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Rosângela Rennó, a filosofia da instituição fotográfica

Rosângela Rennó. The philosophy of the photographic institution
Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Erasure


    […] Os Apagamentos agrupam fotografias de investigação criminal, provenientes da Austrália. Quatro crimes foram trabalhados individualmente em seqüências de imagens em tom sutil próprio. O método inclui sanduíches de slides, cortes, justaposição e superposição das imagens para levar o olhar ao corpo do assassinado. Fotos embaralham o quebra-cabeças mental da investigação. O corte e a cisão da prova jurídica nas fotocolagens dos Apagamentos se assemelham à colagem de Magritte, analisada por Didier Ottinger, que evoca “desencadeamento sadiano” (Battaille) e o caráter antropofágico (1). Rennó faz uma inversão parodística da fotocolagem e da fotomontagem na manipulação das massas nos regimes liberais e totalitários. 

    Ao produzir Apagamentos, Rennó comete delitos: subtrai imagens de um arquivo público e deturpa provas fotográficas de crimes, conforme o viés criminológico na arte definido pelos procedimentos e não pelo tema (2). Em Ornamento e Crime (1908), Adolf Loos defendeu a arquitetura despojada, fazendo analogias entre ornamentos e tatuagens dos prisioneiros. Ao incluir heroína numa pintura, Rudolf Scwarzkogler anuncia: Malerei als Verbrechen (pintura como crime) (3). As Cosmococas (1973) de Hélio Oiticica e Neville d’Almeida são provas da infração: as fotografias indicavam o uso de cocaína (4). Rennó indaga sobre a extensão da ação do artista (para além da ordem jurídica) e o procedimento epistemológico de produção da verdade.

    Rennó opõe conceitos às técnicas de falseamento da fotografia, portanto da notícia e da verdade jurídica. Os Apagamentos remetem menos ao mal d’archive de Derrida que ao Michel Foucault de A verdade e as formas jurídicas: “entrar no domínio do direito significa matar o assassino, mas matá-lo segundo certas regras” (5). Os Apagamentos situam o espectador na cena do crime em busca da verdade. Eles expõem a genealogia do poder na constituição da verdade. Com isso, Rennó inscreve o olhar na questão de Foucault: a própria relação de poder é constitutiva do conhecimento. […]


        1.   Do fio da faca ao fio da tesoura: da estética canibal às colagens de René Magritte. In: Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos. XXIV Bienal de São Paulo. São Paulo, FBSP, 1998, pp. 264-269.
        2.    A propósito ver do autor, palestra Arte e crime na Casa do Saber, Rio de Janeiro, 2006.
        3.    Sobre a questão, ver Régis Michel. La peinture comme crime. Paris, Louvre, 2001.
        4.    Paulo Herkenhoff. “Arte e crime/quase-cinema/quase-texto/Cosmococas”. In:Hélio Oiticica e Neville d’Almeida. Cosmococa programa in progress. Rio de Janeiro, Projeto Oiticica, Fundación Eduardo Constantini, 2005, pp. 241-260.
        5.     A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, Nau Editora, 1999, p. 57.


    HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó, a filosofia da instituição fotográfica (excerto de texto). In Artes Mundi 3. Cardiff: Artes Mundi Prize Limited, 2008, pp. 76-83.
    […] The Apagamentos group together photographs of criminal investigations from Australia. Four crimes were worked on individually in image sequences with their own subtle tone. The method includes sandwich slides, cuts, juxtaposition and superposition of the images in order to take the viewer’s gaze to the corpse of the murdered victim. The photos are treated to shuffle the mental puzzle of the investigation. The cut and excision of the legal evidence in the photographic collages in Apagamentos resemble Magritte’s, as analysed by Didier Ottinger, who evokes Sadean “release” (déchaînement) (Georges Bataille) and the anthropophagic character (1). Rennó makes a parodistic inversion of the photo-collage and photo-assemblage in the manipulation of the masses in liberal and totalitarian regimes. 

    A “delinquent” Rennó committed misdeeds as part of the artistic strategy for Apagamentos: she removed images from a public archive and falsified photographic proof of crimes. She follows a criminological tradition in art defined by procedures rather than the theme or form (2). In Ornament and Crime 1908), Adolf Loos defended plain architecture, making analogies between its adornments and prisoners’ tattoos. After including actual heroin in a painting, Rudolf Scwarzkogler declares his position: “Painting as crime” (“Malerei als Verbrechen”) (3). The Cosmococas (1973) by Hélio Oiticica and Neville d’Almeida constitute evidence of an offence: the images indicated the use of cocaine (4). Apagamentos enquire about the extent of the artist’s action (beyond the legal aspects of ordinary life) and the epistemological procedure for the production of truth that could result from this conflict.

    Rennó places concepts in opposition to any technique of falsifying photographs and hence news and legal truth. Apagamentos relates less to Derrida’s mal d’archive than to Michel Foucault’s Truth and Judicial Forms: “entering the domain of the law means killing the murderer, but killing him in accordance with certain rules” (5). Apagamentos places the viewer at the crime scene in search of the truth. The work exposes the genealogy of power in the constitution of truth. Thus, Rennó places the gaze at the centre of Foucault’s issue: knowledge is constituted by actual relationships of power. […]


        1.     Do fio da faca ao fio da tesoura: da estética canibal às colagens by René Magritte. In: Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos. XXIV Bienal de São Paulo. São Paulo, FBSP, 1998, pp. 264-269.
        2.    On this topic, see the author’s talk Arte e crime at the Casa do Saber, Rio de Janeiro, 2006.
        3. On this matter, see, ver Régis Michel. La peinture comme crime. Paris, Louvre, 2001.
        4.    Paulo Herkenhoff. “Arte e crime/quase-cinema/quase-texto/Cosmococas”. In:Hélio Oiticica e Neville d’Almeida. Cosmococa programa in progress. Rio de Janeiro, Projeto Oiticica, Fundación Eduardo Constantini, 2005, pp. 241-260.
        5.    A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, Nau Editora, 1999, p. 57.


    HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó. The philosophy of the photographic institution (text excerpt). In Artes Mundi 3. Cardiff: Artes Mundi Prize Limited, 2008, pp. 76-83.


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    Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda

    Even in the clearest of images something unknown remains
    Textos relacionados ao trabalho


    Texts linked to the work Erasure


      […] A potência de conhecimento que qualquer fotografia guarda não é, então, de todo abafada em função de seu uso como instrumento de substituição da memória e, por conseguinte, como indutor de amnésia. Continuam a pulsar, na sua superfície, informações variadas prontas a serem ativadas como elementos de cognição daquilo que ela apresenta como imagem descarnada. E como a demonstrar tal persistência a contrapelo das evidências, Rosângela Rennó toma de conjuntos de fotografias feitas pela polícia em quatro cenas de crimes – produzidas, portanto, para registrar e investigar tais fatos – e desconstrói cada uma delas em muitas outras imagens. Todos esses pedaços – emoldurados individualmente como diapositivos preparados para projeção – são justapostos sobre mesas ou caixas de luz, solicitando, do observador, a recomposição mental das fotografias relacionadas a cada um dos crimes. Assim esquadrinhadas e interrompidas pelas bordas das molduras de suas muitas partes, as cenas perdem, contudo, forçosamente o seu poder de informar sobre o evento que supostamente registra, posto que não há mais nelas uma hierarquia de valores visuais, levando o olhar a vagar de um a outro fragmento sem saber ao certo onde deve repousar. Tal efeito se sobrepõe, em verdade, à destituição de alteridade dos indivíduos mortos fotografados, já em marcha desde quando suas imagens foram arquivadas como parte de processos criminais. Não por acaso, a essa série de quatro trabalhos é dado o título de Apagamento [2005]. É essa obliteração de sentidos e identidades, entretanto, que permite a observação daquilo que não seria percebido caso a integridade da fotografia fosse preservada: papéis em cima de um guarda-roupa, a imagem de uma criança em um porta-retratos, uma roupa jogada no chão, bibelôs em cima de um móvel, a sombra de uma cerca projetada no piso, uma fruta que já não serve, uma janela deixada entreaberta, uma garrafa esquecida em um canto, mesmo os cabelos da perna de uma pessoa morta. 

      Existe, nesse procedimento da artista, algo próximo ao adotado pelo personagem-fotógrafo do filme Blow-Up [1966], do cineasta italiano Michelangelo Antonioni (1912), que recorta e amplia muitas vezes uma fotografia feita ao acaso por suspeitar que nela, em um ponto distante do assunto central da imagem, reside a prova de que um crime foi cometido. Em ambos, há a certeza de que as fotografias carregam com elas também um “infra-saber”, coleção de informações parciais e somente sugeridas que são irredutíveis aos fatos nelas apresentados como inequívocos e importantes (1). Há contida, ainda, em tais estratégias, a idéia de que uma imagem fotográfica não registra apenas o momento de ocorrência de um fato principal, mas instantes diversos nos quais sub-eventos se misturam, se modificam e se confundem de modo heterogêneo (2). Embora de impossível demonstração, tal noção é implicada na sobreposição, feita por Rosângela Rennó com algumas das imagens de crimes que ela “apaga”, de fragmentos de fotografias distintas, formando um palimpsesto de cenas que aludem não só a espaços separados mas, também, a tempos diferentes que co-existem em um mesmo fato. O referente, portanto, não é fixado de pronto em uma fotografia, mas estabelecido, de formas diversas, a partir de seu escrutínio por olhares diversos. (…)


          1.    Barthes, Roland. Ibid.
          2.    Derrida, Jacques. “The Photograph as Copy. Archive and Signature”. European Photograh, 19/20, Winter 1998/Summer 1999. 


      ANJOS, Moacir dos. Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda. In ANJOS, Moacir dos. Crítica. Rio de Janeiro: Automática, 2010, pp. 242-255.
      [...] The potential knowledge that any photograph contains is not, therefore, entirely annihilated by its use as a substitute for memory, which, in turn, induces amnesia. Its surface is abuzz with information ready to be brought to life as facets of cognition of that which it represents as an image shorn of flesh. Furthermore, as if to show such persistence against all evidence, Rosângela Rennó takes from sets of photographs taken by the police at four crime scenes—to register the facts as a basis for investigation—and deconstructs each one into many other images. All these pieces—each one framed as a slide ready for projection – are laid alongside one another on tables or light boxes, inviting the observer to recompose mentally the photographs relating to each of the crimes. Interrupted by the edge of the frames, the scenes lose, however, their power to provide information on the event that they supposedly register. The hierarchy of visual values they contained is broken down and the eye wanders from one fragment to another without knowing for certain where it should rest. This effect, in fact, superimposes itself on the deprivation of the corpses photographed of their alterity, which was already underway from the moment the images were archived as part of the criminal investigation. It is no accident that this series of four pieces is entitled Erasing [2005]. It is the very obliteration of meanings and identities that allows one to see what would be imperceptible if the photograph were preserved as a whole: papers over a wardrobe, the image of a child in a portrait frame, clothes scattered on the floor, knick-knacks on a piece of furniture, the shadow of a fence cast on the ground, rotten fruit, a window ajar, a bottle left in a corner, the hair on the legs of a corpse.

      The procedure the artist uses here comes close to that of the photographer in the film Blow-Up [1966], by the Italian director Michelangelo Antonioni (1912), who cuts and blows up a photograph taken by chance because he suspects that in a corner of the photo far removed from the main image there is proof that a crime was committed. In both cases, there is a certainty that photographs also carry an “infra-knowledge”, partial and merely suggested information that cannot be reduced to the facts they present as unequivocally important (1). Such strategies also contain the idea that a photographic image does not only register the moment of occurrence of a principal fact, but diverse instants, in which sub-events blend into each other, modify and become confused with one another in a heterogeneous way (2). Although impossible to demonstrate, this notion becomes implicit when Rosângela Rennó superimposes on some of the “erased” crime images fragments of other photographs, thereby forming a palimpsest of scenes that allude not only to separate places but also to different times coexisting in the same fact. The referent is thus not fixed and readily available in the photograph, but established in various ways under the scrutiny of a plurality of observations. […]


          1.    Barthes, Roland. Ibid.
          2.    Derrida, Jacques. “The Photograph as Copy. Archive and Signature”. European Photograph, 19/20, Winter 1998/Summer 1999.


      ANJOS, Moacir dos. Even in the clearest of images something unknown remains. In ANJOS, Moacir dos. Crítica. Rio de Janeiro: Automática, 2010, pp. 242-255.


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