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Rosângela Rennó: memórias refletidas 



Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Daily Mirror

    Artista brasileira nascida no ano de 1962, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Rosângela Rennó vive no Rio de Janeiro e lida com a memória quotidiana. A originalidade de seu caminhar profissional reside no fato dela expressar-se principalmente por meio da fotografia, raramente produzida por ela mesma e, sim, pacientemente coletada e reunida ao longo do tempo: desde o fim dos anos 80, a artista trabalha em torno dos arquivos e do valor simbólico a eles atribuído.

    A videoinstalação apresentada dentro da programação do Festival de Outono de Paris (França), de 2005, nos permitiu descobrir o perfeito domínio da artista sobre a imagem e a memória, seja a sua própria ou a dos outros. Exibida inicialmente em Lisboa em 2001 no Museu do Chiado, Espelho Diário vem a ser uma obra fascinante em razão da emoção provocada no espectador. Confortavelmente acomodado em frente a uma tela de projeção dupla, colocada em ângulo de quase 120º, como se fosse um livro aberto, ou uma agenda que se vá folheando ou como um espelho – da outra tela ou de si mesmo – o espectador não vê passarem as duas horas de projeção sincronizada em loop. O título da videoinstalação se refere com ironia ao nome do famoso tabloide Daily Mirror e sua crônica de faits divers, pequenos assuntos do cotidiano. Durante mais de oito anos, a artista colecionou matérias de jornais que diziam respeito a mulheres que levavam o mesmo nome que ela, Rosângela, nome bastante popular no Brasil. A artista não gostava dele: “Eu sempre tive dificuldade em aceitar meu nome. Entre 1992 e 93, li a notícia do sequestro e posterior liberação de uma mulher da alta sociedade do Rio de Janeiro, com as palavras ‘Rosângela foi liberada enquanto rezava’. Eu adorei, era a primeira vez que uma mulher de classe alta com este nome vinha a ser notícia na imprensa”.

    Rosângela Rennó pediu a Alícia Duarte Penna – escritora que escreve um diário íntimo há mais de vinte anos – que redigisse monólogos interiores para cada uma das mulheres e posteriormente gravou a si própria em vídeo, apropriando-se e identificando-se assim com as cento e trinta e três pessoas diferentes, individualizadas por uma data inscrita na tela. “A ideia era a de situá-las em uma espécie de diário, do 1º de janeiro até o 31 de dezembro, ou seja, algo como a condensação de oito anos em um”. Encontram-se ali todas as facetas da sociedade: pessoas famosas ou pessoas anônimas, donas de casa, deputadas ou sem-teto, mães ou filhas, livres, sequestradas, presas ou mortas; todas elas condenadas a uma certa amnésia por parte da sociedade após aquele momento de celebridade passageira. A artista procedeu a uma escolha clara ao colocar todas as mulheres no mesmo plano. Todos os detalhes são perfeitamente dominados. O cenário sempre despojado. Para cada tipo de mulher corresponde um lugar – cozinha, cadeira, cama, banco de praça pública, cárcere, rua – e um tipo de focalização – paisagem, plano médio, retrato ou primeiro plano. De um momento a outro, o ambiente pode ser esvaziado ou ainda habitado pelas personagens precedentes. Para cada mulher corresponde também um tipo de vestimenta e, quiçá, um tipo físico, tal é a excelente performance da atriz: Rosângela Rennó encarna diversas mulheres e consegue convencer com pouquíssimos subterfúgios essencialmente limitados aos penteados e à presença física. “Sou sempre eu mesma na tela. Porém, em nenhum instante procurei interpretar os papéis das mulheres como se fosse uma atriz e é pela ausência de interpretação que se vê, em mim, todas essas mulheres”. A artista realizou ela mesma a dublagem em francês, o que vem a ser uma decisão muito pertinente levando em conta a duração dos monólogos. Ela escolheu um tom monocórdio e é surpreendente como ela consegue convencer, em cada retrato, tendo adotado essa opção; ao recusar a comédia, ela traduz maravilhosamente bem este diálogo interno, uma certa aceitação da fatalidade frente à monstruosidade da vida e uma rebelião sem eficácia real e, no final das contas, rapidamente absorvida pela realidade dos fatos. “Neste vídeo, personifico todas as Rosângelas. É para mim uma forma de resolver minha dificuldade com a representação, com a minha própria memória, com o fato de não gostar de minhas imagens, de preferir a memória dos outros e, frequentemente a sua falta de memória: A amnésia dos outros é muito mais interessante, acho que posso trabalhar mais intimamente com ela e com mais liberdade”.

    Deve-se ressaltar a qualidade do texto; ele permite que cada mulher apresente com algumas palavras simples a situação em que se encontra, a desordem instaurada, e a atitude que adota diante delas, algumas vezes pouco ordinárias na vida; situações diante das quais nunca se deseja ser confrontada e que, entretanto, acontecem frequentemente tanto no Brasil quanto em qualquer outro lugar. Esta capacidade de captar as reações do ser humano frente à vida faz com que o vídeo de Rosângela Rennó seja particularmente impactante e universalista: nenhuma necessidade de conhecer pessoalmente o Brasil para identificar-se com estas mulheres diante da vida, da enfermidade, da penúria e da morte.

    Os textos já são presentes na obra de Rosângela Rennó, porém, não em forma sonora. Podemos citar em particular Hipocampo (1995), extraído de seu projeto Arquivo Universal (1992-2003), onde os textos murais se inscrevem nas paredes, desempenhando o papel dos epitáfios nos monumentos antigos.

    Os efeitos de espelho são numerosos e tem por objetivo favorecer o imbricamento das histórias pessoais de todas estas Rosângelas. “A minha intenção era a de provocar no espectador a sensação de já ter visto aquela mulher, daí o motivo das repetições: assim, todas as mulheres mortas são vistas no mesmo lugar, vestidas da mesma forma. Elas são nove mortas, mas a impressão é de que é sempre a mesma que reaparece”. O espelho é claramente anunciado no surgimento das datas: a efeméride inscreve-se pelo avesso no reflexo. Determinadas imagens são, também, de fato invertidas e a tatuagem no braço constitui a prova mais simples para verificá-lo. Em outros momentos, trata-se simplesmente de um duplo: a artista está sentada na mesma poltrona ou no mesmo cenário. Senão, é o fundo que muda e a artista corre em um interior ou em um exterior. Por vezes, a câmera filma ora de perfil, ora de costas e desta forma, o espectador não se vê confrontado a um sistematismo entediante. Também a voz alterna de uma tela a outra até sobrepor-se ou calar-se. A presença do indivíduo se faz sentir também pela sua respiração. Este sopro dá vida à imagem. A atenção se translada de uma tela a outra sem que o espectador venha a perceber que, vez por outra, a segunda imagem se congela ou que tenha ocorrido uma ligeira decalagem. Entretanto, a repetição dos cenários e da indumentária procura dissimular a quantidade das mulheres. “Sem isto, esta multiplicidade seria vertiginosa para o espectador”.

    Para a artista, trata-se de um exercício político realizado em um país ainda jovem que continua projetando-se no futuro sem levar em conta os sacrifícios que pede aos seus concidadãos. A obra de arte é uma forma de ressaltar a dimensão do custo humano. Este esforço de restituição da dignidade humana se encontra em numerosas obras de Rosângela Rennó e representa o seu fio condutor. A artista recorre a meios paradoxais em relação ao seu sujeito: ela retira parte da visibilidade dele para melhor levá-lo em conta e o insere sempre em uma série onde deverá surgir a individualidade. [...]

    Com este Espelho Diário, Rosângela Rennó reencarna assim com grande força todas as Rosângelas que nunca iremos conhecer; sua vontade de concentrar-se mais em torno da história destas mulheres que sobre a particularidade física delas – o que tornaria anedótica sua individualidade – nos confronta com uma Rosângela única, poderosa e múltipla.



    Notas: As citações de Rosângela Rennó foram extraídas de uma entrevista com Cedric Lagandré publicada em Mouvement, nº 36-37, set-dez 2005 e de outra entrevista com Maria Angélica Melendi, maio 2001 em LatinArt.com. A artista publicou um livro notável sobre seus trabalhos fotográficos, O Arquivo universal e outros arquivos, com textos em português e em inglês de Adriano Pedrosa e Maria Angélica Melendi, ed. Cosac Naify/CCBB, Rio de Janeiro, 2003.


    BIASS-FABIANI, Sophie. Rosângela Rennó: mémoires réfléchies. In Turbulences vídeo, número 50. Clermont-Ferrand (França), janeiro-março de 2006, p. 3-6. Tradução de Anne-Marie Davée.