prata e preto, não são imagens que têm branco. É o filme gráfico que dá o contraste entre o preto e a prata. (Rosângela Rennó, 2018).
Os dois processos, embora bem distintos, investem no reconhecimento da potência da ação do tempo sobre a imagem: o primeiro ao tornar evidentes as marcas da sua passagem, e o segundo investindo no uso anacrônico de processos fotográficos já obsoletos, como o ferrótipo (4), uma clara alusão ao retrato oitocentista. A própria artista reconhece que o uso de película gráfica atualmente seria impossível, o que já indica uma segunda obsolescência na vida das imagens:
Esse processo das fotos que estão no chão nas bandejas, que são os 40 retratos em película gráfica, esse é um processo que não existe mais, acho que é um material que não é possível mais se encontrar, pelo menos no Brasil, não, e nem sei se na Europa também eu conseguiria um lugar que tivesse disponível película gráfica. Podemos até nos informar a esse respeito. (Rosângela Rennó, 2018).
Observa-se, pela ação artística, que os documentos encontrados são testemunhos tanto da exploração dos trabalhadores e trabalhadoras no projeto de um país moderno quanto da prática fotográfica como experiência histórica. As marcas de ferrugem nos retratos que acompanhavam as fichas de identificação indicam que eles foram presos ao papel por um grampeador; em 40 fichas se identifica que o trabalhador foi “dispensado por motivo de morte”; marcas tangíveis de gestos que se inscrevem na fotografia garantem a sua sobrevida. Esses gestos ecoam no partido que Rosângela Rennó toma na montagem de Imemorial, ao narrar histórias que contam o massacre nas barracas da obra de dezenas de trabalhadores e trabalhadoras, inclusive menores, que morreram no processo de construção de Brasília e foram enterrados nas suas fundações.
Ao refletir sobre Imemorial, o historiador da arte Charles Merewether aponta para os trabalhos de memória que perpassam os investimentos plásticos da artista:
A exemplo do aviso de Walter Benjamin de que nem os mortos estão a salvo quando somente os vitoriosos contam a história, o trabalho de Rennó engaja a luta sobre a propriedade da memória. A experiência de ver é, por si própria, sujeita à força do esquecimento, e a tarefa de ler rastros é equivalente a apaziguar-se com o passado. Rastros de identidade foram capturados no momento anterior ao desaparecimento dessas pessoas, o reconhecimento da diferença extraída das sombras de uma história suprimida. A instalação representa um gesto redentor, a ressurreição dos corpos caídos, daqueles que se sacrificaram na construção do futuro. (Merewether, 2006, p. 160-162, tradução livre).
Outras reflexões elaboradas em torno da instalação Imemorial reforçam um conjunto significativo de questões. Entre elas, se destacam as tensões identitárias provenientes do meio e formato fotográficos na construção de uma memória nacional (Barberena, 2009), as narrativas visuais e mnemônicas que se inscrevem na estratégia de operar a história como alegoria (Gondim, 2011), a estreita relação entre memória e amnésia social inscrita na forma como os trabalhadores e trabalhadoras foram esquecidos pela narrativa oficial (Camargo, 2016), a montagem da instalação, que, ao reconhecer a tridimensionalidade do espaço expositivo pela distribuição horizontal e vertical das fotografias, leva o visitante a, ao mover-se por entre as imagens, realizar um trabalho de memória na identificação dos rostos e suas histórias (D’Aprile, 2018), ou, ainda, o reencantamento das imagens fotográficas ao transformar, pela ação artística, o usual em excepcional:
By defamiliarizing familiar photographs, Rennó creates informative change, bringing the viewer’s awareness back to the image. Rennó does not simply add more information to the world. Interfering in the endless accumulation of images, she converts discarded information into communication. (Pagotto, 2011, p. 19).
Embora reconhecendo a centralidade do tema da memória e do investimento da artista em provocar o estranhamento em face da produção exponencial de fotografias na contemporaneidade, trata-se sobretudo de observar que, ao serem retirados do contexto em que foram achados, os retratos assumem a função pública de testemunhos. É por esse caminho que quero tratar a atitude historiadora de Rosângela Rennó. Aqui cabe um breve esclarecimento sobre a história nos mundos da arte.
Do ponto de vista de uma história sobretudo pública, nos mundos da arte se gestariam formas de imaginar o passado que, recriado por meio da intervenção artística, passaria a existir como um passado possível de ter existido. As narrativas históricas públicas produzidas por artistas não competem com as explicações historiográficas, por tratar-se de uma outra história que, em grande medida, nos convoca a tomá-las como um sintoma, um gesto, uma atitude diante do tempo.
Apoiada nessa dinâmica, desenvolvi a ideia de que em diferentes instâncias da vida social é possível assumir-se uma atitude historiadora. Em que consiste tal atitude? Em indagar o passado como uma das dimensões do terreno poroso do presente onde residem as tradições, os comportamentos residuais, mas de onde, quando problematizado, emerge um conhecimento crítico que nos impele para a ação (Williams, 1979). Nessa atitude reconhece-se aquilo que Benjamin (1985, p. 7-29) identifica nas teses de história como o relâmpago – o que ilumina. Anacronicamente o passado torna-se um objeto presente quando enfrentamos a percepção de que a matéria pretérita pode ser continuamente apropriada como matéria de imaginação. Assim, ao se assumir uma atitude historiadora, nos lançamos para o tempo passado e, com “olhos de madeira” (Ginzburg, 2001), reconhecemos nele as possibilidades de futuro, num movimento de distanciamento e aproximação.
Com base nesse movimento pendular, nos colocamos como público que observa retratos expostos na instalação Imemorial, em que, por meio da ação artística de mise-en-abîme, o documento como evidência de uma experiência passada é colocado em evidência nos mundos da arte, num movimento que lhe subtrai o caráter de prova ao potencializar seu aspecto de testemunho: o que eu vejo me olha. A aporia do documento que não prova, mas testemunha, indica algumas possibilidades epistemológicas para a história oral.
Portanto, trata-se de tomar o trabalho de Rennó como uma plataforma para se observar os desafios que se colocam ao lidar com o testemunho e a evidência em um registro historiográfico em que se considere a dimensão intersubjetiva dos sujeitos envolvidos na prática historiadora. Muito mais do que tomar as imagens como testemunhos, interessa compreender o que está em jogo na tensão entre imagem-documento e imagem-monumento (Mauad; Lopes, 2012) e pode iluminar os usos públicos do passado.
Fontes de memória e noção de testemunho
Em outra oportunidade, refleti sobre o potencial historiográfico e epistemológico das fontes orais e visuais para a produção de uma história da memória (Mauad, 2013). Tratava-se, naquele momento, de compreender como convergíamos narrativas orais e fotografias no tratamento da memória social como objeto de estudo das ciências humanas, sobretudo da história oral e da antropologia. Do ponto de vista metodológico, buscava-se reconhecer os usos e funções da fotografia na pesquisa, tanto como forma de produzir evidências quanto de identificar narrativas sugeridas pelas fotografias em situação de entrevista (Guran, 2000), ou ainda de produzir fotografias em conjunto com a mobilização de comunidades de sentido em torno de um projeto de história oral (Modell; Brodsky, 1998; Rouverol; Chatterley, 2000; Rogovin; Frisch, 1993). Do ponto de vista epistemológico, reconhecia-se no objeto do conhecimento a potência de sujeito da sua própria história, operando-se com as noções de compartilhamento da autoridade do conhecimento produzido com base nos trabalhos de memória (Frisch, 1990, 2016).
A noção de fonte de memória revelou potencial teórico e metodológico suficiente para se estudar como e por que as sociedades produzem recursos para lembrar e também para esquecer (Connerton, 1989; 2009). Entretanto, os estudos sobre o testemunho que antecederam a emergência da problemática da memória no campo das ciências humanas já apontavam para a noção de testemunho como dado central da observação histórica (Bloch, 2002).
No clássico Apologia da história, o historiador francês Marc Bloch dedicou um capítulo para a discussão sobre a natureza do testemunho na história. O ponto de partida de sua reflexão é o de que não há o que diferenciar entre o historiador do presente e o de um passado remoto no que diz respeito à intermediação entre o que eu vejo – testemunho direto – e aquilo que se apresenta a mim por meio de algum vestígio do passado – testemunho indireto. Assim é porque o que de fato caracteriza o conhecimento histórico tout court é o seu aspecto indicial:
Como primeira característica, o conhecimento de todos os fatos humanos no passado, da maior parte deles no presente, deve ser, [segundo a feliz expressão de François Simiand,] um conhecimento através de vestígios. Quer se trate das ossadas emparedadas nas muralhas da Síria, de uma palavra cuja forma ou emprego revele um costume, de um relato escrito pela testemunha de uma cena antiga [ou recente], o que entendemos efetiva- mente por documentos senão um ‘vestígio’, quer dizer, a marca, perceptível aos sentidos, deixada por um fenômeno em si mesmo impossível de captar? (Bloch, 2002, p. 73).
Entretanto, o vestígio, longe de ser algo auto evidente, deve se tornar uma evidência por meio da observação histórica:
Em nossa inevitável subordinação em relação ao passado, ficamos [por- tanto] pelo menos livres no sentido de que, condenados sempre a conhecê-lo exclusivamente por meio de [seus] vestígios, conseguimos, todavia, saber sobre ele muito mais do que ele julgara sensato nos dar a conhecer. [É, pen- sando bem, uma grande revanche da inteligência sobre o dado.] [...] Pois os textos ou documentos arqueológicos, mesmo os aparentemente mais claros e mais complacentes, não falam senão quando sabemos interrogá-los. (Bloch, 2002, p. 78-79).
Observa-se, na reflexão de Bloch, o gradual deslocamento entre o desprestígio ao trabalho preguiçoso com as “sources narratives” (Bloch, 2002, p. 77), em direção a sua reconsideração, ao ir além de sua superfície aparente, confrontando-as com o olhar do presente. Tal procedimento implica dar vida às pistas ou transformá-las em testemunhas, movimento que nos remete à referência de Didi-Huberman que abre este artigo: o confronto entre o que eu vejo e o que me olha.
Num sentido comum a Bloch, Didi-Huberman nos convoca a dar vida ao objeto artístico e tomá-lo como testemunha de uma história que só se realiza em um “entre-lugares” – a trama espaço-temporal que define a distância entre o que eu vejo e o que me olha. A delimitação da noção de distância implica o reconhecimento de que esta incorpora o seu inverso, a proximidade:
La distancia constituye desde luego el elemento esencial de la visión en general, pero la tactilidad misma no puede pensarse como una experiencia dialéctica de la distancia y la proximidad – en cada impresión táctil, lo otro, es decir la distancia como vacío, se da juntamente con el objeto que se aparta de éste. (Didi-Huberman, 2010, p. 104-105).
Nos “entre-lugares” se aninham imagens dialéticas, legado de Walter Benjamin, que se tornam uma espécie de bem comum do artista e do historiador:
La marca histórica de las imágenes no indica solamente que pertenecen a una época determinada; indica sobre todo que sólo llegan a la legibilidad en una época determinada. Y el hecho de llegar ‘a la legibilidad’ representa ciertamente un punto crítico determinado en el movimiento que las anima. Cada presente es determinado por las imágenes que son sincrónicas con el; cada Ahora es el ahora de una cognoscibilidad determinada. Con el la verdad se carga de tiempo hasta explotar. [...] No hay que decir que el pasado aclara el presente o el presente aclara el pasado. Una imagen, al contrario, es aquello en que el Antaño se encuentra con el ahora en un relámpago para formar una constelación. En otras palabras: la imagen es la dialéctica detenida. Puesto que, mientras la relación del presente con el pasado es puramente temporal, la del Antaño con el Ahora es dialéctica: no es de naturaleza temporal, sino figurativa. Sólo las imágenes dialécticas son auténticamente históricas, es decir no arcaicas. La imagen que se lee – me refiero a la imagen en el Ahora de la cognoscibilidad – lleva en el más alto grado la marca del momento crítico, peligroso que está en el fondo de toda lectura. (Didi-Huberman, 2010, p. 121-122).
Testemunhos como imagens dialéticas implicam considerar um momento de suspensão em que se estende uma ponte sobre a dupla distância dos sentidos – tanto sensorial (óptico e tátil) quanto semiótico (representação) –, para deixar-se afetar pelo confronto entre um ontem e um agora. As implicações dessa perspectiva para a história oral são significativas, sobre- tudo, porque ela resulta na atitude de não somente indagar o entrevistado, a testemunha, mas também de se tornar testemunha de sua aparição. No entanto, não se trata de trocar de lugar ou de assumir uma posição passiva em relação ao processo de produzir o testemunho. Trata-se, sobretudo, de estabelecer condições para que esse “entre-lugar” se torne o espaço intersubjetivo em que experiências vivenciais diversas se orientem para a produção de um conhecimento sensível às tensões entre passado e presente.
Limitada aos seus usos heurísticos, a fotografia presta poucos serviços à renovação histórica; somente quando operada como parte de uma história das imagens assume seu potencial epistemológico com mais vigor. Nesse sentido, a presença da fotografia nos mundos da arte e a dimensão pública que assume em relação direta aos públicos que se apresentam colocam desafios à prática historiadora. No trabalho Imemorial, o exercício da artista em convocar imagens que, originariamente, pertenceriam a documentos de identificação para narrar uma outra história, monumentalizando o passado dos que estavam esquecidos nos arquivos descartados, nos confronta com a necessidade de enfrentar a materialidade da fotografia, sua biografia social, seus deslocamentos nos espaço-tempo de uma trajetória que a retira do arquivo e a coloca nos espaços expositivos ou nos fotolivros em que a história se torna pública.
Esse movimento de colocar a “evidência em evidência” nos mundos da arte assume a centralidade do enigma que a memória deixa de herança para a história. Em Ricoeur, esse enigma reúne três traços paradoxais – a presença, a ausência e a anterioridade:
O passado está, por assim dizer, presente na imagem como signo da sua ausência, mas trata-se de uma ausência que, não estando mais lá, é tida como estado. Esse ‘tendo estado’ é o que a memória se esforça por reencontrar. Ela reivindica esse ‘tendo estado’. (Ricoeur, 2003, p. 2).
Embora não se utilize da fotografia como metáfora de referência, todos os três traços paradoxais do enigma encontram-se presentes na experiência fotográfica tal como operada pelo projeto Imemorial, de Rosângela Rennó. Por meio dele, a artista potencializa a dimensão de reconhecimento da experiência fotográfica como “a certeza da ausência real do passado. Ainda que não estando mais lá, o passado é reconhecido como tendo estado” (Ricoeur, 2003, p. 3).
Conclusões provisórias
Os retratos expostos na série Imemorial são testemunhos, como imagens dialéticas suspendem a distância entre o ontem e o agora e nos afetam com seus olhares diretos e pelos detalhes do modo que alguém se deixou retratar – uma gola da blusa e um brinco –, ou por, simplesmente, estarem ali em exibição pela ação artística nos provocando. São superfícies trabalhadas pela artista, para refletirem aquilo que eu vejo: os meus olhos de testemunha que reconhecem um testemunho incontornável sobre um crime que surge no espaço expositivo, completamente documentado. Retratos que configuram uma imagem crítica que me obriga a refazer o caminho que me distanciou dela, um caminho que me leva à construção de Brasília e às narrativas de um Brasil moderno, e outro, à própria história do meio fotográfico e à construção da noção de imagem realista em que se reforçam os valores de objetividade e veracidade da representação visual.
Em um dos primeiros projetos de história oral de que participei, no Labhoi da UFF, sobre o incêndio do Gran Circus Norte-Americano, fiquei encarregada de entrevistar uma das sobreviventes da tragédia que se abateu sobre a cidade de Niterói em dezembro de 1961. A entrevistada havia perdido toda a família, marido e dois filhos, e ainda sofreu queimaduras significativas que provocaram sequelas. No entanto, era uma pessoa que se apresentava diante de nós para a entrevista disposta a encarar o passado como matéria-prima para o seu cotidiano. Em nossos encontros, ela estava sempre bem-arrumada e disposta a contar o que viveu e como sobreviveu. Em uma ocasião, fora da sessão de entrevista, comentamos sobre as reportagens e foto- grafias que havíamos pesquisado, e prontamente ela nos pediu cópias desse material. Durante nove meses, ela havia ficado em coma, e esse período era um vazio, uma distância não preenchida que a pesquisa histórica pôde suprir. Como reconheceu Bloch (2002), nem a testemunha mais direta de um acontecimento prescinde de outros materiais para reconstruir a história.
Da mesma forma que os trabalhadores e trabalhadoras da construção de Brasília puderam contar com a atitude historiadora de Rosângela Rennó para lhes garantir a condição de testemunhas, nossa entrevistada pôde contar com a prática historiadora para suprir seu testemunho com textos e fotografias. A artista e a historiadora se encontram no trabalho de superar a dupla distância que separa o ontem e o agora.
1. Refiro-me ao projeto Fotografia pública: usos, funções e circuitos sociais no Brasil dos séculos XIX e XX, PQ CNPq 2015-2019, complementado por Fotografia e seus públicos no Brasil dos séculos XIX e XX, CNE-Faperj, 2016-2019.
2. Disponível em:
3. Uma nota de cuidado: a noção de passados possíveis aqui mencionada não implica a aceitação de um niilismo relativista nem de um revisionismo simplista; refere-se às camadas de sentido que se escavam dos tempos passados e que superam a linearidade cronológica como única dimensão atribuída ao tempo histórico.
4. “Imagem produzida pelo processo de colódio úmido sobre uma fina plaqueta de ferro esmaltada com laca preta ou marrom. Inventado pelo norte-americano Hamilton Smith, como uma derivação do processo de colódio úmido, em 1856. Smith baseou-se nas pesquisas do francês Adolphe Alexandre Martin (1824-1896), que desde 1852 já desenvolvera um sistema de produção de cópias amphipositives, termo que foi anglicisado por Talbot para amphitypes, razão pela qual, no início, o ferrótipo também era conhecido por essa denominação na Europa. O ferrótipo tornou-se muito popular entre os fotógrafos ambulantes até fins do século dezenove – sobretudo nos Estados Unidos – em virtude da rapidez de sua produção, de seu baixo custo e pelo fato de não se quebrar como ocorria com as chapas de vidro dos ambrótipos. Sendo que neste país este processo era indistintamente denominado de ferrotype ou de tintype” (Ferrótipo, 2018).
Mauad, A. M. Entre tempos e olhares: sobre a noção de testemunho na prática artística de Rosângela Rennó. História Oral, 21(2), 2019, pp. 7–30.
Recuperado de https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/828