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Para reler o vermelho e o negro

Rereading the  red and the black

Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Red Series (Military men)

    A palavra e a imagem; melhor: a imagem e a palavra. Afinal, foi assim que as coisas aconteceram. Primeiro, olhar; depois, falar. Fixaram as imagens – Altamira, Lascaux. Dezenas de milhares de anos depois capturaram as palavras, na escrita, provavelmente com imagens – hieróglifos, ideogramas. Hoje, toda essa distância desapareceu. Apagou-se a história. E é nessa penumbra, quase escuridão, de um tempo que não mais se pensa, que não mais se sente, um tempo sem antes, nem depois, onde “tudo é ao mesmo tempo agora”, que surgem as palavras e as imagens de Rosângela Rennó. 

    Todo crepúsculo que se preza, aquele que anuncia o dia, ou a noite, tem vermelho. É o crepúsculo da imagem e a noite da palavra que Rosângela nos entrega. Ela quer um olho pele, tátil, capaz de tocar as palavras e as imagens. São palavras cegas e imagens em surdina que ela nos oferece. Palavras não precisam ser vistas; precisam ser lidas, e isto Rosângela quer. E para isso estão submetidas são submetidas à inversão: estão suntuosas, negras, ocultas, sobre as almofadas de veludo preto. Textos como pequenas jóias. Adornos do sentido que se escondem na escuridão em relevo e despertam nossa curiosidade. / A imagem que ela diz guardar de seu algoz é a de um homem que confundia seus interlocutores quando assumia o comportamento frio, decidido e muito objetivo nos interrogatórios. Vinte anos depois, E.M., 41 anos, ex-militante do MR-8, ficou trêmula ao ver a fotografia recente do delegado D.P. e não teve dúvida em afirmar: “É ele mesmo! Essa fisionomia ficou muito forte para mim”. / O drama e a tragédia estão rebaixados e contidos. Existem simplesmente, são partes do mundo.Vê-se logo, são políticos. / Y., o homem misterioso favorito do país, só se deixa fotografar mascarado. Seus traços mais conhecidos são o nariz protuberante, os olhos brilhantes - que alguns repórteres dizem ser verdes e outros, castanhos claros -, e o seu talento para escrever. Até agora, foram frustradas todas as tentativas de detectar sua identidade. Na segunda-feira, quando se iniciaram as conversações de paz entre o governo e os guerrilheiros, Y. roubou o espetáculo. Usando seu eterno gorro de esquiador e cartucheiras a tiracolo, Y. pôs-se de pé, desfraldou uma bandeira do país e a manteve sobre a mesa, criando uma fascinante imagem de patriotismo para a guerrilha. / Palavras lidas não são palavras vistas. Nosso mundo, o mundo da publicidade, tudo rápido, veloz, misturou as coisas: nós, da escrita fonética, passamos a ver palavras, não mais lê-las. Poetas, concretistas, gostaram disso. Entretanto, palavras lidas não são palavras vistas. / A demissão do ministro que, há sete anos, acompanha o presidente em diversas funções públicas foi provocada por uma foto publicada no mês passado, na revista Notícia. Ex-membro da Suprema Corte, M., 49 anos, cabelos ralos e barba branca, estava quase irreconhecível: bem mais jovem, com o rosto liso, e o braço direito levantado, numa clara saudação ao ídolo de sua adolescência. Acusado de ter pertencido a organizações de extrema direita que, nos anos 60, cometeram mais de uma centena de ataques contra judeus e comunistas, M. não tentou negar. Apenas perguntou: – Quem não comete erros aos 14 anos de idade? / Palavras vistas erram sem alvo e, muito mais, espalham-se em estilhaços, são bombas primárias, perversas. A palavra lida é a flecha do arqueiro zen: é o alvo. Só tem partida e chegada, sem trajeto. Os mais afoitos diriam: certeza quântica. Gosto disso, das palavras de Rosângela que, mesmo escondidas na sombra, dormem acordadas, vigilantes, certas que são alvos. Essas palavras noturnas, escolhidas no fait divers, amanhecem nas imagens. 

    Depois da noite das palavras, nesse lusco-fusco banhado na cor sangue, vejo jovens estudantes militares posando. Ninguém esquece a disciplina da pose. Num átimo, somos todos militares. Uma suástica no braço e uniformes no estúdio doméstico do fotógrafo. Um senhor de fardão posa orgulhoso, mas sem exagero, como se seus bordados em ouro fossem pinturas sobre a pele de um autêntico guerreiro índio. O antropólogo moderno também sabe: depois das seduções das estruturas, não se transpõe o sentido, a história não se repete, o bordado nunca será a tatuagem. 

    Temos em negro, recortes de textos, notícias. Em sangue, poses, de homens vestidos. O vermelho e o negro, de novo. Essas roupas de cores – luto e sangue – com que Rosângela os vestiu, textos e imagens, os despiram. Com muito pudor, com o véu das cores, a artista nos entrega a nudez do texto e da imagem. Mas sempre haverá quem pense que se trata de gravura e de fotografia. Se for assim, então, para quê tanta poesia? Observo, há dez anos, por contatos esparsos, a experiência da artista e, por isso, penso que Rosângela nos oferece, agora que todas as barreiras entre os gêneros foram rompidas, o romance possível. Um pequeno grande romance de colagens de textos e imagens: a planície mágica que relê o vermelho e o negro. 


    DUARTE, Paulo Sergio. Para reler o vermelho e o negro. In Rosângela Rennó, folder de exposição. Rio de Janeiro: Laura Marsiaj Arte Contemporânea, 2001.
    The word and the image; or rather, the image and the word. After all, that was how things began. First, we looked and then we spoke. Images were fixed – Altamira, Lascaux. Tens of thousands of years later words were captured through writing, probably with images – hieroglyphics, ideograms. Today, all that distance has vanished. History has been erased. And it is in this shadow, in the near-darkness of a time in which we no longer think or feel, a time without a before or an after, one in which things happen all at once, that the words and images of Rosângela Rennó appear. 

    Whether it announces day or night, any twilight worth its salt contains red. Such are the twilight of the image and the night of the word that Rosângela delivers to us. Her eye is skin-like, tactile, able to touch words and images. She offers us blind words and muted images. Words need not be seen, they must be read, and this is what Rosângela wants. To such a purpose they are submitted to an inversion: embossed ornaments of meaning hiding in the dark to awaken our curiosity. / The image of her jailer she remembers is that of a man who confounded his interlocutors during interrogation with his cold, determined and highly objective behavior. Twenty years later, E. M., aged 41, a former militant of the MR-8, trembled when she saw e recent photograph of commissioner D. P. and did not hesitate to declare: “It’s him alright! I’ll never forget that face”. / Drama and tragedy are reduced and contained. They exist simply as parts of the world. One soon realizes that they are political. / Y., the country’s favorite mystery man, only allows himself to be photographed wearing a mask. His most well-known features are a prominent nose, shining eyes which some reporters describe as green and others as light-brown, and a talent of writing. To date, all attempts to uncover his identity have ended in frustration. On Monday, when peace talks between the government and the guerillas began, Y stole the show. Wearing his perennial ski mask, with his cartridge-belt slung over one shoulder, Y stopped up and unfurled a national flag upon the table, creating a fascinating image of patriotism for the guerilla. Words read are not words seen. Our world, the world of advertising, all speed and swiftness, has confused things; we who write phonetically have come to see words rather than read them. The concretist poets appreciate this. Still, words read are not words seen. / The dismissal of the minister who, for seven years, stood by the president at various public functions was triggered by a photograph published last month in News magazine. In it, the balding, white-bearded M., a 49-year-old former member of the Supreme Court, was nearly unrecognizable, his younger face clean-shaven, his right arm raised in clear salutation to his childhood idol. M. made no attempt to deny accusations that he had belonged to extreme right-wing organizations which, during the Sixties, committed over one hundred attacks jews and communists. He asks only: “Who does not make mistakes at fourteen?” / Seen words miss their target. Beyond that, they splinter – they are perverse, rudimentary bombs. A word read is the Zen archer’s arrow: it is the target. It has no trajectory, only departure and arrival. The more eager among us might say: a quantum certainty. I like Rosângela’s words, vigilant as they hide in shadow, awake in their sleep, sure of been targets. These nocturnal words, selected in the fait divers, awaken in the images. 

    After the night of words, I see young military students posing in a twilight bathed in the color of blood. No one forgets the discipline of posing. Before a camera, we are all military for an instant, a swastika on one arm, uniforms in the photographer’s home studio. A gentleman in uniform poses proudly yet without affectation, as though his gold braid were paintings on the skin of the authentic Indian warrior chief. The modern anthropologist knows, too: after the seduction of structures, meaning is not transposed, history does not repeat itself, embroidery will never become tattoo. 

    In black, we have clippings of texts, news. In blood, poses of clothed men. The red and the black again. The colored clothing - mourning and blood – in which Rosângela has dressed them, texts and images, has undressed them. With great modesty, behind the veil of colors, the artist delivers to us the nakedness of text and image. Yet there will always be someone who believes it is merely a matter of engraving of photography. If that were so, what could be the reason for such poetry? For ten years, intermittently, I have observed the artist’s experiment and this is why I think that Rosângela offers us (now that all the barriers betting genres have been broken down) a possible novel. And all this is only party of a big little novel of encounters between texts and images: the magic plain that rereads the red and the black. 


    DUARTE, Paulo Sergio. Rereading the red and the black. In Rosângela Rennó, exhibition folder Rio de Janeiro: Laura Marsiaj Arte Contemporânea, 2001. Translated from Portuguese by Stephen Berg


    Corpo e Gênero em Rosângela Rennó


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    Texts linked to the work Red Series (Military men)

      [...] Série Vermelha (Militares) são fotografias antigas de homens e meninos trajando uniformes militares, em poses hieráticas. Com a contundente interferência da artista, cria-se nestas imagens uma vedação vermelha quase total que salienta significados pouco visíveis das mesmas. À distância, essas obras são como retângulos monocromáticos, mas, ao nos aproximarmos é possível vislumbrar aos poucos as imagens fantasmáticas daqueles homens e meninos que, como notou Tadeu Chiarelli, aparecem “perdidos no tempo e na cor, que parece querer tragá-los em definitivo” (1). Chiarelli atenta que, por outro lado, a cor vermelha possibilita uma série de associações simbólicas conflitantes entre si, por exemplo, pela simbologia da tragédia contra a do amor e do sexo. Paulo Sérgio Duarte comenta que é o crepúsculo da imagem e a noite da palavra que Rosângela oferece ao público, num lusco-fusco cor de sangue que banha os militares: 


      "Ninguém esquece a disciplina da pose. Num átimo, diante da câmera, somos todos militares. Uma suástica no braço e uniformes no estúdio doméstico do fotógrafo. Um senhor de farão posa orgulhoso, mas sem exagero, como se seus bordados em ouro fossem pinturas sobre a pele de um autêntico guerreiro índio. O antropólogo moderno também sabe: depois das seduções das estruturas, não se transpõe o sentido, a história não se repete, o bordado nunca será tatuagem.” (2)


      A imagem militar, seguramente, possui conotações e regras rígidas e duradouras, mas ela pode ser compreendida através das colocações apresentadas acima. Em Série Vermelha, é o apagamento que mais chama a atenção do espectador, anunciando uma crítica dos usos destas imagens como referencial simbólico do masculino. Virilidade, autoridade, força e rigidez: em sua névoa vermelha, essas construções acerca da imagem militar são dissipadas e tornam-se os espectros longínquos desses homens e meninos. A ironia de seu apagamento vem acompanhada de uma sensação contraditória de afeto por estes indivíduos, que surgem numa espécie de prisão eterna das organizações sociais, repetindo incansavelmente gestos viris que muitos outros já repetiram. Esta sensação perante a série não pertencia ao propósito inicial de Rennó, que pretendia apagar qualquer tentativa de glorificação associada à pose típica do portrait bourgeois, pois o que mais pesou no momento de reunir e escolher as imagens “e que de certa forma ridicularizava a idéia de ‘glória’”, segundo a própria artista, “era a questão da vaidade masculina associada ao uso de uniformes”. De maneira irônica ela explicita sua ambição crítica inicial: “Homem gosta de uniforme, acredita que ele lhe confere poder”. (3)

      Rennó produz uma espécie de esgotamento de possibilidades de enxergarmos esses indivíduos criando uma dificuldade prática (através da manipulação das fotos) que sugere a incapacidade mesma de compreensão do masculino. Poeticamente, a obra captura as formas de representação constantemente tidas como naturais e as reverte, apresentando suas densidades e complexidades. Esse esgotamento vem acompanhado de um plano intenso, muito belo, forjado por uma artista que parece ser capaz de enfrentar os vazios das representações e de formular novas perspectivas para o diálogo entre as subjetividades, masculinas, femininas... 

      Reler as imagens, mas também seus tons; repensar os dramas e intensidades do vermelho e do negro numa cultura bastante rígida, e não só para o feminino. Rennó destaca a tragédia da guerra e o luto das mulheres; o sangue, o amor e o sexo, mas também a morte. E se o negro, em Rennó, é o ponto culminante da filtragem da luz, onde todas as imagens possíveis aparecem mergulhadas no mar do esquecimento, ele parece nos colocar frente a frente com uma questão implacável: a necessidade mesma de relermos as cores com as quais pinta-se o mundo. O romance possível, ainda que existam muitas barreiras a desfazer, surge do enfrentamento com aquilo que mais violentamente nos revolta; da delicadeza com a qual Rennó mostra o esgotamento de possibilidades de nos reconhecermos em imagens, revelando a intensidade muda e enigmática da própria condição humana. Ao nos confrontar com nossa própria face encoberta por névoas, cores e sombras, Rennó parece desconfiar das superfícies claras que proclamam assegurar a estabilidade e a ordem: desfaz nosso rosto e nos deixa com a grande interrogação, com a inquieta experiência de não-saber.


          1.    CHIARELLI, Tadeu, “Apropriação/ Coleção/Justaposição”, In Catálogo para a exposição Apropriações/ Coleções, Porto Alegre, Santander Cultural, 2002.
          2.    DUARTE, Paulo Sérgio, “Para reler o vermelho e o negro”, In Catálogo para a exposição Apropriações/ Coleções, Porto Alegre, Santander Cultural, 2002.
          3.    RENNÓ, Rosângela Rennó: depoimento, op. cit, p. 20. 


      TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Corpo e Gênero em Rosângela Rennó (excerto de texto). In Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero (UFSC), 2007, disponível em: http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/fg7/artigos/L/Luana_Saturnino_Tvardovskas_49.pdf


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      Seu espelho, um caleidoscópio

      Her mirror, a kaleidoscope

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      Texts linked to the work Red Series (Military men)

        [...] Um dos poucos projetos de apropriação fotográfica que Rosângela Rennó realizou sobre pessoas que ou detêm ou performam distinção socioeconômica é a série Vermelha (militares) (2000-03). Trata-se de uma etnografia do poder, que desloca o olhar antropológico para os corpos hegemônicos com o objetivo de os escrutinar e lançar sobre eles premissas de alteridade. O ponto de partida são dezesseis fotografias de adultos e crianças, todos do gênero masculino, trajando uniformes militares. Reproduzidas a partir de álbuns encontrados em sebos ou em coleções pessoais, essas imagens sofreram intervenções da artista e foram ampliadas a tamanho próximo à escala humana. 

        Por trás dos personagens centrais, é marcante o vislumbre de algum traço de paisagem, ao invés dos fundos neutros, tão próprios das fotografias de registro civil. Esses são retratos de recordações, que vinculam a tarefa de representar indivíduos à de repertoriar suas vestes, poses, lugares e hábitos de lazer no momento específico do retrato. Nessa situação em que a contextualidade imagética e identitária parece constar como um privilégio de classe, é possível analisar, apesar das especificidades, o desejo afim dos retratados de se caracterizarem para justificar uma posição de superioridade na hierarquia social. Assim, as cenas escolhidas servem como indicativo de um universo muito maior e de uma mentalidade a partir da qual ser fotografado como um oficial militar supostamente agrega a esses indivíduos insígnias de bravura e poder. 

        As cenas não se restringem ao Brasil, mas aqui acionam com assombro o legado de autoritarismo que governos militares tiveram e têm como marca. Ao trauma das mais de duas décadas de um regime ditatorial, entre 1964 e 1985, soma-se a revolta diante da gestão de Jair Bolsonaro, capitão reformado e presidente da república desde 2019, responsável pelo desastre humanitário, sanitário, ambiental e institucional em que o país se encontra. Como um ciclo sem fim nem reparação, os crimes da ditadura foram anistiados; a Comissão Nacional da Verdade, dedicada a apurá-los, foi concluída sem grandes desdobramentos em 2014; e o atual presidente, então deputado federal, na votação que culminou no impeachment de sua antecessora Dilma Rousseff, homenageou Carlos Brilhante Ustra, coronel e reconhecido torturador, inclusive da presidenta em vias de afastamento. Face a esse histórico, que sentimentos provoca a apologia sistemática ao gestual militarista em fotografias cotidianas e banais? 

        A intervenção de Rennó é muito anterior a esses últimos eventos, mas brinda o momento presente com uma crítica contundente e atual. Por meio de ferramentas de edição digital, a artista aplicou uma veladura avermelhada sobre todas as imagens. As figuras se fundem quase por completo à camada espessa de cor, resultando em monocromos tanto impactantes quanto insólitos. Na qualidade de símbolo, o vermelho traz a alusão inevitável a sangue e violência, além de remeter, possivelmente em segunda instância, ao comunismo, ideário político a que os militares de ontem e de hoje fizeram e fazem uma oposição anedótica. Na qualidade de matéria, por sua vez, essa cor proporciona a opacidade necessária para se quebrar o sistema de crenças gerado pelas imagens e mais uma vez acessá-las enquanto construção ou já reconstrução. [...]


        MAIA. Ana Maria. Seu espelho, um caleidoscópio (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9-35.
        […] One of Rosângela Rennó’s few projects of photographic appropriation that have as their subject people who either hold socioeconomic power or implement socioeconomic distinctions is Vermelha (militares) [Red (Military men)] series (2000-03). It is an ethnography of power in which the anthropological gaze is shifted to hegemonic bodies, with the aim of scrutinizing them and also viewing them on a premise of alterity. The starting point are 16 photographs of adults and children, all male, wearing military uniforms. Reproduced from albums found in bookstores or personal collections, these images were intervened on by the artist and were enlarged to a size close to human scale. 

        It is remarkable that traces of landscape can be glimpsed behind the main characters instead of the neutral backgrounds typical of civil registration photos. These are portraits of memories, in which the task of representing individuals is linked to that of registering their clothing, poses, places and leisure habits at the specific moment of the portrait. In this situation, in which the contexts of image and identity seem to be tied to class privileges, one may—despite the specifics of each shot—detect the models’ desire to characterize themselves so as to justify a position of superiority in the social hierarchy. The chosen scenes are indications of a much larger universe and a mindset according to which being photographed as a soldier supposedly affixes emblems of bravery and power to these individuals. 

        These scenes are not restricted to Brazil, but here they evoke with bewilderment the legacy of authoritarianism that has marked and still marks the country’s military governments. The trauma of a two- decade-long dictatorial regime (1964- 1985) is compounded by disgust at the Jair Bolsonaro administration. Bolsonaro, a retired captain and president since 2019, is responsible for the humanitarian, health, environmental and institutional disaster that has swept the country. In an endless cycle that leaves no space for reparation, the crimes of the military dictatorship were forgiven; the National Truth Commission, dedicated to their investigation, was closed without major developments in 2014; the current president, then a federal representative, in the voting session that culminated in the impeachment of his predecessor Dilma Rousseff, honored Carlos Brilhante Ustra, an army colonel and known torturer, one of whose victims was the former president. In such a historical context, what feelings are stirred by the systematic approval of militaristic gestures in everyday trivial photographs? 

        Rennó’s intervention was carried out well before the Bolsonaro era, but it fits the present moment as a forceful and up-to-date critique. Using digital editing tools, she applied a reddish veil over all images. The figures are almost completely merged into the thick layer of color, resulting in both striking and unusual monochromes. As a symbol, the red color inevitably alludes to blood and violence, besides referring, perhaps secondarily, to communism, a political ideology to which the military of yesterday and today are typically opposed. In its materiality, in turn, red provides the opacity needed to break the belief system generated by the images and to once again access them as something to be constructed or reconstructed. […]


        MAIA. Ana Maria. Her mirror, a kaleidoscope (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9- 35.


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        Evidências ocultas

        Hidden Evidence

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        Texts linked to the work Red Series (Military men)

          [...] Com Série Vermelha (Militares) Rennó dá um último passo para frente. Muito além das transformações formais, realmente evidentes tanto na escolha dos sujeitos como no insólito recurso cromatismo (1), o que toca nessas fotos é sua profunda coerência com as obras anteriores. O que os protagonistas desses grandes retratos (2) têm em comum é o mero detalhe das divisas que usam. É evidente a reviravolta com relação ao universo precário dos operários e dos detentos: os sujeitos pertencem todos a classe dominante, e os uniformes são o certificado de que fazem parte, mais do que a um exército fantasmagórico e distante, dessa elite.

          Quase que ressaltando sua condição privilegiada, o domínio que sentem em atuar no mundo em que vivem, os protagonistas destas fotos são mortalizados ao ar livre, em lugares de veraneio e entretenimento, de prazer (lugares totalmente proibidos tanto aos operários quanto, naturalmente, aos detentos). Quando o pano de fundo não é um panorama “de cartão postal”, como a baia do Rio de Janeiro (Mad Boy), é pelo menos uma praia ensolarada (Castle King), o jardim de família, onde são fotografados primeiramente o avô, e depois, o neto (Old Prussian, Young Prussian) ou ainda – e é talvez o caso mais sugestivo – um muro sobre o qual se possa projetar, bem nítida, a sombra do militar (Shadow). Neste detalhe extremamente humano concentra-se a distância abissal que separa os militares dos operários e dos detentos, fotografados sempre diante do canônico fundo neutro, preto ou branco e rigorosamente plano, sem mais direito a luz do sol e, consequentemente, a uma sombra que sancione esta sua característica de pertencer a sociedade dos homens. A escolha de ressaltar, através do título (3), um detalhe aparentemente insignificante, confirma, afinal, sua importância para a compreensão do significado abrangente da obra.

          Se, nas obras dos anos 90, a diferença entre o espectador e o sujeito da fotografia era evidente, e a reflexão sobre a técnica empregada e sobre o significado da obra podia ser isolada e objetiva, neste caso, o procedimento é mais complexo. Além disso, o confronto com as obras anteriores é fundamental para a compreensão da originalidade da Série Vermelha (Militares). Em vez das rígidas fotos de identificação, Rennó serve-se, na produção desta série, de simples fotos de recordação, não diferentes daquelas que todos temos em alguma gaveta: documentos sem pretensão e um pouco desbotados de dias passados. A falta de uma injustiça social desorienta o observador: queira ou não, é sorvido para dentro da imagem pela sua “fisionomia social”, idêntica aquela dos sujeitos representados. Principalmente em um país como o Brasil, realmente marcado por enormes contrastes sociais, o espectador de uma exposição de arte contemporânea pertence quase invariavelmente a uma classe social de certa forma privilegiada (4). Reconhecendo-se naquele quer vê, é obrigado a se definir como cúmplice do processo que levou a situação desmascarada pela artista.

          Trazidas à luz, as evidências ocultas de que se nutre o trabalho fotográfico de Rosângela Rennó mostram os estigmas da passagem pelas trevas da ocultação ou do esquecimento. Sintomas inconfundíveis da patológica ânsia de esquecer de um país jovem e sempre projetado para o futuro, constituem, diante da desordenada aspiração ao bem-estar e a riqueza do primeiro mundo, um salutar momento mori.


              1.    A cor já tinha sido utilizada antes, nas fotos da série Vulgo e em outras “menores”, mas extremamente reveladoras, como Paz Armada (1990-92), mas nunca com uma força comparável aquela presente na Série Vermelha (Militares). É importante observar, além disso, que a cor utilizada é sempre o vermelho, diretamente associado, pela artista, tendo-o admitido explicitamente, ao sangue.
              2.    Mais uma vez, trata-se de velhas imagens provenientes de álbuns domésticos, refotografadas e, portanto, passadas para o vermelho por um processo digital, a ponto de ficarem quase indistinguíveis.
              3.    A importância dos títulos e, em geral, das palavras na obra de Rennó poderia ser objeto de um ensaio por si só. Penso nos textos extraídos de jornais e revistas, que confluem no grande Arquivo Universal, reservatório que usa para suas criações; mas penso também nos neologismos e nos calembour, que frequentemente constituem os títulos de suas obras. Trabalhos recentes como Espelho Diário (2001) e a grande instalação Bibliotheca (2002), dão continuidade, nesse sentido, a um discurso iniciado em obras anteriores, aprofundando realmente a dimensão literária (oral, no caso do vídeo, escrita, no caso das fichas de arquivo da instalação), sugerida pelos títulos das fotos da Série Vermelha (Militares) ou, antes ainda, por obras como In Oblivionem (1994), Hipocampo (1995) ou Cicatriz. Sobre o papel das palavras na obra de Rennó, vide também Paulo Sergio Duarte, Para reler o vermelho e o negro, no folder publicado pela Laura Marsiaj Arte Contemporânea, por ocasião da exposição de Rosângela Rennó em novembro de 2001.
              4.    De modo geral, o mesmo discurso vale também para os artistas: é significativo que para a 50• Bienal de Veneza, a própria Rennó tenha produzido uma obra a partir de uma velha foto de família, na qual seu irmão é retratado em uniforme militar.


          VISCONTI, Jacopo Crivelli. Evidências ocultas. In Sonhos despedaçados / Beatriz Milhazes Rosângela Rennó (excerto de texto). São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2003, p.42-54.
          […] With Série Vermelha (Militares) Rennó moves a step forward. Beyond the major formal transformation, evident in both the choice of the subjects as well as uncommon use of chromatism (1), what is most striking in the picture is their deep coherence with previous works. The protagonist of these great portraits (2) finds a common denominator in the uniforms they wear. The reversal of the precarious universe of workers and inmates is obvious; all the subjects belong to the dominant class, and their uniforms, rather than attesting to their membership in a phantomlike distant army, certify their belonging to this élite.

          Almost underscoring their privileged condition, their feeling that they are masters of the world in which they live, the protagonists of these pictures are immortalized in the open air, in vacation resorts and therefore places of leisure, of pleasure (universes that are completely forbidden both the working class and, obviously, to inmates). When the background is not a “postcard” view with the bay of Rio de Janeiro (Mad Boy), at least there is a sunny beach (Castle King), a family garden where the grandfather is portrayed first and then his grandson (Old Prussian, Young Prussian), or even – the most suggestive case – a wall upon which one can clearly see the shadow of the soldier (Shadow). This very human detail concentrates the abyssal distance that separates soldiers from workers and inmates, always photographed in the foreground with a solemn neutral background, black or with and strictly flat, not entitled to the sun light any more, nor consequently to a shadow that ratifies their belonging to humankind. Besides, the choice to highlight an apparently insignificant detail through the title (3) confirms its importance to an understanding of the overall meaning of the work.

          Although in the ‘90s the difference between the spectator and the subject of the photograph was evident, and the thought about the technique used and the meaning of the artwork could be separated and objective, in this case the procedure is more complex. In addition, the comparison with the previous artwork is essential for understanding the originality of Série Vermelha (Militares). Instead of the strict identity photographs, in this series Rennó uses simple commemorative ones, which are no different from those we all have in any drawer: unpretentious and somewhat faded documents from the old days. The lack of an easily identified and disapproved social injustice disconcerts observers: like it or not, they are swallowed within the image by their “social face”, identical to that of the subjects portrayed. Especially in a country like Brazil, marked by enormous social contrasts, the spectator of an exhibition of contemporary art almost invariably belong to a social class that is in a certain way privileged (4). By recognizing themselves in what they see, they are forced to define themselves as accomplices of the process that led to the situation unmasked by the artist.

          Brought to light, the hidden evidence from which the photographic work of Rosângela Rennó takes its essence shows the marks of the passage through the darkness of concealment or oblivion. The unmistakable symptoms of pathological wish for forgetting felt by a young country always projected into the future constitute, in light of the disordered longing for well-being and wealth displayed by the first world, a healthy memento mori.


             
           1.    Color was previously used in the photographs of the series Vulgo and in “mirror” though extremely revealing artworks, such as Paz Armada (1990-92),but never with a strength comparable to that of Série Vermelha (Militares). However, it is important to observe that red is always the color used, and the artist explicitly associates it directly with blood.
              2.    Again, we are dealing with old images, now taken from home albuns, rephotographed and turned red through a digital process, to the extent of becaming almost indistinguishable.
              3.    The importance of titles and of words in general at Rennó’s artworks could be the object of an independent essay. I think of the text taken from newspapers and magazines converging on the Universal Archive, a reservoir she uses for her creation, but I also think of a neologism and calembours that are frequently the titles of her works. Recent works such as the video Espelho Diário (2001) and the great installation Bibliotheca (2002) continue in this sense a theme broached in previous works, deepening the literary dimension (oral in the case of the video, and written in the case of the archive cards of the installation) suggested by the titles of the photographs of Série Vermelha (Militares) or, even before, by works such as In Oblivionem (1994), Hipocampo (1995) or Cicatriz. Concerning the role of the works in Rennó’s artworks, see also Paulo Sergio Duarte, Para reler o vermelho e o negro, in the folder published by Laura Marsiaj Arte Contemporânrea on the occasion of the exhibition of Rosângela Rennó, in November 2001.
              4.    The same thing can also be said about artists: significantly, for a picture produced for the 50th Venice Biennale, Rennó herself used an old family picture where her brother is portrayed in uniform.


          VISCONTI, Jacopo Crivelli. Hidden Evidence. In Shattered Dreams: Beatriz Milhazes Rosângela Rennó (text excerpt). São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2003, p. 26-38.


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