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Seu espelho, um caleidoscópio

Her mirror, a kaleidoscope

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Texts linked to the work Daily Mirror

    [...] Espelho diário (2001) é um dos raros trabalhos em que Rosângela Rennó somou os papéis de pesquisadora, arquivista e editora ao de atriz. Diante de uma câmera de vídeo, ela encenou pequenos monólogos baseados em biografias de 133 Rosângelas, incluindo ela própria e mulheres homônimas que identificou em matérias de jornais populares por oito anos. No campo audiovisual, fruto da parceria com a escritora Alícia Duarte Penna, o autorretrato da artista funde-se às etnografias, tornando seu corpo e sua imagem suportes para radicais disparidades. “Pelejava para se ver no espelho, una, cabeça-tronco-membros, mas qual! Qual! Eram miríades! Seu espelho, um caleidoscópio”, afirma o introito gravado pelo jornalista Cid Moreira com sua voz célebre e pomposa. 

    A presença de Rosângela Rennó traz à tona seu desejo de exercer uma agência social, evidenciando ainda mais aquilo que ela já faz quando atua apenas nos bastidores, nas engrenagens, nos abismos. Essa mesma presença, contudo, ajuda a continuar pensando que o hábito de agenciar, ou seja, de deflagrar processos articulando alteridades, não pode existir desatrelado do exercício de se perceber e implicar como feixe de leitura. Esse e outros trabalhos da artista prestam lições fundamentais sobre o fato de que tanto espelhos ampliam seu alcance em visões caleidoscópicas, quanto caleidoscópios exigem a posição política e ética de se autoespecular. [...]


    MAIA. Ana Maria. Seu espelho, um caleidoscópio (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9-35.
    […] Espelho diário [Daily Mirror] (2001) is a rare work in which Rosângela Rennó added the roles of researcher, archivist, and editor to that of an actress. In front of a video camera, she staged short monologues based on the biographies of 133 Rosângelas, including herself and homonymous women she found in tabloid articles over an eight-year period. In the audiovisual work, fruit of a partnership with writer Alícia Duarte Penna, the artist’s self- portrait merges with ethnographical narratives, so that her body and image underpin radical disparities. “She struggled to see herself in the mirror as one, head, body and limbs, but no! They were myriads! Her mirror was a kaleidoscope,” states the introduction recorded by journalist Cid Moreira with his famous resounding voice. 

    Rosângela Rennó’s presence brings to the surface her desire to carry out some form of social agency, evincing more and more what she already does when she acts only behind the scenes, in the engine-room—in the abyss. This very presence, however, keeps us thinking that the act of brokering, i.e., of triggering certain processes by articulating otherness, cannot exist without the exercise of perceiving and implicating oneself as an interpretive focus. This and other works by the artist provide a fundamental lesson: mirrors broaden their range in kaleidoscopic visions, and kaleidoscopes require a political and ethical attitude of self-speculation. [...]


    MAIA. Ana Maria. Her mirror, a kaleidoscope (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9- 35.


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    Rosângela Rennó, a filosofia da instituição fotográfica

    Rosângela Rennó. The philosophy of the photographic institution
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    Texts linked to the work Daily Mirror


      [...] Em A Prosa do Mundo, Maurice Merleau-Ponty cogita que os indivíduos sejam capturados por seu nome pessoal (1). Rosângela Rennó tinha dificuldade em aceitar seu nome. A videoinstalação Espelho diário reúne as histórias de 133 “Rosângelas” que a artista recolheu em jornais e narra em fluxo delirante (2). Em comentário àqueles argumentos de Merleau-Ponty, Claude Lefort agrega que, antes da fase do espelho lacaniana, na qual a criança descobre sua unidade corporal, existe o encontro com o nome que determina o início de uma nova relação de alteridade (3). Rosângela Rennó constrói uma identificação pelo nome. Interpretando Rennó via Lacan, Pedro Lapa observa que “existe uma impossibilidade de que o todo se diga, existe um real que sobra. [...] É aí que se joga a possibilidade de um discurso não submetido a condição de pertença de um arquivo da ideologia do cotidiano” (4). O Espelho diário é o campo dessa relação de conhecimento. Se o sujeito é feito por seu nome, Rennó argumenta que o sujeito moderno seja constituído pela informação por imagens e pelo sistema de comunicação, por isso o título Espelho diário remeter ao jornal britânico Daily Mirror, criado para o público feminino. 

      Se o pintor empresta seu corpo à pintura, como observou Merleau-Ponty, marcado por Valéry (5), Rennó empresta sua imagem ao vídeo para designar uma reversibilidade fenomenológica entre ela e suas homônimas. A fotografia captura o sujeito. Do Espelho diário ao nome, a mesma Rosângela é todas. “Elas era umas”, escreveu Alícia Duarte Penna. O jogo visual de Rennó se identifica com Rimbaud que escreve “Je est un autre” (6). As identidades não resistem ao caudal dos relatos e se dissolvem: uma é a outra da outra, numa rede de alteridades como O Divisor (1968) de Lygia Pape, um enorme lençol branco com aberturas em que as pessoas metiam suas cabeças e interagiam. Eu sou você - esta é a especularidade buscada, que aparentemente não estaria na fisionomia, mas no nome. Rennó acede à ordem simbólica pela linguagem visual, ultrapassando a relação especular eu/outro da instância do imaginário lacaniano– o outro fotográfico. Em posição instável no discurso, Rosângela ora é significante ora significado. Na fisionomia da narradora, o Espelho diário instaura a carne da fotografia (7). [...]

          1.    Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 26.
          2.    Alícia Duarte Penna rescreveu as notícias em forma de histórias.
          3.    Flesh and Otherness, in: Ontology and Alterity in Merleau-Ponty. Galen Johnson e Michael Smith (orgs). Evanston: Northwestern University Press, 1990, p. 12.
          4.    “Rosângela, Comunidade sem nome. In Rosângela Rennó: Espelho diário. Lisboa, Museu do Chiado, 2002.
          5.    Maurice Merleau-Ponty. L’Oeil et l’esprit (1961). Paris: Gallimard, 1965, p. 16.
          6.    Carta a Paul Demeny (15 de maio de 1871).
          7.     Em Le visible et l’invisible, Merleau-Ponty discute a carne da linguagem, a carne do mundo e a carne das coisas. Paris, Gallimard, 2004, pp. 170-201.


      HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó, a filosofia da instituição fotográfica (excerto de texto). In Artes Mundi 3. Cardiff: Artes Mundi Prize Limited, 2008, pp. 76-83.
      […] In The Prose of the World, Maurice Merleau-Ponty argues that  individuals are  captured by their personal name (1). Rosângela Rennó found difficulty in accepting her name. The video-installation Espelho diário is a compilation of the stories of 133 “Rosângelas” that were gathered from newspapers. The stories are narrated in delirious flow (2). Commenting on Merleau-Ponty, Claude Lefort adds that, prior to the Lacanian mirror stage, in which the child discovers his bodily unity, came the encounter with the name that determines the beginning of a new relation of alterity (3). Rosângela Rennó uses name to construct identification. Quoting from Lacan to interpret Rennó, Pedro Lapa observes that “there exists an impossibility that everything can be said, there is an excess of reality. [...] This is where the possibility of a discourse that has not been submitted to the condition of belonging to an archive of the ideology of daily life comes into play” (4). The Espelho diário is a site for the construction of knowledge. If the subject is made by his or her name, Rennó argues that the modern subject is composed of information through images and by the communications system, which is why the title Espelho diário harks back to the British newspaper Daily Mirror, created for female readers. 

      If the artist lends the body to painting, as Merleau-Ponty observes, after Valéry (5), Rennó lends her image to the video to designate a phenomenological reversibility between herself and her homonyms. Photography captures the subject. Either in Espelho diário or under the given name, there is one, and only one, Rosângela. Rennó’s visual game identified with Rimbaud who writes “Je est un autre” (6). The identities are unable to resist the flow of narratives and dissolve themselves: one is the other’s other, in a network of alterities such as O Divisor (1968) by Lygia Pape, a huge white sheet with openings into which people would insert their heads and interact. I am you – this is the searched mirroring, which apparently lies not in the physiognomy but in the name. Rennó accedes to the symbolic order using visual language, superseding the specular I/other opposition in the instance of Lacanian level of the imaginary – the photographic other. Occupying a permanently alternate position within the video discourse, Rosângela is at times the signifier and at others the signified. In the physiognomy of the narrator, the Espelho diário establishes the flesh of photography (7). [...]


          1.    Translation by Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 26. English translation by John O’Neill. The Prose of the World. Evanston: Northwestern University Press, 1973; London: Heinemann, 1974.
          2.    Alícia Duarte Penna rewrote the news in the form of stories.
          3.    Flesh and Otherness, in: Ontology and Alterity in Merleau-Ponty. Galen Johnson and Michael Smith (orgs). Evanston: Northwestern University Press, 1990, p. 12.
         4.    “Rosângela, Comunidade sem nome. In Rosângela Rennó: Espelho diário. Lisbon, Chiado Museum, 2002.
         5.    Maurice Merleau-Ponty. L’Oeil et l’esprit (1961). Paris: Gallimard, 1965, p. 16.
         6.    Letter to Paul Demeny (15 May 1871).
          7.    In Le visible et l’invisible, Merleau-Ponty discusses the flesh of language, the flesh of the world and the flesh of things. Paris, Gallimard, 2004, pp. 170-201.


      HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó. The philosophy of the photographic institution (text excerpt). In Artes Mundi 3. Cardiff: Artes Mundi Prize Limited, 2008, pp. 76-83.


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      Rosângela Rennó: memórias refletidas 



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      Texts linked to the work Daily Mirror

        Artista brasileira nascida no ano de 1962, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Rosângela Rennó vive no Rio de Janeiro e lida com a memória quotidiana. A originalidade de seu caminhar profissional reside no fato dela expressar-se principalmente por meio da fotografia, raramente produzida por ela mesma e, sim, pacientemente coletada e reunida ao longo do tempo: desde o fim dos anos 80, a artista trabalha em torno dos arquivos e do valor simbólico a eles atribuído.

        A videoinstalação apresentada dentro da programação do Festival de Outono de Paris (França), de 2005, nos permitiu descobrir o perfeito domínio da artista sobre a imagem e a memória, seja a sua própria ou a dos outros. Exibida inicialmente em Lisboa em 2001 no Museu do Chiado, Espelho Diário vem a ser uma obra fascinante em razão da emoção provocada no espectador. Confortavelmente acomodado em frente a uma tela de projeção dupla, colocada em ângulo de quase 120º, como se fosse um livro aberto, ou uma agenda que se vá folheando ou como um espelho – da outra tela ou de si mesmo – o espectador não vê passarem as duas horas de projeção sincronizada em loop. O título da videoinstalação se refere com ironia ao nome do famoso tabloide Daily Mirror e sua crônica de faits divers, pequenos assuntos do cotidiano. Durante mais de oito anos, a artista colecionou matérias de jornais que diziam respeito a mulheres que levavam o mesmo nome que ela, Rosângela, nome bastante popular no Brasil. A artista não gostava dele: “Eu sempre tive dificuldade em aceitar meu nome. Entre 1992 e 93, li a notícia do sequestro e posterior liberação de uma mulher da alta sociedade do Rio de Janeiro, com as palavras ‘Rosângela foi liberada enquanto rezava’. Eu adorei, era a primeira vez que uma mulher de classe alta com este nome vinha a ser notícia na imprensa”.

        Rosângela Rennó pediu a Alícia Duarte Penna – escritora que escreve um diário íntimo há mais de vinte anos – que redigisse monólogos interiores para cada uma das mulheres e posteriormente gravou a si própria em vídeo, apropriando-se e identificando-se assim com as cento e trinta e três pessoas diferentes, individualizadas por uma data inscrita na tela. “A ideia era a de situá-las em uma espécie de diário, do 1º de janeiro até o 31 de dezembro, ou seja, algo como a condensação de oito anos em um”. Encontram-se ali todas as facetas da sociedade: pessoas famosas ou pessoas anônimas, donas de casa, deputadas ou sem-teto, mães ou filhas, livres, sequestradas, presas ou mortas; todas elas condenadas a uma certa amnésia por parte da sociedade após aquele momento de celebridade passageira. A artista procedeu a uma escolha clara ao colocar todas as mulheres no mesmo plano. Todos os detalhes são perfeitamente dominados. O cenário sempre despojado. Para cada tipo de mulher corresponde um lugar – cozinha, cadeira, cama, banco de praça pública, cárcere, rua – e um tipo de focalização – paisagem, plano médio, retrato ou primeiro plano. De um momento a outro, o ambiente pode ser esvaziado ou ainda habitado pelas personagens precedentes. Para cada mulher corresponde também um tipo de vestimenta e, quiçá, um tipo físico, tal é a excelente performance da atriz: Rosângela Rennó encarna diversas mulheres e consegue convencer com pouquíssimos subterfúgios essencialmente limitados aos penteados e à presença física. “Sou sempre eu mesma na tela. Porém, em nenhum instante procurei interpretar os papéis das mulheres como se fosse uma atriz e é pela ausência de interpretação que se vê, em mim, todas essas mulheres”. A artista realizou ela mesma a dublagem em francês, o que vem a ser uma decisão muito pertinente levando em conta a duração dos monólogos. Ela escolheu um tom monocórdio e é surpreendente como ela consegue convencer, em cada retrato, tendo adotado essa opção; ao recusar a comédia, ela traduz maravilhosamente bem este diálogo interno, uma certa aceitação da fatalidade frente à monstruosidade da vida e uma rebelião sem eficácia real e, no final das contas, rapidamente absorvida pela realidade dos fatos. “Neste vídeo, personifico todas as Rosângelas. É para mim uma forma de resolver minha dificuldade com a representação, com a minha própria memória, com o fato de não gostar de minhas imagens, de preferir a memória dos outros e, frequentemente a sua falta de memória: A amnésia dos outros é muito mais interessante, acho que posso trabalhar mais intimamente com ela e com mais liberdade”.

        Deve-se ressaltar a qualidade do texto; ele permite que cada mulher apresente com algumas palavras simples a situação em que se encontra, a desordem instaurada, e a atitude que adota diante delas, algumas vezes pouco ordinárias na vida; situações diante das quais nunca se deseja ser confrontada e que, entretanto, acontecem frequentemente tanto no Brasil quanto em qualquer outro lugar. Esta capacidade de captar as reações do ser humano frente à vida faz com que o vídeo de Rosângela Rennó seja particularmente impactante e universalista: nenhuma necessidade de conhecer pessoalmente o Brasil para identificar-se com estas mulheres diante da vida, da enfermidade, da penúria e da morte.

        Os textos já são presentes na obra de Rosângela Rennó, porém, não em forma sonora. Podemos citar em particular Hipocampo (1995), extraído de seu projeto Arquivo Universal (1992-2003), onde os textos murais se inscrevem nas paredes, desempenhando o papel dos epitáfios nos monumentos antigos.

        Os efeitos de espelho são numerosos e tem por objetivo favorecer o imbricamento das histórias pessoais de todas estas Rosângelas. “A minha intenção era a de provocar no espectador a sensação de já ter visto aquela mulher, daí o motivo das repetições: assim, todas as mulheres mortas são vistas no mesmo lugar, vestidas da mesma forma. Elas são nove mortas, mas a impressão é de que é sempre a mesma que reaparece”. O espelho é claramente anunciado no surgimento das datas: a efeméride inscreve-se pelo avesso no reflexo. Determinadas imagens são, também, de fato invertidas e a tatuagem no braço constitui a prova mais simples para verificá-lo. Em outros momentos, trata-se simplesmente de um duplo: a artista está sentada na mesma poltrona ou no mesmo cenário. Senão, é o fundo que muda e a artista corre em um interior ou em um exterior. Por vezes, a câmera filma ora de perfil, ora de costas e desta forma, o espectador não se vê confrontado a um sistematismo entediante. Também a voz alterna de uma tela a outra até sobrepor-se ou calar-se. A presença do indivíduo se faz sentir também pela sua respiração. Este sopro dá vida à imagem. A atenção se translada de uma tela a outra sem que o espectador venha a perceber que, vez por outra, a segunda imagem se congela ou que tenha ocorrido uma ligeira decalagem. Entretanto, a repetição dos cenários e da indumentária procura dissimular a quantidade das mulheres. “Sem isto, esta multiplicidade seria vertiginosa para o espectador”.

        Para a artista, trata-se de um exercício político realizado em um país ainda jovem que continua projetando-se no futuro sem levar em conta os sacrifícios que pede aos seus concidadãos. A obra de arte é uma forma de ressaltar a dimensão do custo humano. Este esforço de restituição da dignidade humana se encontra em numerosas obras de Rosângela Rennó e representa o seu fio condutor. A artista recorre a meios paradoxais em relação ao seu sujeito: ela retira parte da visibilidade dele para melhor levá-lo em conta e o insere sempre em uma série onde deverá surgir a individualidade. [...]

        Com este Espelho Diário, Rosângela Rennó reencarna assim com grande força todas as Rosângelas que nunca iremos conhecer; sua vontade de concentrar-se mais em torno da história destas mulheres que sobre a particularidade física delas – o que tornaria anedótica sua individualidade – nos confronta com uma Rosângela única, poderosa e múltipla.



        Notas: As citações de Rosângela Rennó foram extraídas de uma entrevista com Cedric Lagandré publicada em Mouvement, nº 36-37, set-dez 2005 e de outra entrevista com Maria Angélica Melendi, maio 2001 em LatinArt.com. A artista publicou um livro notável sobre seus trabalhos fotográficos, O Arquivo universal e outros arquivos, com textos em português e em inglês de Adriano Pedrosa e Maria Angélica Melendi, ed. Cosac Naify/CCBB, Rio de Janeiro, 2003.


        BIASS-FABIANI, Sophie. Rosângela Rennó: mémoires réfléchies. In Turbulences vídeo, número 50. Clermont-Ferrand (França), janeiro-março de 2006, p. 3-6. Tradução de Anne-Marie Davée.


        Rosângela, Comunidade sem nome

        Rosângela, Community without a name

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        Texts linked to the work Daily Mirror

          1.
          Espelho Diário é um trabalho integralmente desenvolvido sobre vídeo, suporte pouco recorrente na produção de Rosângela Rennó. A artista tem organizado desde 1987-1988 uma pesquisa com fotografia apropriada, a partir do seu uso nos mais diversos contextos históricos e sociais. A ênfase posta nas séries de fotografias, negativos ou arquivos incide, por isso, nos dispositivos de organização e apresentação da própria imagem, nas funções que a determinam e, no fundo, confinam a sua identidade. De certo modo é a determinação de um campo com pressupostos estabelecidos na organização social e consequentemente promotor dos usos da imagem, que retira a esta a sua mirífica especificidade visual tão procurada pelo modernismo. A fotografia, considerada pelo senso comum como transparência dada a priori dessa visualidade (estatuto puramente denotativo, se quisermos utilizar o termo estruturalista), revelou-se paradoxalmente um lugar preferencial de rebatimento dessa mesma opacidade simbólica, que determina os valores e o código da própria imagem. De certa forma era o que o Roland Barthes no seu ensaio A Mensagem Fotográfica afirmava já:

          “O paradoxo fotográfico será então a coexistência de duas mensagens, uma sem código (o aspecto analógico da fotografia), e outra codificada (que seria a “arte”, ou o tratamento, ou a “escrita”, ou a retórica da fotografia); estruturalmente o paradoxo não é evidentemente o conluio de uma mensagem denotada com uma mensagem conotada – esse é provavelmente o estatuto fatal de todas as comunicações de massa) – mas o fato da mensagem conotada (ou codificada) se desenvolver neste caso a partir de uma mensagem sem código. O paradoxo estrutural coincide com um paradoxo ético: quando se pretende ser “neutro, objetivo” (…) como pode a fotografia ser “objetiva” e “investida”, natural e culturalmente? É aprendendo o modo de imbricação da mensagem denotada e da mensagem conotada que talvez um dia se possa responder a esta questão.” (1)

          E de facto muitos artistas, sobretudo a partir da década de 1970, começaram a interrogar o estatuto da imagem fotográfica como um vestígio privilegiado para desenvolver um trabalho crítico sobre esse campo de pressões que organiza o código e lhe confere um valor ideológico aparentemente não declarado. Um trabalho de desconstrução destes procedimentos foi posto em marcha através de múltiplos procedimentos que possibilitaram isolar as unidades significantes ou os valores representados de forma a revelar como essa imbricação se processa e que mecanismos de ordem simbólica atuam.

          O trabalho de Rosângela Rennó inscreve-se nesta prática de uma forma absolutamente singular, levando-a a novas considerações jamais abordadas e de vasto alcance nas determinações da própria imagem. A sua estratégia para a fotografia torna-se por isso não só uma estrita análise da imbricação do código da imagem, enquanto pura analogia ou continuidade do real, mas sobretudo a da exposição das próprias regras de circulação e dos usos que estão associados as imagens e lhes determinam a identidade e a configuração visual. A apropriação de imagens torna-se um processo privilegiado para desenvolver essa análise, no entanto não são as imagens de grande circulação mediática, como as da publicidade ou do acontecimento político, que Rosângela Rennó elegeu para trabalhar. De resto toda uma geração anterior a sua, não só no Brasil como em muitos outros países, ocupou-se desse aspecto depois da Pop, rearticulando de forma crítica o campo deixado em aberto pelas primeiras experiências neste domínio. A escolha da artista recai sobretudo em álbuns de família, arquivos prisionais, obituários e outras tipologias da prática da fotografia organizada pelas instituições sociais de regulação, poder e coerção. O tratamento da imagem ao serviço de modelos identitários estritamente pré-definidos, os seus desvios e, sobretudo, a sua posterior reconsideração através da sua apresentação criticamente manipulada, em muito afasta a obra de Rosângela Rennó de um simples achado de estilo dentro do apropriacionismo para abrir um outro domínio de questões até então por explorar.

          Se o apropriacionismo desenvolveu estratégias para desvincular a dimensão cultural dos códigos sociais da natureza analógica da fotografia e com isso desmontar a manipulação dos enunciados ideológicos, o trabalho de Rosângela Rennó aborda diretamente o âmago das instituições produtoras e vigilantes dos mecanismos de identidade. Não se trata apenas de demonstrar a retórica do enunciado da imagem fotográfica, mas de apreender o seu entendimento forjado a partir das próprias instituições de coerção identitária. Importa realçar que não existe qualquer pretensão demonstrativa. A devolução das tipologias de imagem e dos mecanismos de sua organização por estas instâncias são integradas no seu trabalho, ainda que sejam submetidas a diversas operações, de forma a questionar os aspectos estruturais que configuram o entendimento e a identidade da imagem. Dir-se-ia que pode até existir uma opacificação ou a interposição de um véu acidental da memória, que inscreve o lugar de uma relação perdida. Um dos primeiros trabalhos da artista, Mulheres Iluminadas, 1988, apresentava uma vulgar fotografia a preto e branco de um álbum de família, com duas raparigas na praia de Copacabana do Rio de Janeiro, só que a fotografia foi manipulada quimicamente para realçar o uso, e a sombra do contraluz das figuras tornou-se contrastadas que as deixou irreconhecíveis. Podemos até saber tratar-se da artista ainda criança, mas o aspecto relevante é a opacificação da identidade numa fotografia característica deste instrumento de arquivo familiar, destinado a narrar o percurso de alguém através dos sítios. A fotografia de Rosângela Rennó passa assim a revelar a função que socialmente preenche ou como dizia Paulo Herkenhoff constitui uma episteme da fotografia (2). Em Obituário Transparente, 1991, os negativos de retratos individuais encontrados no arquivo de um estúdio fotográfico são dispostos numa grelha. O fato de se tratar de negativos cria uma impossibilidade de identificação individual que é reforçada pela acumulação do próprio arquivo. Obituário Preto, 1991, também utiliza negativos da mesma proveniência, só que sobre um fundo de veludo negro que os faz perder a visibilidade da sua representação e os torna opacos. Consciente do papel que o texto ou a legenda desempenham relativamente a imagem fotográfica, enquanto redundância funcional do seu sentido conotativo, experimentou em projetos da série Arquivo Universal, realizada a partir de 1992, substituir a imagem fotográfica por legendas ou notícias de jornais relacionadas com fotografias recentes, sendo que os nomes, lugares e datas foram eliminados destes textos, desvelando com isso a pretensa objetividade da natureza categorial que determina o arquivo, bem como o seu papel na desrealização identitária em função da classificação.

          A circulação e os usos tornam-se assim outras instâncias configuradoras da imagem e de seu entendimento, que são desenvolvidas na obra de Rosângela Rennó por uma estratégia de rearticulação capaz de instabilizar a perenidade de um sentido pretensamente fundador e revelar uma resistência a lógica instrumental do arquivo. Importa então compreender que entre o jogo das identidades configurado pela noção de arquivo e a devolução dos mecanismos que atuam forjando esse mesmo jogo se procede, nos trabalhos de artista, a uma desmontagem dos confinamentos que no curso da história definiram uma determinada identidade para omedium.

          A imagem fotográfica não é considerada como um absoluto em si, cujo o interior fosse imune ou vagamente impermeável a qualquer influência de forças alheias, mas antes como o resultado da introjecção de uma instância de controle e saber.

          A inexistência de uma interioridade pura, autofundada, no seio de um campo disciplinar foi uma questão amplamente debatida pelo pensamento pós-estruturalista, com implicações profundas nas práticas artísticas, e que demonstrou ser essa uma falácia metafísica, que de resto alimentou as vertentes mais essencialistas de grande parte do movimento moderno. Não existe assim interioridade oposta ao seu contexto, ela é constituída por uma projeção de algo aparentemente exterior, pelo que a identidade do próprio medium não se define a partir de si, mas é sempre diferida. Toda a problemática em torno da fotografia e da sua especificidade veio contribuir para a pertinência desta tese.

          Podemos assim compreender a pertinência de Rosângela Rennó na apropriação de retratos, sejam os de família, os de estúdio ou de prisões, procura desenvolver uma relação especular e de deriva da própria identidade do retratado e do medium. A fotografia entendida nesta sua função, facto que lhe conferiu um estatuto e utilidade social de ampla apropriação disciplinar, é um instrumento privilegiado para o agenciamento e classificação das identidades; por outro lado, o que a configura enquanto tal não se situa apenas na ordem dos seus procedimentos analógicos, mas na inscrição simbólica que lhe prescreve uma determinada configuração, ou seja, uma identidade. Apagar as identidades dos retratados, seja através do obscurecimento ou da censura do nome, permite devolver a fotografia a imagem da própria instância codificadora que assimila todas as diferenças e as subsume numa categoria comum. 

          O privilégio dado do arquivo, enquanto uso disciplinarmente confinado da fotografia, torna-se explícito.


          2.
          Rosângela Rennó diz que é uma colecionadora irreprimível e foi isso que fez com dezenas e dezenas de artigos publicados na imprensa diária brasileira a respeito de acontecimentos da mais variada ordem ocorridos com mulheres chamadas Rosângela. Durante anos reuniu esses artigos sobre mães, colunáveis, namoradas de políticos, mortas, sequestradas, delegadas, donas de casa, noivas, vizinhas, empresárias, leitoras, funcionárias, artistas, sem-abrigos, juradas e muitas outras que organizou por data de ocorrência, profissões e ocupações das mulheres, totalizando-as 133. Os artigos foram então rescritos em forma dramática como curtos monólogos interiores pela escritora Alícia Duarte Penna. Rosângela Rennó desempenhou o papel de atriz e registrou em vídeo a sua interpretação de todas essas Rosângelas, monologando nas mais variadas situações sobre acontecimentos das suas vidas. O trabalho, a que chamou Espelho Diário, numa irônica referência ao jornal britânico de fait-divers The Daily Mirror, consiste na projeção de dois vídeos sincronizados, tangentes um ao outro, lado a lado, formando um ângulo obtuso, mas perto dos 90º, de modo que uma projeção parece espelhar a outra. Este efeito é visualmente reforçado pela inserção da data a que se refere cada episódio na parte superior de cada projeção, sendo que a da esquerda aparece escrita de forma simétrica, em espelho. Não existe repetição simultânea e contínua de ações, mas uma interpelação que encadeia o discurso de uma mesma Rosângela com as suas hesitações, aparições ou mesmo momentos de suspensão, isto quando aparece duplicada a mesma mulher, porque há curtos momentos em que o duplo pode mesmo desaparecer. O som de cada projeção, dominantemente constituído pela voz, é destruído pelo respectivo lado da sala em função da projeção a que refere, gerando uma maior espacialização do diálogo. Os enquadramentos são diversos, mas mantêm a personagem no centro da imagem, ora aproximam-se até o close-up, ora recuam para o plano de corpo inteiro, são tirados em contre-plongée alguns, outros em plongée que obrigam a personagem a levantar a cara para se dirigir a câmera, sem deixar de referir que a dominante é frontal. A organização destes planos concentra-se numa retórica vizinha do retrato fotográfico. Todos estes planos são articulados por uma montagem que oscila entre os de longa duração e as sequências que aglutinam subitamente uma maior variedade de planos capazes de gerar ritmos fortes. Existe também, por vezes, o recurso a fixação do filme num determinado frame, que enfatiza uma suspensão dramática no quadro dialógico que ambas as projeções travam.

          No curso temporal da peça não existe nenhuma progressão ou ordem intencional específica dada pela sequência dos monólogos. As datas que estão inseridas nas imagens e que seguem a ordem do calendário pelo período de um ano dão a sequência mais abstrata e alheia a qualquer termo ou finalidade. A circularidade suposta pelo calendário e pelo título exclui por isso qualquer princípio ou fim, existe apenas uma sucessão de situações que escoam e se produzem no tempo assinalado.

          Uma grande diversidade de cenários e guarda-roupa, ainda que bastante simples, fornecem informantes explícitos sobre o meio social e profissional de cada mulher. As suas repetições no curso do vídeo podem levar a supor tratar-se de uma mesma mulher, num outro tempo, mas nada mais enganador quando ouvimos o seu discurso que tem outras referências vivenciais. Se existe um mesmo lugar na ordem social que gera a aparente semelhança, o relato do vivido é irredutível ainda a essa ordem.

          Rosângela Rennó filma assim um arquivo falante. Ao contrário de trabalhos como os já mencionados Obituários ou Arquivo Universal, em que os traços singulares dos retratados se dissolviam na semelhança imposta pela ordem que os indexou, as muitas Rosângelas assumem um papel discursivo sobre si mesmas, possibilitado pelo monólogo, revelador das contingências das suas vidas. Não se trata de reclamar uma identidade fundada numa mais-valia de expressão, normalmente tão reclamada pelos pressupostos humanistas, mas de inscrever o que é absolutamente casual e singular nas suas vidas apesar de qualquer ordem prévia que pretenda exercer o seu domínio categorial.


          3.
          A entrada da sala, em dois headphones, podemos ouvir um introito lido pela voz de Cid Moreira, um famoso locutor brasileiro, que aqui hiperboliza o tom do discurso como se apresentasse um espetáculo. O contínuo desacerto entre o plural de Rosângelas e o singular da personagem é enunciado: “Somente elas era umas: Rosângelas, este conjunto unitário, esta dízima periódica, este singular plural (…) pelejava para se ver no espelho, una, cabeça-tronco-membros, mas qual! Qual? Eram miríades! Seu espelho um caleidoscópio”. Existe assim uma apresentação deste arquivo que, sob a pantomima das inflexões da locução, desconstrói a ordem simbólica que se torna dominante e tende a subjugar todas as especificidades num significante despótico, como o demonstrou a artista com muitos outros trabalhos, para tentar enunciar um outro princípio que faz deste um arquivo-outro. No Epílogo, incluído neste livro, a classificação exaustiva de Rosângelas, tratadas como personagem plural, revela as próprias percentagens das suas ocorrências organizadas por ocupações profissionais ou outras e que não deixam de ser atributos caracterizadores. A questão está então na multiplicidade que recusa o múltiplo, submetido a divisibilidade da unidade. Como podemos ouvir no introito “não era um corpo e disfarces, não era uma alma e encarnações, não era um eu profundo e os outros eus; corpos, almas, eus era elas sós: Rosângelas.”


          4.
          A situação discursiva que apresenta cada Rosângela repete-se continuamente, com um grau de monotonia característico de um arquivo. A personagem não enuncia o seu discurso para um interlocutor presente na cena, nem como uma declaração supostamente fundada em si e que excluísse o destinatário ou muito menos destinada diretamente ao público, trata-se sempre de uma reflexão ou rememoração de acontecimentos vividos que forjam a própria enunciação e o sujeito, que assim se constitui através do diálogo que o monólogo encerra. Ora, o monólogo foi sempre entendido como discurso de um eu que guarda um silêncio revelador sobre o destinatário. Importa referir como, para Mikhail Bakhtine, um enunciado não existe como pura afirmação, ele é sempre réplica a outro, só existe dialogismo e o monólogo não é excepção, mas uma situação particular da condição dialógica. O destinador e o destinatário, bem como o enunciado, formam-se neste processo, não são instâncias determinadas previamente. Por isso o monólogo não supõe um sujeito constituído, mas em constituição. Para Bakhtine toda a comunicação é um processo gerado a dois sobre um terceiro, o que supõe uma posição diversa da que foi sustentada pela linguística estrutural, que entendeu o processo de comunicação de um modo instrumental. Segundo esse ponto de vista um sujeito emissor, dotado de uma mensagem previamente definida em relação ao próprio processo de comunicação, estaria aqui, no curso deste Espelho Diário, a enunciar consecutivamente proposições definidas por uma qualquer anterioridade necessariamente confinada a uma ordem simbólica.

          A estratégia de Rosângela Rennó é a de construir um arquivo-outro que possa escapar a essa pretensão. Por isso a personagem Rosângela é uma multiplicidade de sujeitos em constituição através dos muitos monólogos. Algo mais próximo do entendimento de Bakhtine. Uma vez que estas locutoras assumem diversas posições no campo das relações de produção linguística “a variação é a resposta ao condicionamento simbólico exercido pela relação de produção. (…) O que se diz é um compromisso (como o sonho) entre o que se queria dizer e o que se pode dizer, compromisso que depende, evidentemente, do que o locutor tem a dizer, das suas capacidades de produção, de apreciação da situação e de eufemização, e também da posição que ocupa na estrutura do campo em que se exprime” dizia Pierre Bourdieu (3).

          Os lugares que as mulheres ocupam nesta ordem de relações da sociedade brasileira é também um aspecto a considerar com todas as outras diferenças. Se como vimos a coincidência forma-se em discurso, ela é um fato objetivo e, consequentemente, uma força social. Segundo Eduardo Prado Coelho este aspecto leva Bakhtine a designar “a expressão exterior e interior, desgarrada, desordenada, fluida, caótica, não-sistemática, que acompanha os mais insignificantes atos do nosso dia a dia como a ideologia do cotidiano” (4). Por isso, qualquer obra só permanece atuante se o seu discurso entrar em relação com o discurso da ideologia do cotidiano de um determinado momento histórico. O que salva a obra de se tornar um monumento embalsamado, parte de um arquivo.

          Se estas mulheres formam um arquivo falante constituído por monólogos, esta tipologia do discurso, que é sempre dialógica como vimos através de Bakhtine, revela uma divisão no campo do sujeito, não o apresentando definitivamente constituído, mas em processo. Também aqui o paralelo com a interpretação que Jacques Lacan dá das forças de constituição do sujeito é significativo e pertinente se quisermos perceber como nos jogos de inscrição das identidades Rosângela Rennó define uma estratégia não pressuposta, afastada de qualquer reinvindicação identitária, formada por singularidades.

          Para Lacan o acesso do sujeito a uma ordem simbólica faz-se pela linguagem, ultrapassando a relação especular eu-outro da ordem do imaginário. O simbólico devolve as estruturas sociais reguladoras e constrói a identidade do sujeito assumida na face do imaginário. Considerando este quadro de forças, o sujeito existe assim fora de si mesmo num exterior ao seu imaginário. Se por um lado é efeito do discurso, por outro diz mais do que aquilo que tem consciência de dizer, porque existe um saber que ultrapassa aquilo que ele de si pode saber, o saber de uma ordem prévia, do simbólico, que faz a determinação significante. Mas também porque existe uma impossibilidade de que o todo se diga, existe um real que sobra. Este real resiste enquanto objeto parcial ou resto a apropriação do simbólico e torna-se causa do desejo que promove a sua emergência no interior do próprio simbólico. Do real só podemos falar, como já vimos, desse fluxo de fragmentos desordenados, passíveis de organização pela ideologia do cotidiano sob o nome de realidade. É então dos fragmentos das suas vidas e da emergência desses restos do real resistindo a realidade, não dominados pelo simbólico, mas em conflito, que as Rosângelas falam. É aí que se joga a possibilidade de um discurso não submetido a condição de pertença de um arquivo da ideologia do cotidiano.

          Estas mulheres não são uma reiteração sintomática de um conjunto de atributos reportáveis aos efeitos de uma realidade. As singularidades que constituem, resistem a uma identidade coletiva ou ligação de pertença e excluem uma representação dessa condição. No entanto, a questão não é também a da relevância específica de cada singularidade em si. A sua inclusão num conjunto, que enquanto tal recusa uma identidade – a função simbólica que o arquivo está destinado a exercer –, torna-se a verdadeira ameaça para esta instância. Como dizia Giorgio Agamben: “a singularidade qualquer, que quer apropriar-se da própria pertença, do seu próprio ser-na-linguagem, e declina, por isso, toda a identidade e toda a condição de pertença, é o principal inimigo do Estado.” (5)

          Que o arquivo reúna estas singularidades e não preencha uma ordem simbólica é a possibilidade de um arquivo-outro que Rosângela Rennó experimenta com este Espelho Diário.


          5.
          De facto a utilização de vídeo é quase inédita no trabalho da artista. Rosângela Rennó realizou previamente um trabalho em vídeo intitulado Veracruz, em 2002. Aí a imagem não é convencionalmente registrada a partir da gravação com uma câmera de vídeo, mas a da telecinagem da película cinematográfica em branco, vazia, mostrando apenas os arranhões e ataques de fungos a qual se sobrepõe os diálogos, inspirados na Carta de Pêro Vaz de Caminha, dos navegadores portugueses que chegaram pela primeira vez ao Brasil.

          Como aconteceu com a fotografia, a consideração da história das práticas e condições de representação do vídeo não esteve ausente. No trabalho de Rosângela Rennó a presença do medium é profundamente questionada e desconstruída nos pressupostos dos seus usos, que podem assim revelar as instâncias em que um saber se configura como um poder de regulação. A sua consciência crítica suscita uma rearticulação que possibilita uma alteridade liberta dos anteriores constrangimentos. É nesse sentido que a utilização dada ao vídeo em Espelho Diário vem inscrever uma diferença relativa as manipulações dos arquivos da sérieArquivo Universal, tendentes a revelar os seus próprios processos instrumentais. A constituição de um arquivo de Rosângela através de uma ordem inessencial, sem representação da condição de pertença, mas apenas pela pertença, torna-se possível pela rearticulação crítica das práticas do próprio medium.

          O aparecimento do vídeo no domínio artístico comportou variadas formas de abordagem que revelaram também profundas diferenças nas respectivas pesquisas e considerações sobre a sua especificidade e autonomia. Entre a sua utilização como registro de eventos performativos ou como contraposição a televisão, gerador de um espaço subjetivo e permeável a intimidade introspectiva, várias foram as acepções, tornando-se esta última dominante. Assim o vídeo foi entendido como espelho de um confessionário em que o artista constrói imagens do eu. Segundo Raymond Bellour, que analisou este entendimento (6), o vídeo não criou uma autobiografia no sentido tradicional das várias narrativas históricas do gênero, como o faziam supor as várias possibilidades narrativas que oferece, mas aproximou-se do autorretrato, produzindo uma imagem do eu. Se a metáfora do vídeo é o espelho, não foi a tradição romântica subjetivista que as suas realizações se articularam, mas com o entendimento lacaniano, ou seja, com a questão do narcisismo. O eu que se projeta é uma construção da imagem que se estende na articulação da ordem do imaginário com o simbólico. Que esta prática possa ter vindo a revelar-se constrangedora de um desejo pela experiência do quotidiano e, por outro lado, tangente a um certo autismo, comprova-o a crescente quantidade de trabalhos mais recentemente realizados que apropriam com diversos sentidos os seus gêneros tradicional e erradamente considerados mais instrumentais, como os documentários e filmes de arquivo.

          Consciente desta objecção Rosângela Rennó apropriou a ideia de vídeo como confessionário e confrontou-a com uma outra atitude histórica diferente relativa a este medium e que consistiu no registro de uma vasta série de ações performativas que ela própria se propôs desempenhar. O vasto somatório destas ações, que implicam a construção de uma imagem após a outra, faz transbordar qualquer pretensão a construção de um mapa do subjetivismo do sujeito em que a estética narcísica do vídeo se havia confinado. A repetição tem aqui um papel relevante pois que faz escoar a diferença de retrato para retrato e devolve as vozes as singularidades que compõem o arquivo.

          Por outro lado, as modalidades do documentário mais instrumentais são aquelas onde se torna particularmente notório o conflito e a imbricação entre uma ordem codificadora e a mensagem denotativa da imagem de que falava Roland Barthes. A apropriação da tipologia do inquérito sociológico permite devolver uma exterioridade a pretensão narcísica de cada retrato, no entanto cada retrato revela na construção especular do eu a relação com o quotidiano, essa emergência com o real que resiste ao simbólico, suposto pela modalidade disciplinar codificadora. Os restos desse real quotidiano e o conflito que geram com as ficções das identidades abrem uma exterioridade a que as mulheres aludem continuamente nos seus discursos, capaz de desbloquear a oscilação narcísica entre o simbólico e o imaginário e de refutar a codificação disciplinar.

          A estratégia de rearticulação desenvolvida por Rosângela Rennó aceita as diversas acepções, tomadas ou não obsoletas relativamente ao próprio medium, e suas modalidades para lhes devolver uma possibilidade crítica ativa, e de confrontar a ideologia do quotidiano.


              1.    Roland Barthes – “Le Message Photographique” in L’Obvie et l’Obtus. Paris: Éditions du Seuil, 1982, p.13. O texto citado data de 1961 e foi publicado na revista Communications, o que demonstra a pertinência e antecipação com que o autor levantou uma problemática tão recorrente das práticas artísticas contemporâneas e que seria por estas profundamente desenvolvida. Traduzido do francês pelo autor.
              2.    Paulo Herkenhoff no seu ensaio “Rennó ou a Beleza e o Dulçor do Presente” in Rosângela Rennó. S. Paulo: Edusp, 1998, refere-se a um subtexto que corre a obra da artista e consiste no retrato crítico da fotografia, revelação da fotografia.
              3.    Citado por Eduardo Prado Coelho – Os Universos da Crítica. Lisboa: Edições 70, 1982, p.450.
              4.    Op. Cit., Ibidem
              5.    Giorgio Agamben - A comunidade que vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993, p.68. 
              6.    Raymond Bellour, Autoportraits, in “Comunications, n. 48, 1988.


          LAPA, Pedro. Rosângela, Comunidade sem nome. In Rosângela Rennó: Espelho diário. Lisboa [Lisbon]: Museu do Chiado, 2002, p.7-35.
          1.
          Daily Mirror is a work entirely elaborated using video, a medium not much resorted to in Rosângela Rennó’s production. Since 1997/1998, the artist has been conducting research with appropriated photography, based on its use in the most historical and social contexts. The emphasis placed on the series of photographs, negatives or archives thus falls on the organizational and representational devices of the image itself and on the functions which determine it, and which basically confine its identity. In a way, it is the determining of a field with presuppositions established in the social organization and, as a consequence, promoter of the uses of the image, which subtracts from it its illusory visual specificity so sought after Modernism. The photograph, commonly considered as a transparency given a priori of that visuality (a purely denotative statute, if we wish to apply the structuralist term), has, paradoxically, revealed itself as a preferential place of refutation of that same symbolic opacity that determines the values and the code of the image itself. In a way it was that which Roland Barthes had already stated in his essay “the photographic Message”:

          “The photographic paradox will then be the coexistence of two messages, one without a code (the analogical aspect of the photograph), and the other codified ( which would be the “art”, or the treatment, or the “writing”, or the rhetoric of the photograph); structurally the paradox is evidently not the collusion of a denotative message with a connotative one (that is probably the fatal statue of all mass communications), but the fact that the connotative (or codified) message evolves, in this case, from a message without a code. The structural paradox coincides with an ethical one: when intending to be “neutral, objective” (…) how can photography be naturally and culturally “objective” and “endowed”? it is by understanding the way by which the denotative and the connotative messages overlap, that perhaps, one day, it might be possible to answer this question.” (1) 

          Many artists, mainly from the 1970s onwards, did in fact begin questioning the statute of the photographic image as a privileged trace for developing a critical work on that pressure field which organizes the code, and confers it an apparently undeclared ideological value. A task of deconstructing these procedures was put into practice through multiple issues which enabled the isolation of the significant units or the represented values, so as to reveal how that imbrication is processed and which mechanisms of the symbolic order act.

          Rosângela Rennó’s work is inscribed in this practice in an absolutely unique way, taking her to new considerations never before approached and of vast range in the determinations of the image itself. Her photographic strategy therefore becomes not only a strict analysis of the code in the image, as pure analogy or continuity of the real, but above all of the exposure of the very rules of circulation and of the uses that are associated with the images and that their identity and visual configuration. The appropriation of images becomes a privileged process for elaborating that analysis, however, it is not with considerable circulation mediatic images, such as those of advertising or politics, that Rosângela Rennó has chosen to work with. In any case, a whole generation before hers, not only in Brazil, but also in many other countries, took up this aspect after Pop, rearticulating in a critical way the field left open by the first experiments in this sphere. The artist’s choice falls mainly upon family photo albums, prison archives, obituaries and other categories of the practice of photography organized by the social institutions of regulation, power and coercion. The treatment of the image at the service of strictly pre-defined identification models, its deviations and above all, its later consideration through critically manipulated presentation, greatly distances Rosângela Rennó’s work from being a mere discovery of style within Appropriationism, to open up another sphere of, up until then, unexplored matters.


          If Appropriationism has developed strategies to separate the cultural dimension of the social codes from the analogical nature of photography, and with that dismantle the manipulation of the ideological enunciations, Rosângela Rennó’s work approaches the core of the productive and watchful institutions of identity mechanisms directly. It’s not only about deconstructing the rhetoric of the photographic image statement, but also of perceiving its understanding forged by the identity coercion institutions themselves. It is important to stress that no demonstrative pretension exists. The restitution of the different kind of images and the mechanisms of its organization are, by these means, integrated in her work, even if they are submitted to various interventions in a way as to question the structural aspects that shape the understanding and the identity of the image. It could be said that there may even exist an opacification or the interposition of an accidental veil of the memory, which records the place of a lost relation. One of the artist’s first works, Mulheres Iluminadas (Illuminated Women), 1988, showed a common black and white photograph from a family album, with two girls on Copacabana Beach in Rio de Janeiro, but the photograph chemically treated in order to accentuate the usage, and the backlit figures have been rendered unrecognizable by such contrasting shade. We may even know that it depicts the artist as a child, but the relevant aspect is the opacification of the identity in a photograph typical of this kind of family archive, meant to narrate someone’s progress from place to place. Rosângela Rennó’s photography thus begins to reveal the function which it socially fulfils or, as Paulo Herkenhoff put it, it constitutes an episteme of photography (2). In Obtuário Transparente (Transparent Obituary), 1991, the negatives of individual portraits found in the archives of a photographic studio are placed on a grid. The fact that they are negatives renders individual identification impossible which is reinforced by the accumulation of the archive itself. Obituário Preto (Black Obituary), 1991, also uses negatives from the same source, only these are displayed on a black velvet setting which causes them to lose the visibility of their representation and renders them opaque. Aware of the role that the text or the caption plays in relation to the photographic image as functional redundancy of its connotative meaning, she tried, in projects of the Arquivo Universal (Universal Archive) series, worked from 1992 on, to replace the photographic image by captions or newspaper reports related to absent photographs. Names, places and dates have been eliminated from these texts, thus unveiling the alleged objectivity of the categorical nature that determines the archive, as well as its role in the suppression of the fulfilment of the identity in function of the classification. 

          The circulation and usage become, therefore, other configurating insistences of the image and its understanding, which are developed in Rosângela Rennó’s work by a strategy of re-articulation capable of destabilizing the perpetuity of an allegedly founding sense and reveal a resistance to the instrumental logic of the archive. It is thus important to understand that between the game of identities configured by the notion of archive, and the restitution of the mechanisms which act by forging that same game, the artist’s works proceed to dismantle the confinements which in the course of history have defined a precise identity for the medium.

          The photographic image is not considered as an absolute in itself, the interior of which would be immune or vaguely permeable to any outside influence, but rather as the result of the introjection of an instance of control and knowledge.

          The absence of a pure, self-founded interiority at the heart of a disciplinary field was an issue greatly debated by post-structuralist thought, with profound effects on artistic practices, which demonstrated it to be a metaphysical fallacy that happened to nourish the most essentialist facets of most of the Modern movement. Thus, there is no interiority opposed to its context, it being made up of a projection of something apparently exterior, by which the identity of the medium itself is not defined from within but always from without. All the problematic issues raised around photography and its specificity were to contribute to the pertinence of this theory. 


          We can therefore understand that Rosângela Rennó’s persistence in the appropriation of portraits, whether they be from family, studios or prisons, aims at developing a specular relation and defectiveness of the very identity of the portrayed person and the medium. The photograph acknowledges in this own function, fact which conferred it a statute and a social utility of wide disciplinary appropriation, is a favored instrument for the arrangement and classification of the identities; on the other hand, that which configures it in such a way is not only present in the order of its analogical procedures but also in the symbolic inscription that prescribes a precise configuration, i.e., an identity. To erase the identity of those portrayed, whether by darkening or by censuring the name, allows to restore to the photograph the image of the very codifying instance which assimilates all the differences and submits them to one common category. 

          The privilege granted to the archive, as a confined disciplinary use of photography, becomes explicit.


          2.
          Rosângela Rennó says that she is an irrepressible collector, and that was what she did with dozens and dozens of articles published in the Brazilian daily press concerning events of the most varied nature which occurred with women named Rosângela. For years she gathered those articles about mothers, celebrities, politician’s girlfriend, dead women, kidnapped women, deputies, housewives, brides, neighbors, businesswomen, lecturers, workers, artists, homeless women, jurors and many others which she organized by dates of occurrence, professions and occupations of these women, 133 in all. The articles were then rewritten in dramatic form as short inner monologues by the writer Alícia Duarte Penna. Rosângela Rennó then took on the part of actress and videotaped her interpretation of all those Rosângelas, soliloquizing in the most varied situations on events of their lives. This work, which she called Espelho Diário (Daily Mirror), in an ironic reference to the British tabloid newspaper The Daily Mirror, consists of the projection of two synchronized videos, on a tangent to one another, side by side, forming an obtuse angle, but close to 90, so that one projection seems to mirror the other. This effect is visually reinforced by the insertion of the date which each episode refers to on the upper part of each projection, the one on the left appearing written in a symmetrical manner, mirrored. There is no continuous a simultaneous of actions, but an interpellation that links up the speech of the one and the same Rosângela with her hesitations, aspirations or even moments of suspension. This when the same woman appears in duplicate, because there are brief moments in which the double can even disappear. The sound of each projection, predominantly consisting of the voice, is broadcast throughout the side of the room in relation to the projection to which it refers, enlarging the spatial dimension of the dialogue. The framings are varied but maintain the character in the center of the image, either closing in to a close-up, or backing away to a full shot, some are taken in low angle shots, others in high angle shots which oblige the character to tilt her face up to address the camera, but nothing that they are predominantly frontal. The organization of these shots is concentrated in a rhetoric close to that of the photographic portrait. All these shots are interlinked by an editing that oscillates between those that last a long time and sequences which all of a sudden agglutinate a greater variety of shots capable of creating strong rhythms. At times there is also recourse to fixing the film in a certain frame, which accentuates a dramatic suspension in the dialogical framework carried out by both projections.

          Throughout the course of the piece there is no temporal progression or specific intentional order given through the sequence of monologues. The dates inserted on the images, which follow the order of the calendar for the period of a year, create a more abstract sequence unrelated to any time limit or purpose whatsoever. The circularity implied by the calendar and by the title excludes therefore any beginning or end, there being only a succession of specific situation that flow and are produced in the time allotted.

          A great variety of scenarios and wardrobe, albeit quite simple, provide explicit clues as to the social and professional background of each woman. Her repetitions throughout the video may lead you to think that it is the very same woman, at another time, but nothing could be more erroneous, for when one hears her discourse, it has different life-style references. If a same place in the social order that creates the apparent similarity exists, the narration of what has been lived cannot be reduced to that order.

          Rosângela Rennó thus films a talking archive. Contrary to works such as the afore mentioned Obituários (Obituaries) or Arquivo Universal (Universal Archive), in which the unique trace of the portrayed dissolved themselves in the similarity imposed by the order that indexed them, the many Rosângelas, enabled by the monologue, assume a discursive role about themselves revealing of the contingencies of their lives. It is not about demanding an identity based on an added value of expression, normally so claimed by the humanists’ presuppositions, but inscribing what is absolutely casual and singular in their lives in spite of any previous order that intends to exert its categorical control.


          3.
          At the entrance of the room, on two sets of headphones, we can listen to an Introit read by Cid Moreira, a famous Brazilian announcer, who hypes up the discourse as if he were presenting a show. The continual contrast between the plural of Rosângelas and the singular of the character is expressed: “Only they was some: Rosângelas, that unitary conjunct, that periodic tithe, that singular plural. Once her desire was above all to become conscious of her own existence, Rosângelas strove to see herself in the mirror, one, head-torso-limbs, but which! Which one? They were myriad! Her mirror a kaleidoscope”. There exists therefore a presentation of this archive that, by means of the pantomime of his speech inflections, deconstructs the symbolic order which becomes predominant and tends to subjugate all the specificities into one despotic signifier, as the artist has demonstrated with many other works, in order to try and articulate another principle which makes this an other-archive. In the Epilogue, included at this book, an exhaustive classification of the Rosângelas, treated as plural character, discloses the very percentages of their experiences organized by professional or other occupations and that do not cease to be characterizing attributes. The question is then in the multiplicity which refuses the multiple, subjected to the divisibility of the unit. 

          As we can hear in the Introit: “Not one body and various masks, not one soul and various incarnations, not one profound ‘I’ and other ‘I’s; the bodies, souls, ‘I’s was they herselves: Rosângelas.”


          4.
          The discursive situation that introduces each Rosângela is continually repeated, with a degree of monotony characteristic of an archive. The character neither recites for an interlocutor present at the scene, nor as a supposedly self-founded statement and which would exclude the receiver or, even less, directly destined for the audience. It is always a reflection or a recollection of experienced events which shape the very articulation and the subject that is thus formed through the dialogue which the monologue encloses. Now, the monologue has always been perceived as a discourse of a self which harbors a revealing silence about the receiver. It is important to notice that, according to Mikhail Bakhtin, the statement does not exist as pure affirmation, it is always a retort to another, there is only dialogism and the monologue is not an exception but a particular situation of the dialogic condition. The sender and the receiver, as well as the statement, are formed in this process, they are not previously determined parameters. Thus, the monologue does not postulate a constituted subject but one being constituted. To Bakhtin all communication is a process produced by two about a third, which implies a different position to that upheld by structural Linguistics, that perceived the process of communication in an instrumental manner. According to that viewpoint a sender, endowed with a message previously defined in relation to the process of communication itself, here would be, in the course of this Daily Mirror, consecutively articulating propositions defined by some sort of anteriority essentially confined to a symbolic order.

          Rosângela Rennó’s strategy is that of constructing an other-archive that can escape this presumption. The Rosângela character is, therefore, a multiplicity of subjects in formation through the many monologues. Something somewhat closer to Bakhtin’s understanding. Once these speakers assume different stands in the field of the relations of linguistic production, “the variation is the answer to the symbolic conditioning carried out by the relation of production. (…) What is said is a compromise (like the dream) between what one would like to say and what one can say, a compromise which obviously depends on what the speaker has to say, of his capacities of production, of appreciation of the situation and of euphemisation, and also of the position he occupies in the structure of the field in which he expresses himself”, said Pierre Bourdieu (3).

          The positions occupied by the women in this order of relations in Brazilian society is also an aspect to be taken into consideration along with all the other differences. If, as we have seen, conscience is formed in discourse, it is an objective fact and, consequently, a social force. According to Eduardo Prado Coelho, this aspect leads Bakhtin to designate “the rambling, disorderly, flowing, chaotic, non-systematic inner and outer expression which accompanies the most insignificant day-to-day acts as the Quotidian Ideology” (4). Therefore, any work remains operative if its discourse relates to the Quotidian Ideology discourse of a given historical moment. This prevents the work from becoming an embalmed monument, part of an archive.


          If these women form a talking archive made up of monologues, this classification of the discourse, which is always dialogical as we have seen through Bakhtin, reveals a division in the subject’s field, not presenting it as definitely constituted but in the process thereof. The parallel with the interpretation that Jacques Lacan gives to the subject’s constituting forces is also significant and pertinent here, if we wish to understand how in the identity inscribing games Rosângela Rennó defines an unpresupposed strategy, far from any claiming of identity, made up of singularities.

          According to Lacan the subject’s access to a symbolic order is made through language, surpassing the specular relation I-other of the order of the realm of the imaginary. The symbolic returns the regulating social structures and builds the identity the subject takes on in imaginary phase.  Taking this framework or forces into consideration, the subject thus exists outside itself in an exterior to its realm of the imaginary. If on one hand it is an effect of the discourse, on the other, it says more than that of which it can know about itself, the knowledge of a previous order, of the symbolic, that makes the significant determination. But also, because there is an impossibility that the whole be said, there is a real that is surplus. This real resists, as a partial or a residual object, the appropriation of the symbolic and becomes the cause of the desire which promotes its emergence in the interior of the symbolic itself. Of the real, as we have already seen, we can only talk of that flow of disorderly fragments, susceptible to organization by the Quotidian Ideology under the name of reality. It is therefore of the fragments of their lives and of the emergence of those remains of the real resisting reality, not dominated by the symbolic but in conflict, that the Rosângelas talk. It is there that the possibility of a discourse not submitted to the condition of belonging to a Quotidian Ideology archive, comes into play.

          These women are not a symptomatic reiteration of a set of attributes ascribable to the effects of a reality. The singularities which they constitute resist a collective identity or a belonging and exclude a representation of that condition. However, the question is not equally the one of specific relevance of each singularity in itself. Its inclusion in a set, which as such refuses an identity – the symbolic function which the archive is destined to exert – becomes the real threat to this situation. As Giorgio Agamben put it: “any singularity, which wants to appropriate its own belonging, its own being-in-the-language, and declines, therefore, all the identity and all the condition of belonging, is the main enemy of the State.” (5)

          The fact that the archive gathers and consists of these singularities and does not accomplish a symbolic order, is the possibility of an other-archive which Rosângela Rennó experiments with this Daily Mirror.


          5.
          In fact, the recourse to video is quite rare in the artist’s work. She previously directed a video project entitled Veracruz, in the year 2000. in it the image is not conventionally registered through filming with a video camera, but by that of telecine of the cinematographic film in blank, empty, showing only the scratches and mold stains to which have been superimposed the dialogues, inspired by the Carta de Pero Vaz de Caminha (6), of the Portuguese navigators who reached Brazil for the first time.

          As had happened with photography, the consideration of the history of the practices and representation conditions of video was not absent. In the work of Rosângela Rennó the presence of the medium is extensively questioned and deconstructed in the presuppositions of its uses, that can thus, reveal the situations in which a knowledge is configured as a regulatory power. Her critical conscience gives rise to a re-articulation that allows an alterity free from prior constraints. It is in the sense that the use given to video in Daily Mirror establishes a difference in relation to the manipulations of the archives of the Arquivo Universalseries, which tended to reveal their own instrumental processes. The creation of an archive of Rosângelas through a non-essential order, without representation of the condition of belonging, but only by belonging, becomes possible through the critical re-articulation of the practices of the medium. 

          The emergence of video in the artistic domain brought whit a variety of forms of approach which also revealed profound differences concerning the respective research and considerations about its specificity and autonomy. From its use as a register of performing events or as a contraposition to the television, generator of a subjective space permeable to introspective intimacy, there were several significances, the last of which becoming predominant. Thus, video was perceived as a mirror of a confessional in which the artist creates images of the self. According to Raymond Bellour, who analyzed this perception (7), video did not create an autobiographic form in the traditional sense of the various historical narratives of the kind, as the narrative possibilities it offers would lead to suppose, but converged toward the self-portrait, creating an image of the self. If the metaphor for video is the mirror, it was not with the subjectivist Romantic tradition that its accomplishments were articulated, but through a Lacanian understanding, that is, the issue of the narcissism. The self that is projected is a creation of the image which expands in the articulation of the order of the imaginary with the symbolic. That this practice might have revealed itself constraining to a yearning for the experience of everyday life and, on the other hand, tangent to a certain autism, is proved by the growing number of works recently produced that appropriate with various meanings, its traditional, and erroneously considered, more instrumental genres such as documentaries and archival films. 

          Aware of this objection, Rosângela Rennó appropriated the idea of video as a confessional and confronted it with another different historical attitude relative to this medium, and which consisted of the registering of a vast series of performative actions which she herself proposed to act out. The vast sum of these actions, which imply the construction of one image after another, limits any pretension to the mapping of the subject’s subjectivism in which the narcissistic aesthetics of video had confined itself. Repetition carries out here an important role for it drains off the difference from portrait to portrait and restitutes the voices to the singularities that make up the archive. 

          On the other hand, the more instrumental modalities of the documentary are those where the conflict and the imbrication between a codifying order and the denotative message of the image, of which Roland Barthes spoke, becomes particularly evident. The appropriation of the categorization of the sociological inquiry allows to restore an exteriority to the narcissistic pretension of each portrait. Nevertheless, each portrait manifests in the specular construction of the self the relation with everyday life, that emergence of the real which resists the symbolic, assumed by the codifying disciplinary modality. The remainder of that everyday real and the conflict they generate with the fiction of the identities, opens up an exteriority to which the women endlessly allude to in their discourses, capable of unblocking the narcissistic oscillation between the symbolic and the imaginary and of refuting the disciplinary codification.

          The strategy of rearticulation elaborated by Rosângela Rennó accepts the various significances, which have not become obsolete in relation to the medium itself and their modalities in order to restore them an active critical possibility, that of confronting the quotidian ideology.


              1.    Roland Barthes – “Le Message photographique” (The Photographic Message) in L’Obvie et l’Obtus. Paris: Éditions du Seuil, 1982, p.13. The quoted text dates from 1961 and was published in the magazine Communications, and demonstrates the pertinence and the anticipation with which the author raised a set of problematic issues, so recurrent in contemporary artistic practices, and which would be extensively developed by them. Translated into English from Pedro Lapa’s translation from the original French version.
              2.    Paulo Herkenhoff in his essay “Rennó ou a Beleza e o Dulçor do Presente” (Rennó or the Beauty and the Sweetness of the Present), in Rosângela Rennó. S. Paulo: Edusp, 1998, refers to a subtext which runs through the artist’s work and consists of the critical portrait of photography, photographic revelation.
              3.    Quoted by Eduardo Prado Coelho, Os Universos da Crítica. Lisboa: Edições 70, 1982, p.450.
              4.    Op. Cit., ibidem
              5.    Giorgio Agamben – A Comunidade que Vem. (Portuguese translation) Lisboa, Editorial Presença, 1993, p.68.
              6.    Translator’s note: Report written by Pero Vaz de Caminha to the King D. Manuel of Portugal announcing the discovery of Brazil in 1500 A.D., in which he fully describes the land, its inhabitants, its fauna and flora. It’s generally considered the birth certificate of Brazil. 
              7.    Raymond Bellour, Autoportraits, in “Communications”, # 48, 1988.


          LAPA, Pedro. Rosângela, Community without a name. In Rosângela Rennó: Espelho diário. Lisboa [Lisbon]: Museu do Chiado, 2002, p.7-35.


          Rosângela Rennó: o artista como narrador

          Rosângela Rennó: the artist as narrator

          Textos relacionados ao trabalho


          Texts linked to the work Daily Mirror

            Com uma obra voltada para as relações de intertextualidade entre a fotografia, o texto, o vídeo e o cinema, Rosângela Rennó aplica sobre textos o mesmo sistema de trabalho que opera sobre imagens. Ao manipular uma fotografia, retira-lhe o contraste ou altera-lhe a cor, de modo a criar uma opacidade que dificulte sua legibilidade. Nos trabalhos com textos jornalísticos, incide cortes, eliminando referências geográficas, temporais e identitárias. Molda-os de acordo com o interesse de torná-los aptos a representar não apenas um acontecimento, ou um personagem, mas qualquer um. 

            Seu Arquivo universal, assim como o vídeo Espelho diário e outros trabalhos que exploram narrativas, são inventários de documentos apagados e reescritos. Ao reduzir a condição “jornalística” do texto, a artista proporciona-lhe uma abertura narrativa que o aproxima da ficção. A alteridade verificada pela obra de Rosângela Rennó é, portanto, uma coletividade anônima, sem identidade precisa. Suas operações de redução transformam imagem e texto em espaços brancos, potencialmente preenchidos pelo espectador. O que era notícia de jornal torna-se espelho. “Para mim, os brancos e as amnésias são mais interessantes que a memória”, diz ela. 

            (…)

            Assim como a fotografia brasileira contemporânea esgotou sua função de captar a alma e desvendar a identidade do brasileiro, o cinema documental, em crise, ou pós-crise, também procura se afastar dos tipos brasileiros paradigmáticos da sociologia ¬– o camponês, o favelado, o índio, o seringueiro, o operário ¬–, mirando uma ampliação de seu espectro de identidades. O vídeo Espelho diário (2001), em que a artista Rosângela Rennó interpreta os papéis de dezenas de mulheres de nome Rosângela, introduz ao rol de arquétipos identitários brasileiros tipos correntes e nada óbvios, agregando frescor e perplexidade a um campo minado por previsibilidades. Entre elas, a policial loura burra, a Pombagira, a presa, a retirante, a assassinada, a mãe solteira favelada, a mãe de 33 filhos, a mulher bem-amada, a noiva, a menina abusada, a dona de casa classe média, a perua e – uma das categorias mais exploradas pelos meios de comunicação – a vítima de morte violenta. 

            Por outro lado, Espelho diário faz parte de um grupo de trabalhos de Rosângela Rennó que exploram as narrativas. De volta a O narrador, noto, na vasta coleção de textos dos trabalhos da série Arquivo universal, uma tensão permanente entre o que Benjamin discriminou como “narrativo” e como “informativo”. Mesmo que extraídos de notícias de jornal, os textos interpretados ou reproduzidos por Rennó ganham uma aura levemente fantasiosa, que os aproxima do texto “narrativo” descrito por Benjamin: “O leitor é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”. 

            O trabalho faz referência ao tabloide britânico Daily Mirror, mas, ao operar um deslocamento do texto de sua esfera original de notícia jornalística, Rosângela incide contra o espelho. “Por outro lado, não é verdade que toda notícia de jornal diz respeito a nós?”, pergunta uma das Rosângelas, em declarado confronto ao espelho que separa as dimensões do pessoal e do social, do íntimo e do público, do eu e do outro. 

            (…)

            Há uma sentença que se repete quando se fala em Rosângela Rennó: “A fotógrafa que não fotografa”. Mas não foi, e nem é, sempre assim. A artista passou a ser reconhecida dessa forma a partir do momento em que decidiu deixar de fotografar, substituindo o ato fotográfico pela apropriação de imagens já existentes. Isso foi em meados da década de 1980, quando ainda vivia em Belo Horizonte e começou a trabalhar com imagens encontradas em álbuns de retratos. Esse primeiro impulso arqueológico deu origem à série Pequena ecologia da imagem, quando seu olhar voltou-se para imagens de pouca definição e legibilidade, com figuras obscurecidas, veladas, fora de foco, ou apenas sugeridas. Mulheres iluminadas (1988) e A mulher que perdeu a memória (1988), entre outras imagens, prenunciam a investigação que Rosângela Rennó empreenderia ao longo das décadas seguintes sobre a memória, a identidade e seus apagamentos.

            Até hoje, Rosângela se reconhece muito econômica quando fotografa e diz que documenta apenas o que acha que vale a pena guardar, “quase sempre as marcas da presença humana no mundo”. Em vez de fotografar, colecionar. O interesse pelas imagens descartadas e o hábito de colecionar (álbuns, fotos, textos etc.) foram decisivos para a formação de suas estratégias de trabalho. Os primeiros grandes “achados” datam de 1988, quando, ao começar uma pós-graduação em cinema, na Escola de Comunicações e Artes da USP, desenvolve uma série de fotografias a partir de fotogramas jogados nos lixos próximos às salas de montagem. Pouco depois, ao mudar-se para o Rio de Janeiro, começaria a vasculhar os antigos estúdios de retratos 3x4 do centro da cidade, recuperando arquivos mortos de negativos e cópias esquecidas. 

            A coleção detonaria uma contundente reflexão acerca do valor social e do poder simbólico da fotografia, expressos em trabalhos instalativos como Duas lições de realismo fantástico (1991), a série A identidade em jogo (1991), Atentado ao poder (1992) e Imemorial (1994). Apontada como uma das primeiras artistas brasileiras a deslocar a fotografia do campo bidimensional para o território da instalação artística, Rosângela Rennó se tornaria logo uma referência em qualquer discussão acerca da expansão da imagem fotográfica. 

            Além disso, todas as suas séries que reprocessam imagens de arquivos foram decisivas para os conceitos de fotografia contaminada e fotografia de apropriação, que surgiram no início dos anos 1990. Curador da mostra Fotografia contaminada (Centro Cultural São Paulo, 1994), o crítico Tadeu Chiarelli publicaria um texto em Lapiz: Revista Internacional de Arte, em julho/setembro de 1997, creditando à visibilidade da obra de Rosângela Rennó a “maioridade internacional” da fotografia brasileira.* A artista está entre os artistas brasileiros de maior projeção internacional, com obras nos acervos de instituições como The Art Institute of Chicago, The Museum of Contemporary Art, de Los Angeles, Tate Modern e Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, de Madri, entre outras. 

            A expansão da imagem, na obra de Rennó, atinge outro patamar de complexidade a partir dos trabalhos com sua coleção de textos de jornal que fazem referência à fotografia. As várias séries que constituem o projeto em processo Arquivo universal (desde 1992) apresentam textos usados e manipulados como fotografias. Os critérios para seleção e edição dos textos são os mesmos usados para as fotografias. Assim como na imagem, a manipulação dos textos ocorre no sentido de eliminar especificidades e referências espaço-temporais. Em entrevista ao crítico e curador Paulo Herkenhoff, Rosângela afirma que sob orientação do professor Eduardo Peñuela, na USP, “houve um aguçamento da vontade de trabalhar com jogos intertextuais. Daí nasceu o interesse pelo texto substituindo a imagem”. ** 

            Assim como o interesse pela intertextualidade visual já estava presente nos anos de formação, a experiência com o cinema também é uma condição inerente ao trabalho da artista. Mesmo que a obra em vídeo só viesse a acontecer mais adiante, a partir de Vera Cruz (2000) e Espelho diário (2001), as questões relacionadas à imagem em movimento que surgiram nas aulas de cinema foram imediatamente incorporadas à pesquisa artística de Rennó. 

            Elas aparecem já em uma de suas primeiras individuais, Anti-cinema, realizada na Galeria Corpo, em Belo Horizonte, em 1989. Na exposição, alguns trabalhos prestavam homenagem a Muybridge e Etiene-Jules Marey, os pais da fotografia sequencial, e aos artistas Marcel Duchamp e Jan Dibbets. Tratava-se de uma série de fotografias montadas sobre discos LP, que deveriam ser “rodadas” em toca-discos antigos. Outras obras dialogavam diretamente com a matéria-prima do cinema: uma série de fotografias de grande formato, feitas a partir dos fotogramas de cinema achados no lixo da ECA-USP. Outro objeto, Detector de primaveras(1989), feito com um antigo flash de bulbo, girava e piscava sobre um pedestal e completava a reflexão sobre a interlocução entre as artes visuais, a fotografia e o cinema. 

            Dois anos depois, Lição de realismo fantástico (1991), sua primeira experiência com projeção de imagens em movimento, consistia em uma instalação com dois pedestais de onde surgiam imagens fantasmagóricas, projetadas sobre a parede e girando sem parar. O dispositivo evocava um sistema muito antigo de produção de “fantasmagorias”, comum às lanternas mágicas giratórias do século 18. 

            O fascínio da artista por maquinárias e aparelhos cinéticos ganhou reforço com Experiência de cinema (2004), que funciona a partir de um dispositivo de projeção de imagens sobre fumaça. Mais uma vez evocando o desaparecimento da imagem, o trabalho articula o mesmo conceito que levou Rosângela Rennó a deixar de fotografar: a crítica sobre o fluxo contínuo de produção e consumo de imagens, que levam a um inevitável mecanismo seletivo da memória, conduzindo, em última instância, a uma amnésia social. 


            * Tadeu Chiarelli em “Fotografia no Brasil: anos 90”, texto reproduzido no livro Arte internacional brasileira, Lemos Editorial, São Paulo, 1999.

            ** Depoimento reproduzido em “Rennó ou a beleza e o dulçor do presente”, texto de Paulo Herkenhoff, no livro Rosângela Rennó, Edusp/Imprensa Oficial, São Paulo, 1998.


            Entrevista:

            P.A.: Eu gostaria de conversar sobre um grupo de trabalhos em que você explora os textos de jornal. Quando deslocados para o corpo do seu trabalho, esses textos funcionam como breves narrativas de existências anônimas. Que alteridades são essas, escondidas atrás de nomes abreviados? 

            R.R.: A humanidade. Esses textos pertencem ao Arquivo universal. A ideia de eliminar de um texto quaisquer referências que apontem para uma imagem específica ou uma pessoa específica, e torná-lo ambíguo o suficiente para você imaginar que se refere a várias pessoas, situações, países ou épocas, é para aproximá-lo do efeito que uma fotografia provoca em você. A fotografia não tem nome e não tem data, a não ser que você fotografe algum dado que te localize no tempo e no espaço. A ideia era jogar com essa possibilidade de projetar no texto o personagem que você quiser. E essa alteridade pode ser você mesmo. Você pode projetar a si próprio. É muito parecido ao modo que uso a imagem, quando tiro seu contraste, ou crio uma opacidade intencional para dificultar a legibilidade da foto. 

            P.A.: Tudo parece trabalhar no sentido de legitimar uma indagação contida na videoinstalação Espelho diário: “Não é verdade que toda notícia de jornal diz respeito a nós mesmos?”

            R.R.: Acho que sim. Mas tem um outro lado que me interessa, complementar a essa ideia. A história oficial que é contada nos livros é, em geral, uma história muito masculina. É a história dos heróis – apesar de a história do Brasil ser cheia de momentos engraçados, ou pouco heroicos. Mas o que eu gosto mesmo é de contar as pequenas histórias, que podem acontecer com qualquer um. São os pequenos relatos dos oprimidos, dos vencidos, dos que não têm vez. A história dos vencidos é mais interessante. 

            P.A.: Esses textos de jornal, manipulados em Espelho diário e em outras instalações como In Oblivionem, ou Hipocampo, me parecem perder muito de sua “objetividade jornalística” e ganhar uma aura fantasiosa que os aproximaria das narrativas descritas por Walter Benjamin em O narrador. É como se a notícia original decolasse em direção a outros conteúdos.

            R.R.: Mas os textos têm uma manipulação mínima. Sofrem só alguns cortes, onde elimino as referências que não me interessam: geográficas, temporais e identitárias. Essa sensação de abertura que você tem, acho que é devido ao fragmento estar descontextualizado do texto integral. 

            P.A.: Essas pequenas omissões são suficientes para retirar do texto seu teor informativo e transformá-lo em ficção?

            R.R.: Eu não consigo mais ver a distância entre ficção e realidade nesses textos. Devo ter uns dez textos sobre tortura na ditadura, mas em todos eles é muito mais fácil imaginá-los como ficção do que como realidade. Mas acho que esse potencial está dentro dele. Eu só dou um jeito da coisa ficar mais enigmática do que ela é. 

            P.A.: Voltando a Walter Benjamin, que diz ser a narrativa “uma forma artesanal de comunicação”, gerada em sincronia com o trabalho manual de artífices, em que medida a sua relação com os arquivos de fotos e textos é de “modelagem”? 

            R.R.: Eu sempre gostei dessa possibilidade de imagens abertas. Fazer com que sejam ambíguas o suficiente para você poder se projetar e interagir com elas, de uma forma muito direta. Abrir a imagem para que você possa se identificar, mais do que tentar associá-la a um outro personagem. 

            P.A.: Em Bibliotheca há outro narrador, diferente daquele de Arquivo universal. Ele aparece no arquivo de fichas que descrevem os álbuns lacrados dentro de vitrines. Em vez de simplesmente descrever as imagens, ele parece interpretar a história do personagem retratado. Qual a particularidade desse narrador em relação aos anteriores?

            R.R.: Ele deduz a história a partir da leitura dos álbuns. Mas você não pode ter certeza das imagens que estão ali dentro. Nada garante que o que está escrito pelo bibliotecário seja verdade. O narrador é um bibliotecário que pode ter mentido para você. Você tem que acreditar nele, como tem que acreditar nos narradores, como tem que acreditar nos jornalistas também: acreditar que aquela notícia está sendo corretamente relatada. Mas talvez aí exista um desejo mais de ordenar, de guardar. As narrativas que estão nos álbuns não estão acessíveis. Então, me parece que aqui não há um narrador. Há, sim, um bibliotecário muito mais interessado em guardar, ou salvar um vestígio de algo. Mas é tudo incompleto e fragmentado, os dados são frágeis. Esse é o delírio que criei para esse bibliotecário. Que grau de veracidade você pode dar a uma história feita de fragmentos? Se estou especulando sobre a motivação do cara para tirar cinquenta imagens e só deixar dez, estou fazendo ficção. 

            P.A.: Os vazios e lacunas nas narrativas de Bibliotheca refletem os brancos e a descontinuidade da memória. Você tem ainda um outro trabalho “em branco”, o vídeo Vera Cruz, em que uma narrativa histórica persegue um filme em branco. Que relação há entre os espaços brancos nos álbuns de retratos e esse vídeo?

            R.R.: Em Vera Cruz, há um texto muito bem apoiado num documento, que deve ser o documento mais conhecido e importante do Brasil. Mas a única coisa que a gente tem são esses relatos textuais. Eu gostei justamente de trabalhar com tudo aquilo que não pôde ser documentado. Quando você lê a carta, o que você consegue imaginar sobre a relação dos portugueses com os índios? Ali há muito poucos elementos para isso. Você tem só a versão do português, não tem a versão do outro lado. É a visão do colonizador. 

            P.A.: O branco da imagem simboliza a ausência do outro lado da história? Indica a fragilidade do relato do colonizador? 

            R.R.: Sim, e também um excesso de julgamento, a partir de um contato muito efêmero. Indica a falta da contrapartida de um julgamento, por exemplo, de que os índios não tinham paladar, só porque não gostaram do vinho e das frutas secas que serviram para eles no barco. Se fosse totalmente isento de julgamento, talvez fosse um texto mais interessante. Mas não sei se seria possível um texto totalmente descritivo. 

            P.A.: Vejo um certo parentesco de Vera Cruz e Congo, feito por Arthur Omar, em 1972. No filme, a ação é substituída por frases e letreiros sobre fundo branco. O texto funciona como uma espécie de roteiro de uma ação que não foi filmada. E em Vera Cruz, o branco aparece para questionar o texto.

            R.R.: Não conheço Congo, mas, em Vera Cruz, as legendas existem para serem questionadas mesmo. Aquele diálogo é fictício, criado a partir dos dados contidos na carta de Pero Vaz de Caminha. Sabemos que o diálogo entre índios e portugueses não ocorreu. O trabalho apresenta, então, várias impossibilidades, que você está chamando de “brancos”. Uma documentação impossível, um diálogo impossível. Há a fala do português, mas não há a réplica, porque a réplica não foi entendida. O outro é visto e julgado a partir de um único ponto de vista. 

            P.A.: O branco é a ausência do outro. Ocorre uma espécie de antidocumentário, porque aqui não se tem o “outro”, sempre tão evocado pelo documentário. 

            R.R.: No documentário, o outro tem voz, o outro responde. Naquela época, o único relato possível era o textual, ou os desenhos. Daí você tem que contar só com a versão de quem está apresentando aquilo que você tem que acreditar que sejam os fatos. 

            P.A.: Mas a ausência do outro pode ocorrer também em um documentário de imagem, dependendo da forma como essa informação é editada. 

            R.R.: Você tem razão. E Bibliotheca também tem um pouco dessa condução da informação ao te impossibilitar de ver o álbum propriamente dito e te apresentar só uma espécie de resumo do conteúdo. É tudo incompleto e eu só dou a ver aquilo que me interessa. E você tem que acreditar. Se eu estou mentindo, ou não, isso você nunca vai saber. Isso vem da constatação que tive visitando os museus do mundo e vendo como eles preparam as visitas monitoradas, as exposições temáticas, onde você coloca um headphone, encurta sua visão e é conduzido a olhar aquele objeto a partir de indicações prévias. Para enxergar exatamente aquilo que o museu pretende que você veja. As pessoas buscam as visitas guiadas, achando que através disso vão sair com mais saber e conhecimento. É por isso que eu quis colocar a imagem fotográfica da capa do álbum na vitrine, oferecendo ao público apenas uma representação desse objeto.

            P.A.: Em Espelho diário, você interpreta uma diversidade incrível de mulheres, identificadas a partir de um único ponto comum: o nome. Há aqui uma outra forma de eliminação do outro? De devorar o outro? 

            R.R.: Não sei, não sei. Talvez, quem tenha sumido ali tenha sido eu, não? Bom, eu só não desapareci totalmente porque não sou atriz para ficar incorporando a sem-teto, a socialite, a morta. Eu não tenho essa capacidade, quisera eu, eu devia ter treinado um pouco mais... Mas, no final, gostei de não me amalgamar tanto, manter um mínimo de distância. Mas não sei se espelhar é o mesmo que canibalizar. 

            P.A.: O espelho criado ali mantém as distâncias entre as alteridades dessas Rosângelas?

            R.R.: É como eu enxergo. Mas há muitos espelhamentos dentro desse trabalho. Tentei não assumir totalmente o lugar do outro, mas também não me posicionar no lugar da narradora. O espelho implica numa dualidade. E fala em dois lados que se parecem. De um lado, as minhas homônimas todas; do outro, eu.


            ALZUGARAY, Paula. Rosângela Rennó: o artista como narrador. São Paulo: Paço das Artes, 2004. Folder de exposição. Disponível em: http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/site/dossier029/apresenta.asp
            With a work turned to the relations of intertextuality between photography, text, video, and cinema, Rosângela Rennó applies to texts the same working system that she applies to images. When manipulating a photograph, she removes its contrast or changes its color, so as to create an opaqueness that makes it difficult to read. In her work with journalistic texts, she makes cuts, eliminating references of geography, time, and identity. She molds them according to her intention of making them fit to represent not just an event, or a character, but rather any of those. 

            Her Arquivo universal, the video Espelho diário, and other of her works that explore narratives, are inventories of erased and rewritten documents. Upon reducing the “journalistic” condition of the text, the artist provides it with a narrative openness that brings it closer to fiction. The alterity in the oeuvre of Rosângela Rennó is, therefore, an anonymous collectivity devoid of any precise identity. Her operations of reduction turn image and text into empty spaces, potentially filled up by the viewer. What used to be a newspaper article becomes a mirror. “To me, the blanks and amnesias are more interesting than memory,” she says. 

            (…)

            Just as Brazilian contemporary photography used up its function of capturing the soul and unveiling the identity of the Brazilian, documentary cinema, in its crisis, or postcrisis, also seeks to shun away from the paradigmatic Brazilian sociological types—the farmer, the favela inhabitant, the Indian, the rubber tapper, the laborer—, aiming at broadening the spectrum of identities. The video Espelho diário (2001), in which artist Rosângela Rennó plays the roles of dozens of women by the name of Rosângela, adds to the gamut of Brazilian archetypal identities regular, far-from-obvious types, bringing freshness and perplexity to a field mined by foreseeable aspects. Those include the blonde stupid female police officer, the pombagira (TN: religious entity of the candomblé, an African-Brazilian religion), the female inmate, the retirante (TN: a migrant from northeast Brazil to the Southeast), the murder victim, the single mother living in the favela, the mother of thirty-three children, the beloved woman, the bride, the abused girl, the middle-class housewife, the overdressed, and—one of the most explored categories by the means of communication—the violent death victim. 

            On the other hand, Espelho diário is part of a group of works by Rosângela Rennó which explore narratives. Going back to The Storyteller, I sense in the vast collection of texts in the series Arquivo universal a permanent tension between what Benjamin described as “narrative” and as “informative.” Even if extracted from news articles, the texts interpreted or reproduced by Rennó have a slightly fantastic aura, which brings them closer to the “narrative” text described by Benjamin: “It is left up to him [the reader] to interpret things the way he understands them, and thus the narrative achieves an amplitude that information lacks.” 

            The work makes a reference to British tabloid Daily Mirror [literally translated as “Espelho diário,” in Portuguese] but by displacing the text from its original sphere of journalistic news Rennó places it in front of a mirror. “On the other hand, is it not true that every newspaper article concerns us?” one of the Rosângelas asks, in an open confrontation with the mirror that separates the realms of the personal and the social, the intimate and the public, the I and the other. 

            (…)

            In discussions about Rosângela Rennó, a sentence repeats itself: “The photographer who does not photograph.” But it has not always been, and it not always is that way. The artist became recognized in that sentence from the moment when she decided to stop making photographs, replacing the photographic act with the appropriation of existing images. This took place in the mid-1980s, when she still lived in Belo Horizonte, and started working with images found in photograph albums. This first archaeological impulse gave birth to the series Pequena ecologia da imagem, in which she turned her eye to images with low resolution and legibility, portraying obscured, veiled, out-of-focus, or only suggested figures. Mulheres iluminadas (1988) and A mulher que perdeu a memória (1988), among other images, was a harbinger of the investigation that Rosângela Rennó would engage in throughout the following decades, about memory, identity, and their erasure.

            Until this day, Rennó acknowledges herself to be very economic when it comes to taking photographs, and says she records only what she thinks is worth keeping, “almost always the marks of human presence in the world.” Instead of photographing, collecting. Her interest in discarded images and her habit of collecting (albums, photos, texts, etc.) were key to the formation of her work strategies. Her first major “findings” occurred in 1988, when, upon starting a graduate course in cinema, at the School of Communications and Arts of the University of São Paulo (USP), she developed a series of photographs based on photograms thrown in the garbage cans near the cutting rooms. Shortly thereafter, when she moved to Rio de Janeiro, she began to go over the old 3x4 photo studios downtown, recovering dead files of negatives and forgotten copies. The collection would lead to a blunt reflection on the social value and symbolic power of photography, expressed in installation work such as Duas lições de realismo fantástico (1991), the series A identidade em jogo (1991), Atentado ao poder (1992), and Imemorial (1994). Regarded as one of the first Brazilian female artists to displace photography out of the bidimensional field and into the territory of artistic installation, Rosângela Rennó would soon become a reference in any discussion about the expansion of photographic image. 

            Furthermore, all of her archival image reprocessing series were seminal to the concepts of contaminated photography and appropriation photography, which emerged in the early 1990s. The curator of the exhibition Fotografia contaminada (Centro Cultural São Paulo, 1994), critic Tadeu Chiarelli would publish a text in the magazine Lapiz: Revista Internacional de Arte, in July/September 1997, crediting the visibility of Rosângela Rennó’s work for the “international coming of age” of Brazilian photography.* The artist ranks among the most internationally acclaimed Brazilian artists, with works featured in the collections of institutions such as the Art Institute of Chicago, The Museum of Contemporary Art in Los Angeles, the Tate Modern, and the Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, in Madrid, among others. 

            The expansion of image, in Rennó’s work, reached new heights of complexity, beginning with her work using newspaper texts that made mention to photography. The various series that comprise the project in progress Arquivo universal (ongoing since 1992) feature texts used and manipulated like photographs. The criteria for selecting and editing the texts are the same ones applied for photographs. As with images, the manipulation of text aims at eliminating specificities and references to space-time. In an interview to critic and curator Paulo Herkenhoff, Rennó said that, under the guidance of Professor Eduardo Peñuela, at USP, “there was a heightening of her desire to work with intertextual games. That was where her interest in text as a replacement for image emerged.” ** 

            Just as her interest in visual intertextuality was already present in her formative years, her experiments with cinema are also a condition inherent in her work. Even though her video work would only come about further on, beginning with Vera Cruz (2000) and Espelho diário (2001), the issues related to image in motion that arose in her cinema classes were immediately incorporated into Rennó’s artistic research. 

            Those issues already appeared in one of her first solo exhibitions, Anti-cinema, held at the Galeria Corpo, in Belo Horizonte, in 1989. Some of the work in the exhibition paid tribute to Muybridge and Etiene-Jules Marey, founding fathers of sequential photography, and to artists Marcel Duchamp and Jan Dibbets. They were a series of photographs mounted on vinyl records, which should be “spun” on old record players. Other works established a direct dialogue with the raw material of cinema: a series of large-format photographs, made from cinema photograms found in garbage cans at ECA-USP. Another object, Detector de primaveras (1989), built using an old bulb flash, spun and flashed on a pedestal, completing her reflection about the conversation between the visual arts, photography, and cinema. 

            Two years later, Lição de realismo fantástico (1991), her first experiment with projection of moving images, consisted of an installation with two pedestals from which phantasmagoric images emerged, projected onto the wall, continually spinning. The device evoked a very old system for producing “phantasmagoria,” common in the rotating magic lanterns of the 18th century. 

            The artist’s fascination with gadgets and kinetic devices was further reinforced with Experiência de cinema (2004), which is based on a device for projecting images onto smoke. Once again evoking the disappearance of image, this work articulates the same concept that led Rosângela Rennó to quit taking photographs: a criticism of the continuous flow of image production and consumption, which leads to an inevitable selective mechanism of memory, ultimately causing social amnesia. 


            * Tadeu Chiarelli in “Fotografia no Brasil: anos 90,” text reproduced in the book Arte internacional brasileira, published by Lemos Editorial, São Paulo, 1999.

            ** Account reproduced in “Rennó ou a beleza e o dulçor do presente,” a text written by Paulo Herkenhoff, featured in the book Rosângela Rennó, published by Edusp/Imprensa Oficial, São Paulo, 1998.


            Interview:

            P.A.: I would like to talk about a set of works in which you explore newspaper texts. Displaced into the body of your work, those texts function as brief narratives of anonymous existences. What alterities are those that hide behind abbreviated names?

            R.R.: Humanity. Those texts belong in Arquivo universal. The idea of eliminating any reference whatsoever to a specific image or person from a text, making it ambiguous enough that you are able to imagine that it is about many different persons, situations, countries, or eras, aims at approximating the effect that photography provokes. A photograph does not have a name and it does not have a date, unless you photograph some data that place you in time and space. The idea was to gamble with the possibility of projecting onto text the character that you wanted to. And that alterity can be your own self. You can project your own self. It is very similar to the way in which I use image, removing its contrast, or creating an intentional opacity in order to make the photo less legible. 

            P.A.: Everything seems to contribute to provide legitimacy to a question contained in the Espelho diário [Daily mirror] video installation: “Is it not true that every news story is about our own selves?”

            R.R.: I guess so. But there is another aspect that interests me, and which complements this notion. The official story, as told in books, is often very masculine. It is the story of heroes—despite the fact that the Brazilian history is full of funny, or not-so-heroic moments. But what I really enjoy is telling small stories, which can happen to anyone. The small accounts of the oppressed, of the defeated, of those who have no say. The story of the defeated is more interesting. 

            P.A.: Those newspaper texts, manipulated in Espelho diário and other installations, such as In Oblivionem or Hipocampo, seem to loose a lot of their “journalistic objectivity,” and gain an aura of fantasy that brings them closer to the narratives described by Walter Benjamin in The Storyteller. It is as if the original news story had set itself loose, and moved toward other contents.

            R.R.: But manipulation of texts is minimal. They only undergo a few cuts, through which I eliminate the references that do not interest me: geographic, temporal, and related to identity. This feeling of openness that you get, I guess it is due to the fact that the fragment is decontextualized from the full text. 

            P.A.: Are those small omissions sufficient to remove the informative character from the text, and turn it into fiction?

            R.R.: I can no longer see the distance between fiction and reality in those texts. I probably have close to ten texts about torture during the dictatorship, but it is much easier to imagine all of them as being fiction than reality. I think this potential is contained in the text. All I do is find a way for it to become even more enigmatic than it already is. 

            P.A.: Getting back to Walter Benjamin, who claimed that narrative is “an artisanal approach to communication,” generated synchronously with the manual work of artisans, to what extent is your relation with photo and text archives characterized by “modeling”?

            R.R.: I have always enjoyed this possibility of open images. Of making them sufficiently ambiguous, so you can project yourself and interact with them in a very direct way. Opening the image so that you can identify yourself, rather than trying to associate it with another character. 

            P.A.: In Bibliotheca there is another narrator, different from the one in Arquivo universal. He appears in the archive of files that describe the albums locked inside glass panels. Instead of just describing the images, he seems to interpret the story of the character portrayed. What is the feature that distinguishes this narrator from the previous ones?

            R.R.: He deduces the story based on the reading of the albums, but you cannot be certain of the images contained inside. There is no guarantee that what the librarian wrote is true. The narrator is a librarian who might have lied to you. You must believe him, as you must believe the narrators, and as you must believe journalists as well: you must believe that the news story is being told correctly. But here, maybe there is more of a desire for organizing, for keeping. The narratives contained in the albums are not accessible. Thus, it seems to me that a narrator does not exist here. What does exist is a librarian, who is much more concerned with keeping or saving a vestige of something. But it is all incomplete and fragmented, the data are fragile. This is the delirium I created for this librarian. What degree of veracity can you ascribe to a story made out of fragments? If I am speculating about the motivations for the guy to make fifty images and leave only ten, then I am making fiction. 

            P.A.: The empty spaces and gaps in the narratives in Bibliotheca reflect the blanks and the discontinuity of memory. You have yet another “blank” work, the Vera Cruz video, in which a historic narrative chases after a blank film. What is the connection between the blank spaces in the portrait albums and this video?

            R.R.: In Vera Cruz, there is a text very well backed up by a document, which is probably the most well-known, most important document in Brazil. But all we have are those textual accounts. What I liked was precisely to work with all that could not be documented. When you read the letter, what can you imagine about the relationship of the Portuguese with the Indians? There are very few elements for that. You only have the version of the Portuguese, you do not have the version of the other side. It is the vision of the colonizer. 

            P.A.: Does the whiteness in the image symbolize the absence of the other side of the story? Does it indicate the fragility of the colonizer’s account? 

            R.R.: Yes, and also an excess of judgment, based on a very fleeting contact. It indicates the lack of the counterpart of a judgment, for instance, that the Indians had no taste, just because they did not like the wine and dried fruits that they were served on the boat. If it were completely judgment-free, perhaps it would be a more interesting text. But I do not know whether it would be possible to have a fully descriptive text. 

            P.A.: I see a certain degree of similarity between Vera Cruz and Congo, made by Arthur Omar, in 1972. In the film, action is replaced with phrases and letterings over a white background. The text functions as a script of sorts for an action that has not been recorded. And in Vera Cruz, the blank appears in order to question the text.

            R.R.: I am not acquainted with Congo but, in Vera Cruz, the subtitles exist precisely in order to be questioned. That conversation is fictional, created based on data from the letter by Pero Vaz de Caminha. We know that the conversation between Indians and the Portuguese did not take place. Therefore, the work presents several impossibilities, which you call “blanks.” It contains an impossible recording, an impossible conversation. The Portuguese man speaks, but there is no reply, because the reply was not understood. The other is seen and judged from a single point of view. 

            P.A.: The blank is the absence of the other. What happens is an antidocumentary of sorts, because the “other,” so often evoked in documentaries, is not present here. 

            R.R.: In documentaries, the other has a voice, the other answers. In those days, the only possible account was the textual one, or the drawings. Thus, you must count only on the version of he who is presenting that which you must believe are the facts. 

            P.A.: But the absence of the other can also occur in a documentary that contains image, depending on how that information is edited. 

            R.R.: You are right. And Bibliotheca also features some of that manipulation of information, as it renders you unable to see the album itself, and presents you with a sort of summary of the content. Everything is incomplete, and I only show that which is interesting to me. And you need to believe it. Whether I am lying or not, you will never know. This comes from the realization I had by visiting museums throughout the world, and seeing how they prepare their monitored visits, the thematic exhibitions, in which you put on a headphone, you shorten your sight, and you are led to look at that object based on previous indications. So that you see exactly what the museum wants you to see. People seek guided visits, believing that they will acquire more information and knowledge. And this is why I wanted to put the photographic image of the album cover in the glass panel, offering the public only a representation of that object.

            P.A.: In Espelho diário you play a stunning variety of women, with a single common feature: their name. Is this a way of eliminating the other, of devouring the other? 

            R.R.: I don’t know, I don’t know. Maybe the one who disappeared there was me, right? Well, the only reason why I did not disappear altogether, is because I am no actress to play the homeless, the socialite, the dead woman. I do not have that ability, I wish I did, I should have practiced a little more... But after all, I like the fact that I did not become so enmeshed, that I kept a minimum distance. But I do not know if to mirror is the same as to cannibalize. 

            P.A.: Does the mirror created there keep the distances between the alterities of those Rosângelas?

            R.R.: That is how I see it. But there are several mirrorings within that work. I tried to not fully take the place of the other, but I cannot position myself as a narrator either. The mirror implies in a duality. And it speaks of two sides that resemble each other. On the one hand, all of my homonymous women; on the other hand, me. 


            ALZUGARAY, Paula. Rosângela Rennó: the artist as a narrator. São Paulo: Paço das Artes, 2004. Exhibition folder. Available in: http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/site/dossier029/apresenta.asp