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Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda

Even in the clearest of images something unknown remains
Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Farewell Ceremony


    [...] Esse oferecimento de um arquivo de imagens à imaginação do outro está também presente na instalação Cerimônia do Adeus [2003], composta por quatro dezenas de fotografias posadas de recém-casados, em que os noivos, vestidos para o protocolo de confirmação do enlace, são retratados no interior de carros ou encimados em motocicletas. Menos que a captura de momentos íntimos, essas imagens testemunham cenas que só existiram um dia para serem fotografadas e terem, assim, preservadas a sua ocorrência singular. Há, talvez por isso, nessas imagens em branco e preto que compõem o trabalho, um inequívoco acento nostálgico: de cada uma delas pulsa e emana, vindo de algum instante no passado, um referente que não se confunde com outro algum, o do momento exato em que duas pessoas se deixam imobilizar juntas em celebração de um projeto de partilha de afeto. Quando vistas ampliadas e dispostas todas juntas em grade sobre a parede – modo de organização espacial que faz do que é único apenas parte de um grupo – essas fotografias terminam, entretanto, por diluir o que pôde um dia haver de distinto nas expectativas de cada casal, confirmando o papel de anulador de alteridade que os arquivos exercem (1). O tempo não sabido e sem retorno que se passou desde que essas cenas foram gravadas também se encarrega, além disso, de confrontar suas promessas de individualidade. Algumas dessas reproduções possuem regiões esmaecidas que dissolvem partes de rostos ou apresentam vincos que anunciam, para um futuro incerto, a decomposição de seus “originais”. Alterações físicas que agem, em verdade, como indicadores de que, ao ser imobilizados em imagens fotográficas, esses casais foram não apenas tornados eternos, mas, em um sentido preciso, também mortos, posto que as habitam, desde o instante em que foram nelas inscritos por um rito social, como seres vulneráveis ao que estar por vir ainda (2). Poder ambíguo que a fotografia possui e que pode ser comparado ao da máquina concebida por personagem do romance A Invenção de Morel [1940], do escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), a qual registra e pereniza as imagens dele e a de amigos em idílio e que, em troca, os acomete de doença que acelera o seu fim carnal (3). Essa imobilidade temporal dos retratos faz recordar, ademais – por oposição ao envelhecimento progressivo e inevitável a que foram ou estão sujeitos aqueles homens e mulheres fotografados e reunidos em Cerimônia do Adeus –, também a morte futura de quem as olha. É justamente essa relação especular e sombria com o trabalho – causada pelo enfraquecimento da relação entre as imagens apresentadas e algo que seja específico somente a elas – que convoca o observador a relembrar e projetar, nessas fotografias tornadas todas semelhantes pela artista, narrativas pessoais. [...] 


         1.    Essa anulação fica igualmente apontada no objeto Afinidades Eletivas [1990], em que fotografias de dois casais são articuladas de modo a parecerem estar, à visão de quem circunda o trabalho, se misturando e confundindo. 
        2.    Sontag, Susan. On Photography. Londres, Penguin Books, 1979. 
        3.    Casares, Adolfo Bioy. A Invenção de Morel. São Paulo, Cosac & Naify, 2006. 


    ANJOS, Moacir dos. Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda (excerto de texto). In ANJOS, Moacir dos. Crítica. Rio de Janeiro: Automática, 2010, pp. 242-255.
    […] This offering to the imagination of an archive of images is also present in the installation Farewell Ceremony [2003], made up of about forty photographs of newly-weds, in which the grooms, dressed in the customary fashion, are posed inside cars or on motorbikes. Instead of capturing intimate moments, these images bear witness to scenes that existed only to be photographed and have preserved therefore their singularity. For this reason, these black and white images are somehow imbued with an unequivocally nostalgic tone. Each one pulses with a referent, coming from an unmistakable moment in life: when two people stand together to celebrate a project of shared affection. Magnified and organized as frig on the wall - a form of spatial organization that makes what is unique only one of a kind—, these photographs end up, however, diluting what once was a distinctive in the individual expectations of each couple, thereby confirming the annulling role of otherness that archives possess (8).  The unknown and irretrievable length of time that has passed since these scenes were recorded also serves to frustrate the expectation of individuality that they provide. Some of these reproductions have faded regions that dissolve parts of the faces or open up creases, suggesting that sometime in the future the “originals” will decompose. these couples have not only become eternal, but also, in a precise sense of the word, dead; for they inhabit the images, from the very moment they were inscribed in them by a social ritual, as beings vulnerable to what is to come (9). This is the ambiguous power of photography and it can be compared to the machine dreamt up by a character in Morel’s Invention [1940], by the Argentine writer, Adolfo Bioy Casares (1914-1999), which registers and immortalizes images of Morel and death (10). This immobility of the portraits in time also reminds the viewer—by opposition to the progressive ageing process to which the men and women photographed in Farewell Ceremony are inevitably subject—of the inevitability of her or his own death. It is precisely this specular and sombre relation to the work—caused by the weakening of the relation between the images presented and something specific to them – which invites the viewer to remember and project personal narratives into these photographs which have been made to seem alike by the artist. [...]


        1.    This annulment is also pointed to in [1990], in which photographs of two couples are put together in such a way that they become mixed or confused in the eye of the viewer. 
        2.    Sontag, Susan. On Photography. London, Penguin Books, 1979. 
        3.    Casares, Adolfo Bioy. A Invenção de Morel. São Paulo, Cosac & Naify, 2006. 


    ANJOS, Moacir dos. Even in the clearest of images something unknown remains. In ANJOS, Moacir dos. Crítica. Rio de Janeiro: Automática, 2010, pp. 242-255.


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    Corpo e Gênero em Rosângela Rennó


    Textos relacionados ao trabalho


    Texts linked to the work Farewell Ceremony

      […] Rennó não guarda fotos e textos com o objetivo de preservá-los ou conservá-los simplesmente. Sua busca não é apenas por devolver à sociedade aquelas imagens que foram esquecidas, mas sim promover o debate acerca do uso social e cultural da fotografia e explorar as possibilidades de novos encantamentos e intensidades através das mesmas. 

      É dentro do universo da familiaridade e dos álbuns de família que Rosângela Rennó introduz um clima fantasmagórico em suas obras, principalmente através do tema do sujeito melancólico, de imagens que reivindicam a nostalgia de uma identidade perdida. A apropriação de imagens antigas, já envelhecidas pelo tempo ou manipuladas pela artista para que adquiram um aspecto de apagamento, produz o efeito de suspensão da identidade. Muitas vezes é preciso um esforço dos olhos para que se veja aquilo que o tempo está apagando. Assim, a artista incide sobre o tema do casamento como célula produtora de álbuns de família, onde a fotografia exerce o congelamento mítico de coesão afetiva.

      Em Cerimônia do Adeus (1997-2003) Rennó apresenta fotografias digitais realizadas a partir de negativos fotográficos adquiridos em estúdio de retratos de Havana, Cuba, em 1994. São as fotografias do adeus dos recém casais, que provavelmente se despedem dos familiares e amigos, após a cerimônia do casamento, e vão às núpcias. Apagados e escurecidos, os casais posam para a câmera, acenando para o passado e marcando a ruptura social representada pelo casamento.

      Nessas obras, o debate se desloca do sentido da inscrição do gênero sobre o corpo, para o da compreensão dos aparatos culturais que organizam o encontro entre o instrumento e o corpo, com o intuito de percebermos quais intervenções são possíveis nessa repetição ritualística. As obras de Rosângela Rennó questionam os modos de conformação das identidades pelo ato de fotografar e podemos melhor compreendê-las através da desconstrução formulada pela critica feminista atual, evidenciando como o gênero é um dos modos de construção dramática e contingente de sentido (15).  Considerando o gênero como intencional e performático, é possível evidenciar as normas do mesmo que permitem as ficções sociais vigentes, como o próprio fenômeno da crença em um “sexo natural”.

      Rennó apropria-se de imagens, por exemplo, em Cerimônia do Adeus, que foram produzidas dentro das normas sociais que privilegiam a visão masculina, onde o próprio casamento opera como estratégia de construção de uma ficção cultural. A ilusão de um eu permanentemente marcado pelo gênero é criada, portanto, por meio da estilização do corpo e dos gestos. Muitas vezes o âmbito das relações íntimas serve para reafirmar a necessidade e naturalidade desses atos de gênero, sendo a fotografia do casamento uma das construções que servem para fortalecer esses atos e sustentar a divisão binária das identidades. [...]


      TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Corpo e Gênero em Rosângela Rennó (excerto de texto). In Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero (UFSC), 2007, disponível em: http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/fg7/artigos/L/Luana_Saturnino_Tvardovskas_49.pdf


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