Três esquivas rumo ao arquivo de Rosângela Rennó


Three Sidesteps to Rosângela Rennó's Archive

Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Eaux des Colonies Project

    [...] Antes do lockdown imposto pela COVID-19, Rosângela Rennó havia sido convidada para participar do “Artist Meets Archive”, um programade residência artística localizado em Colônia, Alemanha, como parte da Internationale Photoszene Köln. Estava programado para 2020, quando ela pesquisaria no Stiftung Rheinisch- -Westfälisches Wirtschaftsarchiv zu Köln, o Arquivo da Fundação Econômica do Reno-Vestefália, em Colônia (RWWA). Embora seus planos originais tenham mudado radicalmente em razão da pandemia, ela expôs um projeto par- cialmente baseado nos arquivos da RWWA no Museum für Angewandte Kunst (MAKK), o Museu de Artes Aplicadas, entre 21 de maio e 5 de julho de 2021. Confinada em casa no Brasil, Rennó pesquisou remotamente para retraçar as origens e histórias da água de Colônia, “inventada” na cidade alemã de mesmo nome. A artista montou Eaux des Colonies [Águas das colônias] (2020-2021), uma extensa linha do tempo, sem final definido, alocada em uma longa parede da galeria, expondo como a invenção do perfume foi contestada, apropriada e se tornou motivo tanto de guerras comerciais como de antagonismos nacionalistas ou regionais. A linha do tempo foi acompanhada por uma instalação feita de de jarros e garrafas de vidro parcialmente preenchidos com álcool, representando todos os países que foram colonizados em algum momento de suas histórias. Rennó declarou: Quando os documentos se tornam imagens e são acessíveis por meio da internet, experimentamos uma espécie de efeito de equalização da informação. Para o bem ou para o mal. Arquivos históricos, blogs de história, as histórias de perfumes em sites de vendas, tudo junto... parece uma atualização do conceito do “museu imaginário”, criado por André Malraux. Esse efeito é perverso e parece ter se consolidado de uma vez por todas.

    O que a artista identifica como a “equalização dos efeitos da informação” é, na verdade, um paradoxo definidor geralmente aplicado à fotografia. Nesse sentido, a observação de Thierry de Duve sobre o contexto sempre arbitrário da imagem pode ser útil para provar que o topos do arquivo não é o da web (embora opere dentro de seus limites):

    A fotografia costuma ser vista de duas maneiras: como um evento, mas nesse caso um evento estranho, uma gestalt congelada que comunica muito pouco, ou quase nada, a fluidez das coisas que ocorrem na vida real; ou é tida como imagem, como uma representação autônoma que pode, com efeito, ser emoldurada e pendurada na parede, mas que depois curiosamente deixa de se referir ao evento particular do qual foi retirada.

    Além da descontextualização das imagens em relação aos eventos a que se referem, a divulgação e circulação da imagem de um documento particular na web deixa de residir em um lugar determinado ou a ele pertencer. Seu conteúdo também se separa de seu significado.

    Como Rennó acertadamente observou, a falta de um local de armazenamento condena o documento à desintegração e ao esquecimento virtual. Jacques Derrida, que escreveu sobre o tema quando do surgimento da internet, afirmou que os arquivos só existem quando domiciliados, pois isso marca a passagem do privado para o público. Um corpo de conhecimentos fragmentados em imagens e discursos requer a estabilidade hermenêutica de um lugar onde possa ser abrigado e escondido sob uma autoridade que forneça uma identidade, uma unidade e, em última instância, uma classifica- ção aos documentos, para eventualmente transformá-los em arquivo.

    Apesar das dificuldades devidas às restrições de viagens e pesquisa impostas pela pandemia, a autor- refencialidade do projeto Eaux des colonies, bem como suas fronteiras que se estendem para além de uma genealogia, compromete-se a proporcionar algum fundamento à questão do arquivo em tempos de peste, quando o corpo e seus sentidos são atacados pela COVID-19.


    RANGEL, Gabriela. Três esquivas rumo ao arquivo de Rosângela Rennó (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 117-127.
    [...] Before the COVID-19 lockdown, Rosângela Rennó was invited to participate in “Artist meets Archive,” an art residency program located in Cologne, Germany, as part of the Internationale Photoszene Köln.
    It was scheduled to take place in 2020, when she would research in the Stiftung Rheinisch-Westfälisches Wirtschaftsarchiv zu Köln, the Rhenish- Westphalian Economic Archive Foundation in Cologne (RWWA). Although her original plans changed radically due to the pandemic, she exposed a project partially based
    on the RWWA files at the MAKK, the Museum for Applied Arts, between May 21 and July 5, 2021. Confined in Brazil, Rennó dug remotely to tracethe origins and histories of the Eau de Cologne, which was “invented” in the city of Cologne. The artist assembled Eaux des colonies [Waters from Colonies] (2020-2021), an extensive open-ended timeline, which has been displayed on a long wall at a gallery space, exposing how the invention of the perfume was disputed, appropriated, and became a token for both commercial wars and nationalist or regional antagonisms. The timeline was accompanied by an installation of glass jars and bottles partially full of alcohol, representing all the countries that were colonized at some point in their respective histories. Rennó stated: When documents become images and are accessible through the Internet, we experience a kind
    of equalization effect of the information. For better or for worse. Historical archives, history blogs, perfume history within sales sites, all together... it all seems like an updating of the concept of the “imaginary museum,” created by André Malraux. This effect is perverse and seems to have been consolidated forever.

    What the artist identified as “the equalization effect of information” is, in fact, a defining paradox that is generally applied to photography. In this sense, Thierry de Duve’s observation about the always arbitrary context of an image may be useful to prove that the archival topos is dislocated from the web (although operates within its confines): 

    Photography is generally taken in either of two ways: as an event, but then as an odd looking one, a frozen gestalt that conveys very little, if anything at all, of the fluency of things happening in real life; or it is taken as a picture, as an autonomous representation that can indeed be framed and hung, but which then curiously ceases to refer to the particular event from which it was drawn. 

    In addition to the decontextualization of images from the event that they refer to, an image of a particular document released and circulated on the web ceases to dwell in or belong to any place. Its content is also separated from its meaning. 

    As Rennó aptly pointed out, lacking a guarded space condemns the document to a virtual disintegration and oblivion. Jacques Derrida, who wrote about the topic upon the arrival of the internet, asserted that archives only take place in their domiciliation, as that marks the transition from private to public. A body of knowledge fragmented in images and discourses requires the hermeneutic stability of a place to be sheltered and concealed under an authority who would provide an identity, a unity, and, ultimately, a classification to the documents to transform them eventually into an archive.

    Despite the difficulties due to the pandemic’s travel and research restrictions, the Eaux des colonies project’s self-referentiality, as well as its over-extended boundaries beyond a genealogy, pledges to bring some grounding to the question of the archive in times of the plague, when the body and its senses are attacked by the COVID-19. 


    RANGEL, Gabriela. Three Sidesteps to Rosângela Rennó's Archive (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 117-127.


    Texto completo

    Full text