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De lixo e poesia

Of trash and poetry
Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Minus-value [auction]


    Há muitas imagens no mundo. Imagens que descrevem, comentam, interpretam ou até negam o que há no mundo. Imagens que, de maneiras diversas, inventam e constroem espaços públicos e íntimos. Imagens que, não faz dois séculos, eram quase todas desenhadas ou pintadas, e que, com frequência, levavam dias ou meses para ficar prontas. Velocidade de criação simbólica acelerada muitas vezes, contudo, com a invenção da fotografia. Desde que se tornaram instrumentos de fixar o que existe ou já houve em algum lugar, e o que se é ou já se foi em outro tempo, as imagens fotográficas dão contorno à vida que se convencionou chamar de moderna e marcam os traços de sua mudança incessante. São elas que servem, ademais, de testemunhas da transformação gradual de todos rumo a um fim certo e idêntico. Algumas fotografias têm cor, outras traduzem tudo em preto e branco. Algumas capturam o mundo à distância, outras quase roçam aquilo que escrutinam. Algumas são solenes ou nostálgicas, outras trazem rastros de festa e confiança. Em seu conjunto, constituem a memória partilhada de uma comunidade; isoladamente, contam ou produzem histórias únicas. 

    Mas talvez não caibam tantas imagens assim no mundo. Ao menos se for considerada a capacidade limitada que cada um tem de recordá-las, dada a natureza seletiva da faculdade humana de lembrar. Ou é possível que não haja mesmo vontade de retê-las todas. E não importa que as possibilidades de acolhimento físico de registro visual das coisas e das gentes sejam maiores agora do que jamais foram em outro momento, crescendo à medida que mais imagens são produzidas, ou quiçá antecipando-se a tal aumento. Em um tempo em que a produção digital de imagens multiplica sua presença em todo canto, fotografias são criadas e muitas delas nem sequer são vistas, guardadas para sempre antes mesmo que circulem, não cabendo nem mesmo tomá-las, por isso, como esquecidas. São imagens que, por supostamente serem repetitivas ou banais, tornam-se desnecessárias, sem função definida a desempenhar. Deixadas em arquivos virtuais para consulta futura, ou ali abandonadas em definitivo, servem como lembranças em potência de momentos e lugares, sendo mesmo, em ocasiões, descartadas como resto. 

    Ao tornar possível a geração de um número incontável de imagens passíveis de serem transformadas e combinadas à vontade, a tecnologia digital também nutre, paradoxalmente, um desgosto por reter fotografias em suportes resistentes a essas tantas possibilidades de mudanças. A ansiedade por criar e arquivar cada vez mais imagens termina por produzir, desse modo, desapego aos meios em que estas costumavam ser fixadas, e que lhes emprestavam sensação de permanência. Impressas em papel ou transformadas em diapositivos, imagens fotográficas são crescentemente desautorizadas como artigos que demandam a guarda, sendo com frequência lança das para fora e para longe do circuito fluido por onde transitam os registros atuais do mundo. Não são, todavia, abandonadas sozinhas a essa sorte, mas acompanhadas dos equipamentos analógicos com que por tanto tempo foram produzidas (câmeras dos mais diversos tipos e formatos) e dos suportes que serviam para organizá-las e visualizá-las (álbuns, molduras, monóculos, entre outros tantos mais).

    Fotografias impressas e objetos variados de feitura e de exibição de imagens são, assim, gradualmente destituídos de todo “valor de uso”, esquecidos ou simplesmente atirados fora, justamente por aqueles que, em algum momento anterior, atribuíam-lhes sentido simbólico e prático. E por carecerem de utilidade na ordenação corrente da vida privada ou pública, têm “valor de troca” também à beira do nulo, equiparável talvez ao de uma curiosidade, destinado ao mesmo fim de outras sobras do mundo: os mercados, as feiras e as lojas de coisas que quase ninguém mais quer. É justamente desses lugares, porém, onde se depositam e se encontram os restos ou o que não tem mais canto apropriado, que Rosângela Rennó resgata e restaura imagens fotográficas para integrar vários de seus projetos. Da mesma forma que busca e coleciona, onde quer que esteja ou vá, estando em bom estado ou quebrados, os equipamentos diversos que as produziam e guardavam no passado. [...]

    O [...] projeto apresentado por Rosângela Rennó em 2010, na 29a. Bienal de São Paulo tem por título Menos-valia [leilão] [...] consistiu na realização de um leilão de 73 trabalhos de sua autoria, os quais permaneceram disponíveis, por mais de dois meses, à apreciação de interessados em visita à mostra coletiva, antes de serem finalmente postos à venda, poucos dias antes do fim da exposição. Cada um desses artefatos teve origem em imagens analógicas e nos muitos objetos utilizados para produzi-las ou expô-las, incluindo máquinas fotográficas, filmadoras, molduras, estereoscópios, álbuns e projetores, todos adquiridos em lojas de coisas antigas, mercados e feiras. Alguns dos trabalhos resultaram de elaborado processo de combinação ou transformação dos componentes originais apropriados; outros, quase somente de sua limpeza ou conserto, em caso de não estar funcionando de modo adequado. Não importando o grau de intervenção física sofrida, todos eles traziam uma pequena e idêntica placa de acrílico indicando sua origem e, ao mesmo tempo, o fato de comporem, assim transformados, uma criação da artista. Atestado de pertencimento prévio a um mundo onde o valor de uso e o valor de troca são quase nada e, em simultâneo, de sua inserção em outro, onde valores novos podem ser criados.

    É essa ambivalência de Menos-valia [leilão] que o torna plataforma privilegiada para promover a reinscrição de imagens e objetos descartados como obsoletos ou imprestáveis em um circuito que passa a desejá-los novamente e que, portanto, os valoriza. O desejo por essas imagens e objetos ordinários e esquecidos é reativado por um sistema de consagração capaz de fazê-los objetos distintos e procurados, como talvez o tenham sido um dia, ainda que por razões diferentes. Constituindo arco amplo de interesses e posições, esse sistema se nutre do reconhecimento crítico da trajetória de Rosângela Rennó, do apoio das galerias que a representam e da legitimidade institucional da Bienal de São Paulo, que, por meio de seus curadores, convidou-a para desenvolver esse projeto em evento de tanta projeção pública. Essa valorização que o desejo aumentado traz possui duas principais dimensões que se amalgamam como partes de um processo quase indiviso, ainda que possam ser explicitadas em separado. 

    A primeira dessas dimensões se refere à agregação de valor monetário a cada trabalho leiloado em relação aos seus custos de produção (o custo das imagens e dos objetos tal como foram encontrados, bem como de sua recuperação, limpeza e montagem), os quais serviram como base para o estabelecimento dos preços iniciais do leilão. Sem nenhuma exceção, os preços mínimos de todas as peças iam sendo multiplicados por muitas vezes à medida que elas eram disputadas por uma audiência formada, majoritariamente, por colecionadores e galeristas, além de alguns curadores, críticos e jornalistas. O acirramento da competição por lotes cujo interesse partilhado mostrou-se mais evidente (um trabalho que fazia referência aos Bichos de Lygia Clark, outros que remontavam a uma série anterior da própria artista) deixou clara a excitação de uns e o desconforto de outros com a transparência e a crueza com que mecanismos básicos e vitais da geração de riqueza no sistema das artes eram exibi- dos. Arbitradas apenas pelos ritos do leilão, as distâncias e as proximidades entre interesse estético e apelo patrimonial tornavam-se mais difusas que evidentes.

    A segunda principal dimensão em curso nesse projeto, e que se sobrepõe à primeira descrita acima, se refere à mudança de lugar hierárquico de imagens e objetos em um mundo que quase os descartou por completo. Por ostentarem sua “denominação de origem” – lugares de abandono físico e simbólico a que foram em algum momento relegados e que estão gravados nas placas de acrílico que os acompanham – e por receberem um “certificado de propriedade e autenticidade” quando foram finalmente vendidos, imagens e objetos analógicos efetivaram, durante o leilão, sua passagem de um campo que acolhe o que é anônimo e disponível para outro que define o que é único e sujeito à posse; passagem que teve início no momento em que fotografias, câmeras, álbuns e muitas outras coisas antigas foram recolhidas por Rosângela Rennó e reapresentadas como componentes de um projeto de sua autoria. Essa alteração na ordem taxonômica das coisas foi ainda reforçada, mesmo que de modo temporário, pelo fato de o leilão ter se recusado a empregar, por determinação da artista, qualquer aparato digital para sua realização, não sendo permitidos nem mesmo lances de localizações remotas, fosse por telefonia ou por internet. Apenas aos que participaram presencialmente do evento ou por meio de representantes autorizados, igualmente presentes, foi possível concorrer pela aquisição dos lotes. 

    Apesar de trazer em seu nome composto um termo que denota subtração de algo, Menos-valia [leilão] lida, paradoxalmente, com geração de valor monetário e simbólico. Adição de valor por desígnio único da artista, mas que, somente após confirmada por aqueles a quem seus trabalhos são apresentados, passa a ter existência pública. Em operação rigorosa e clara, Rosângela Rennó exibe a potência da arte para criar valores do quase nada e apresenta, no mesmo instante, os atritos e os riscos a que está exposta por isso. Se a arte pode fazer, do lixo, poesia, está sujeita também a fazer da invenção uma mera cifra.


    ANJOS, Moacir dos. De lixo e poesia. In RENNÓ, Rosângela. Menos-valia [leilão]. São Paulo: Cosac Naify, 2012, pp. 30-40.
    There are many images in the world. Images that describe, comment, interpret or even deny what is in the world; images that, in different ways, invent and build public and intimate spaces; images that, just two centuries ago, were almost all drawn or painted, and frequently took days or months to finish. The speed of symbolic creation was greatly accelerated, however, by the invention of photography. Photographic images, once they became tools for capturing what exists or once existed somewhere, and what is or once was in another time, have charted the life that we call modern, and recorded the footprints of unceasing change. Moreover, it is they who witness the gradual transformation, towards an unalterable common destiny, of those who inhabit the world. Some photographs have color, others translate everything in black and white; some capture the world from afar, others almost scrape what they examine; some are solemn or nostalgic, others bear the marks of celebration and trust. As a group, they represent the shared memory of a community; in isolation, they impart or construct unique stories. 

    But maybe the world cannot handle quite so many images; at least, if we consider our limited capacity to remember them, given the selective nature of human memory. Or it is also possible that we simply lack the will to retain them all. And it does not matter if the ability to store visual records of things and people is greater now than ever before, growing as more images are produced, or perhaps even in anticipation of such an increase. In a time when the production of digital images multiplies at every turn, many photos are created, but many are not seen, and are saved for eternity even before circulation, so that we cannot even call them forgotten. These images become unnecessary, allegedly for being repetitive or banal, and have no definite function to perform. They are kept in virtual files for future reference, or abandoned there, potential reminders of a time and a place that are never activated. At times, they are even erased, discarded like residue. 

    By making it easy to produce countless images that can be transformed and combined at will, digital technology also promotes, paradoxically, an aversion to photographic media that resist the various possibilities of change. The anxiety to create and store ever greater numbers of images ends up producing, thus, a detachment from the media on which they used to be fixed, and that lent them a sense of permanence. Printed on paper or made into slides, photographic images are increasingly discredited as objects that deserve preservation, being frequently tossed out and away from the fluid circuit through which the cur- rent records of the world travel. They are not, however, abandoned to this fate by themselves, but are accompanied by the analog equipment which for so long produced them (cameras of various types and formats) and the props formerly used to organize and view them (albums, frames, viewers, among many others). 

    Printed photographs and assorted objects for producing and viewing images are, thus, gradually deprived of all “use value”, forgotten or simply discarded by those who previously ascribed to them symbolic and practical meaning. And because they lack usefulness in the current ordering of public or private life, they also have an “exchange value” bordering on nil, perhaps equivalent to that of a curio, and subject to the same fate as other residues of the world: markets, fairs and shops that sell things that almost nobody wants. It is precisely from such places, where leftovers and things that have lost their proper place can be found, that Rosângela Rennó salvages and restores photographic images for use in several of her works. In the same manner, she seeks out and collects, wherever she is or goes, be they in good condition or broken, the various devices that once produced and stored them. […]

    The […] work shown by Rosângela Rennó during the 29th São Paulo Biennial bears the title Menos-valia [leilão] (Minus-Value [Auction]) […] consists of the auctioning of 73 of her pieces, all of which were made available, for more than two months, for inspection by interested parties before being finally put on the block a few days before the end of the exhibition. Each of these works originated in the many objects used to produce or display analog images, and that were purchased in markets, fairs and antique shops, including still cameras, film cam- eras, picture frames, stereoscopes, albums and projectors. Some of the pieces resulted from an elaborate process of combination or transformation of the original appropriated components; others, almost exclusively from cleaning or, if not functioning correctly, repairing. Irrespective of the degree of physical intervention embedded in their development, each piece carried a small acrylic plaque indicating its origin and, simultaneously, that it was, thus transformed, part of a creation by the artist; a record of prior attachment to a world where use value and exchange value are almost nil and, concurrently, of its entry into another where new values can be created.

    It is this ambivalence of Minus-Value [Auction] that makes it a privileged vantage point from which to promote the reinstatement of images and objects, discarded as useless or obsolete, into a circuit that again covets and, therefore, attributes value. The desire for these ordinary and forgotten objects is reactivated by a consecration system that makes them noteworthy and desirable, as they may have been someday, albeit for different reasons. Comprising a broad spectrum of interests and positions, this system is nourished by critical recognition of Rosângela Rennó’s career, by support from galleries that represent her, and by the institutional legitimacy of the Biennial, which, through its curators, invited her to carry out this project at such a prominent public event. This appreciation in value, resulting from increased desire, contains two principal dimensions that merge as part of a nearly indivisible process, even though they can be examined separately. 

    The first of these dimensions refers to the aggregation of monetary value to the cost of production of each auctioned work (what was spent in the purchase of objects and images plus what was spent on restoration, cleaning and assembly), which served as the criterion for establishing the initial bid at the auction. Without exception, the minimum bids for all the pieces were multiplied several times by an audience consisting mostly of collectors and gallery owners, as well as some curators, critics and journalists. The intense competition for lots where collective interest was more obvious (a work that referred to Lygia Clark’s Bichos, as well as those that referred to a previous series by Rosângela Rennó) exposed the enthusiasm of some and the discomfort of others in the face of the transparency and crudeness with which vital and basic mechanisms for the generation of wealth in the art world were on display. Governed only by the rites of auction, the distances and proximities between aesthetic interest and the appeal of ownership appeared more diffuse than palpable. 

    The second main dimension of this project, which overlaps with the one described above, refers to modifying the hierarchical position of images, objects and devices in a world that had discarded them almost completely. By bearing their “denomination of origin” (locations of physical and symbolic abandonment to which they were, at some point, relegated, and that appear engraved on the accompanying acrylic signs) and by acquiring a “certificate of ownership and authenticity” when finally sold, analog images and objects shifted, during the auction, from the sphere that shelters the anonymous and the available to one that defines what is singular and subject to ownership; a transition that began when the photographs, cameras, albums and several other old things were salvaged by Rosângela Rennó and resubmitted as components of an authored work. This alteration in the taxonomic order of things was reinforced, even if only temporarily, by the artist’s determination that the auction forego all digital devices. Remote bids were not allowed, be they via telephone or internet; only those who attended the event in person or through authorized representatives, also present at the auction, were able to compete for the purchase of lots. 

    Despite carrying, in its compound name, a term that denotes the subtraction of something, Minus-Value [Auction] deals, paradoxically, in the generation of monetary and symbolic value. An aggregation of value that, while designed solely by the artist, only attains public currency once confirmed by those to whom the work is presented. Through a clear and rigorous operation, Rosângela Rennó displays the power of art to create values from virtually nothing and presents, at the same time, the tensions and risks to which this operation is exposed. If art can make poetry from trash, it can also reduce invention to a unit of currency. 


    ANJOS, Moacir dos. Of trash and poetry. In RENNÓ, Rosângela. Menos-valia [leilão]. São Paulo: Cosac Naify, 2012, pp. 30-40.