Entre tempos e olhares:
sobre a noção de testemunho na prática artística de Rosângela Rennó 

Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work immemorial


    [...] 

    Testemunhos imemoriais

    Uma das empreitadas arqueológicas de Rosângela Rennó pelos arquivos resultou na série Imemorial (1994), uma instalação de 50 fotografias provenientes de retratos dos trabalhadores – adultos e crianças – que construíram Brasília. A série Imemorial, apoiada pelo Instituto Goethe de Brasília e pela Fundação Athos Bulcão, integrou a mostra coletiva Revendo Brasília e foi exibida na Galeria Athos Bulcão, Teatro Nacional, em Brasília, entre 1o e 25 de setembro de 1994. A mostra foi exibida entre outubro de 1994 e maio de 1995, em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre. 

    Nos espólios da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), órgão criado em 1956 pelo governo de Juscelino Kubitschek para gerenciar a construção da nova capital do Brasil, guardados em um armazém do Arquivo Público do Distrito, a artista deparou-se com mais de 15 mil arquivos relativos aos empregados da companhia acompanhados de imagens:

    [...] eram todos retratos 3x4. Na época, obviamente, eram todos retratos preto e branco, mas colorizados de alguma forma pela ação do tempo, e dos grampos, de grampeador, que oxidaram sobre a imagem. Eles todos pertenciam as fichas de identificação da Novacap, que era a construtora do governo, que é o único arquivo que ainda permanece hoje no Arquivo Público do Distrito Federal, em Brasília. (Rosângela Rennó, 2018).

    Para montar sua série, Rosângela Rennó confrontou-se com um desafio:

    O difícil foi obter esses retratos, porque a maioria das fichas funcionais não contém retrato. Então essa foi a composição, encontrar fichas, encontrar funcionários comprovadamente mortos e, ainda por cima, encontrar fichas de funcionários, operários, mortos, que continham fotografias 3x4. (Rosângela Rennó, 2018).


    A instalação Imemorial organiza-se em duas dimensões. Na vertical, dez retratos em cor, em que a tangibilidade da imagem se expressa pela exacerbação da passagem do tempo – marcas de ferrugem, esmaecimento, rasuras etc. Nessa série, o tratamento dado é explicado pela artista: “Na parede eu tenho os dez retratos em cor, bem escuros, um processamento colorido convencional, mas escurecido, pois eu pedi para fazer a cópia mais densa mesmo” (Rosângela Rennó, 2018). Na horizontal, encontram-se montados em bandejas 40 retratos:

    As bandejas que estão no chão contêm os retratos dos operários mortos, e eles foram executados na verdade com película gráfica, uma das marcas era Kodalite, película de fazer fotolito. E elas eram pintadas por trás, na verdade eram uma espécie de recriação do ferrótipo, um ferrótipo falso, onde eu tenho imagens prata e preto, não são imagens que têm branco. É o filme gráfico que dá o contraste entre o preto e a prata. (Rosângela Rennó, 2018).


    Os dois processos, embora bem distintos, investem no reconhecimento da potência da ação do tempo sobre a imagem: o primeiro ao tornar evidentes as marcas da sua passagem, e o segundo investindo no uso anacrônico de processos fotográficos já obsoletos, como o ferrótipo (4), uma clara alusão ao retrato oitocentista. A própria artista reconhece que o uso de película gráfica atualmente seria impossível, o que já indica uma segunda obsolescência na vida das imagens:

    Esse processo das fotos que estão no chão nas bandejas, que são os 40 retratos em película gráfica, esse é um processo que não existe mais, acho que é um material que não é possível mais se encontrar, pelo menos no Brasil, não, e nem sei se na Europa também eu conseguiria um lugar que tivesse disponível película gráfica. Podemos até nos informar a esse respeito. (Rosângela Rennó, 2018).


    Observa-se, pela ação artística, que os documentos encontrados são testemunhos tanto da exploração dos trabalhadores e trabalhadoras no projeto de um país moderno quanto da prática fotográfica como experiência histórica. As marcas de ferrugem nos retratos que acompanhavam as fichas de identificação indicam que eles foram presos ao papel por um grampeador; em 40 fichas se identifica que o trabalhador foi “dispensado por motivo de morte”; marcas tangíveis de gestos que se inscrevem na fotografia garantem a sua sobrevida. Esses gestos ecoam no partido que Rosângela Rennó toma na montagem de Imemorial, ao narrar histórias que contam o massacre nas barracas da obra de dezenas de trabalhadores e trabalhadoras, inclusive menores, que morreram no processo de construção de Brasília e foram enterrados nas suas fundações.

    Ao refletir sobre Imemorial, o historiador da arte Charles Merewether aponta para os trabalhos de memória que perpassam os investimentos plásticos da artista:

    A exemplo do aviso de Walter Benjamin de que nem os mortos estão a salvo quando somente os vitoriosos contam a história, o trabalho de Rennó engaja a luta sobre a propriedade da memória. A experiência de ver é, por si própria, sujeita à força do esquecimento, e a tarefa de ler rastros é equivalente a apaziguar-se com o passado. Rastros de identidade foram capturados no momento anterior ao desaparecimento dessas pessoas, o reconhecimento da diferença extraída das sombras de uma história suprimida. A instalação representa um gesto redentor, a ressurreição dos corpos caídos, daqueles que se sacrificaram na construção do futuro. (Merewether, 2006, p. 160-162, tradução livre).

    Outras reflexões elaboradas em torno da instalação Imemorial reforçam um conjunto significativo de questões. Entre elas, se destacam as tensões identitárias provenientes do meio e formato fotográficos na construção de uma memória nacional (Barberena, 2009), as narrativas visuais e mnemônicas que se inscrevem na estratégia de operar a história como alegoria (Gondim, 2011), a estreita relação entre memória e amnésia social inscrita na forma como os trabalhadores e trabalhadoras foram esquecidos pela narrativa oficial (Camargo, 2016), a montagem da instalação, que, ao reconhecer a tridimensionalidade do espaço expositivo pela distribuição horizontal e vertical das fotografias, leva o visitante a, ao mover-se por entre as imagens, realizar um trabalho de memória na identificação dos rostos e suas histórias (D’Aprile, 2018), ou, ainda, o reencantamento das imagens fotográficas ao transformar, pela ação artística, o usual em excepcional:

    By defamiliarizing familiar photographs, Rennó creates informative change, bringing the viewer’s awareness back to the image. Rennó does not simply add more information to the world. Interfering in the endless accumulation of images, she converts discarded information into communication. (Pagotto, 2011, p. 19).


    Embora reconhecendo a centralidade do tema da memória e do investimento da artista em provocar o estranhamento em face da produção exponencial de fotografias na contemporaneidade, trata-se sobretudo de observar que, ao serem retirados do contexto em que foram achados, os retratos assumem a função pública de testemunhos. É por esse caminho que quero tratar a atitude historiadora de Rosângela Rennó. Aqui cabe um breve esclarecimento sobre a história nos mundos da arte.

    Do ponto de vista de uma história sobretudo pública, nos mundos da arte se gestariam formas de imaginar o passado que, recriado por meio da intervenção artística, passaria a existir como um passado possível de ter existido. As narrativas históricas públicas produzidas por artistas não competem com as explicações historiográficas, por tratar-se de uma outra história que, em grande medida, nos convoca a tomá-las como um sintoma, um gesto, uma atitude diante do tempo.

    Apoiada nessa dinâmica, desenvolvi a ideia de que em diferentes instâncias da vida social é possível assumir-se uma atitude historiadora. Em que consiste tal atitude? Em indagar o passado como uma das dimensões do terreno poroso do presente onde residem as tradições, os comportamentos residuais, mas de onde, quando problematizado, emerge um conhecimento crítico que nos impele para a ação (Williams, 1979). Nessa atitude reconhece-se aquilo que Benjamin (1985, p. 7-29) identifica nas teses de história como o relâmpago – o que ilumina. Anacronicamente o passado torna-se um objeto presente quando enfrentamos a percepção de que a matéria pretérita pode ser continuamente apropriada como matéria de imaginação. Assim, ao se assumir uma atitude historiadora, nos lançamos para o tempo passado e, com “olhos de madeira” (Ginzburg, 2001), reconhecemos nele as possibilidades de futuro, num movimento de distanciamento e aproximação.

    Com base nesse movimento pendular, nos colocamos como público que observa retratos expostos na instalação Imemorial, em que, por meio da ação artística de mise-en-abîme, o documento como evidência de uma experiência passada é colocado em evidência nos mundos da arte, num movimento que lhe subtrai o caráter de prova ao potencializar seu aspecto de testemunho: o que eu vejo me olha. A aporia do documento que não prova, mas testemunha, indica algumas possibilidades epistemológicas para a história oral.

    Portanto, trata-se de tomar o trabalho de Rennó como uma plataforma para se observar os desafios que se colocam ao lidar com o testemunho e a evidência em um registro historiográfico em que se considere a dimensão intersubjetiva dos sujeitos envolvidos na prática historiadora. Muito mais do que tomar as imagens como testemunhos, interessa compreender o que está em jogo na tensão entre imagem-documento e imagem-monumento (Mauad; Lopes, 2012) e pode iluminar os usos públicos do passado.

    […] 
     

    Mauad, A. M. Entre tempos e olhares: sobre a noção de testemunho na prática artística de Rosângela Rennó. História Oral, 21(2), 2019, pp. 7–30.
    Recuperado de https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/828


    Texto completo

    Full text