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projeto terra de José Ninguém, 2021
projeto eaux des colonies, 2020-2021
- eaux des colonies (les origines), 2020-2021
- eaux des colonies (en construction), 2021
aucune bête au monde, 2019
lanterna mágica, 2012
Río-Montevideo, 2011/2016
corpo extranho africano, 2011
menos-valia [leilão], 2010
matéria de poesia, 2008-2013
a última foto, 2006
apagamentos, 2004-2005
experiência de cinema, 2004
corpo da alma, 2003-2009
bibliotheca, 2002
espelho diário, 2001
série vermelha (militares), 2000-2003
cartologia, 2000
vera cruz, 2000
parede cega, 1998-2000
vulgo/texto, 1998
vulgo [alias], 1997-2003
cerimônia do adeus, 1997/2003
cicatriz, 1996/2023
paisagem de casamento, 1996
hipocampo, 1995/1998
imemorial, 1994
atentado ao poder, 1992
duas lições de realismo fantástico, 1991/2015
paz armada, 1990/2021
anti-cinema (fotogramas), 1989
anti-cinema (discos), 1989
- pequena ecologia da imagem, 1988
Bibliotheca: ou das possíveis estratégias da memória
Sempre colecionei fotos perdidas; nelas há uma enorme reserva de recordações. Vê esse menino nessa velha foto de família? Voltou da Primeira Guerra Mundial mentalmente transtornado... A foto, claro, é de antes, de quando não sabia o que iria suceder-lhe.
W.B. Sebald
Da obra
Em 1992, Rosângela Rennó comprou, num mercado de pulgas em Bruxelas, um conjunto de seis caixas de slides completas. Não sabia que essa compra caprichosa seria o começo de uma obsessão: a procura tenaz por velhos álbuns de fotos. Pouco a pouco, as aquisições, sempre em brechós, foram se multiplicando com a colaboração de amigos e conhecidos que se dispuseram a aumentar a coleção. Durante dez anos, aqueles álbuns postergados proliferaram no estúdio da artista, cobrindo mesas, abarrotando prateleiras.
No Rio de Janeiro, em 2002, esse material foi organizado por Rennó para se constituir, quiçá, em sua obra mais ambiciosa: Bibliotheca.
A grafia latina do título aponta, ironicamente, para uma obra antiga. Em Bizâncio, no século IX da nossa era, Fócio, que depois seria patriarca de Constantinopla, compilou uma antologia que chamou Bibliotheca ou Myriobiblion. A obra consiste, de acordo com o subtítulo, no Registro e enumeração dos livros lidos por nós, 279 em número, dos quais nosso querido irmão Tarásio, deseja ter um resumo.1
Na Bibliotheca de Fócio, os resumos seguem a evocação da memória do autor. Não há hierarquia, nem sequer a intenção de agrupá-los por assunto ou por ordem cronológica. É importante, porém, destacar que o afeto e a cumplicidade intelectual são os motores desse empreendimento, pois Fócio organiza Bibliotheca atendendo ao pedido do irmão, que desejava conhecer os livros lidos e discutidos durante sua ausência. A antologia nasce, assim, a partir dessa “dolorosa separação”.2
A obra de Fócio, ditada pelo amor fraterno, transforma-se, mais tarde num importante repositório de livros perdidos para sempre.
A Bibliotheca de Rosângela Rennó, construída pelo obscuro amor às imagens, almeja ser um repositório das fotografias perdidas para sempre. A partir dela, nos é possível perceber o fluxo abrumador de fotos vernaculares que são produzidas, arquivadas e descartadas continuamente.
A obra, complexa e dispersa, consiste de uma instalação e um livro de artista. Instalação e livro não convivem no mesmo espaço nem no mesmo tempo. O livro, publicado por uma editora espanhola, pode ser comprado ou consultado em bibliotecas.3 A instalação, apenas contemplada em fotos ou enquanto exibida. Ao ir e vir entre ambos, a experiência do leitor é sempre fragmentária e incompleta, instável como a memória ou como o esquecimento.
Desde seus começos, no final da década de 1980, o trabalho de Rosângela Rennó desliza, ao mesmo tempo, pela elegância formal e pela denúncia social. Através de refinadas estratégias de apropriação, deslocamento e recontextualização, suas obras evocam um acúmulo de sentidos pessoais, sociais e culturais. Referências constantes ao apagamento da identidade, à amnésia social e às memórias familiares ou domésticas ressoam em obras abertas a múltiplas interpretações, nas quais o reconhecimento depende do contexto cultural de cada um. A beleza de uma configuração formal impecável permite que uma voz poética e irônica se faça escutar persuasivamente. Ávidos por contemplar, os espectadores são impulsionados a refletir sobre os assuntos sociais tão delicadamente impregnados em suas obras.
Em Bibliotheca, uma coleção de álbuns de fotos dos finais do século XIX até a década de 1980 é desmontada, editada e remontada para criar uma obra complexa que sinaliza algumas das questões fundamentais da nossa época: o esquecimento generalizado e a necessidade de memória frente às catástrofes e às diásporas do século XX.
Já faz mais de uma década que estamos acostumados a ver, nos jornais ou na televisão, imagens de pessoas que exibem, para quem queira ou possa ver, fotografias de seus entes queridos arrancados do seio da família: a mãe, pedindo por justiça, mostra a foto de sua filha, vítima do terrorismo de Estado, desaparecida em alguma cidade da América Latina; a mulher, desconsolada pela morte do filho adolescente num tiroteio nas favelas do Rio de Janeiro, exibe a imagem de um menino franzino e sorridente; o homem iraquiano brande, ante o fotógrafo estrangeiro, as molduras rebuscadas e, por isso, comoventes que enquadram as fotografias dos seus irmãos, mortos na guerra.
O fato, cada vez mais comum, de exibir publicamente as imagens particulares parece apontar para a dimensão não simbolizável da tragédia, aquela que denuncia seu lado mais obscuro e perverso.4 O álbum de família, repositório dos relatos mais íntimos e pessoais, é saqueado por seus próprios guardiões porque nele residem os únicos testemunhos concretos das suas perdas.
Ao mostrar para nós, que vivemos em outras terras e temos outras línguas, as fotos dos seus, esses desconhecidos se tornam, subitamente, familiares. Olhamos para eles, como eles olhariam para nós, nas mesmas circunstâncias. Nós nos reconhecemos na situação em que essas fotos foram feitas: no grupo escolar, na carteira de identidade, no colo da mãe, na festa de aniversário, nas férias. Essas fotografias são provas de existência que resistem a se incorporar ao campo da representação, pois emergem irrefutáveis, como espelhos do real, detentoras privilegiadas dessa única verdade possível.
Ao reconfigurar os álbuns perdidos, Rosângela Rennó realiza uma operação similar. Apropria-se das memórias dos outros e as levanta, como espelhos, para que nelas possamos ver a nós mesmos.
Da Bibliotheca
Na instalação Bibliotheca, um conjunto de 37 mesas/vitrines contém os cem álbuns de família, viagens e coleções de diapositivos que Rennó colecionou ao longo de dez anos. Um mapa-múndi, um arquivo e uma foto suplementam a obra.
As vitrines são diferentes das que costumamos encontrar nos museus: o que se vê na parte superior das mesas é apenas uma reprodução fiel, em escala 1:1, do conteúdo do pequeno móvel envidraçado. Os álbuns e as caixas de diapositivos são apenas entrevistos através das laterais de vidro.
A artista criou um código de cores para o fundo e a estrutura das mesas, em função da origem das imagens e do lugar de aquisição do objeto. Assim, a agrupação das vitrines, com seus álbuns e suas estruturas coloridas, cria uma nova cartografia, o mapa de um mundo nômade, atravessado por navegações e regressos.
O planisfério mostra o código de cores: vermelho para a Europa, verde para a Oceania, marrom para a Ásia, laranja para a África, azul-escuro para a América do Norte e Central e azul-claro para a América do Sul. Uma centena de alfinetes numerados, da cor correspondente ao continente de origem do álbum, foram fincados nas cidades onde cada um foi adquirido.
No pequeno arquivo de aço negro de duas gavetas conservam-se as fichas que descrevem os álbuns. Em cada uma delas estão registradas as informações sobre o conteúdo de cada um deles. A autora criou também, para cada coleção, um pequeno relato que surgiu a partir da observação dos grupos de imagens conservadas e do modo como foram arquivadas.
Perto do arquivo, uma fotografia de duas faces reproduz a frente e o verso de uma estante que parece conter uma possível bibliografia do trabalho. Em Restante, se alinham livros sobre arquivo, biblioteca, olvido, memória, museu, citação, fotografia vernacular, álbuns de família.
No livro de artista Bibliotheca - que não está na galeria, mas que pode ser adquirido em livrarias ou consultado em bibliotecas - estão reunidas cerca de 350 fotografias que pertencem aos cem álbuns colecionados e fechados para sempre. O livro-objeto, cujo pequeno tamanho pretende preservar o caráter intimista da relação entre o espectador e a imagem vernacular e cujo formato horizontal remete ao dos álbuns convencionais, é, também, uma referência ao livro homônimo de Fócio e se relaciona de imediato com o conteúdo narrativo dos álbuns que jamais serão abertos novamente.
Do colecionador
.
.. para o colecionador [...] a posse é a mais íntima relação que se pode ter com as coisas: não que elas estejam vivas dentro dele; é ele que vive dentro delas.
- Walter Benjamin
- Walter Benjamin
A frase enigmática “Animais (pássaros, formigas), crianças e homens velhos como colecionadores”, localizada no arquivo “H” do Passagen-Werk de Walter Benjamin, parece sugerir um certo biologismo, um impulso primordial de colecionar, que é logo desmentido pelo autor. Porque para Benjamin - ele mesmo colecionador -, cada simples objeto dentro da coleção é tão pleno de sentidos que se transforma numa soma enciclopédica do conhecimento de sua época.5
O colecionador é um ser que mantém uma relação muito misteriosa com os objetos dos quais não prioriza a serventia, “mas que os estuda e os ama como o palco, como o cenário de seu destino”.6 Intérpretes do acaso, os colecionadores olham através das coisas para um passado remoto e retêm o poder de se apossar de algo sem valor e de transformá-lo numa peça valiosa, pelo menos para eles. Essa operação lhes possibilitaria desvelar o significado secreto dos objetos. Colecionar, deste ponto de vista, seria uma forma de exercer a memória prática e ativa e a mais convincente das manifestações profanas de proximidade e presença.7
Porque cada objeto adquirido é ligado a um lugar e a uma data - os de sua incorporação na série -, toda coleção é também um diário, um diário de viagens, mas também um diário de sentimentos e de estados de ânimo, dessa obscura mania que nos leva a organizar o fluir da vida através de uma série de objetos que tentamos resgatar do esquecimento.7
De certo ponto de vista, poderíamos dizer que Rosângela Rennó opera como uma colecionadora. A artista trabalha com as sobras da cultura - fotogramas descartados, arquivos de fotógrafos populares, arquivos penitenciários, álbuns de família esquecidos, lembranças de viagens extraviadas, notícias irrelevantes da crônica social ou policial. A obscura pulsão arquivista que a obriga a reunir e reorganizar múltiplas coleções - de álbuns, de fotos, de textos - parece obedecer à necessidade de deter o correr da própria vida e das próprias imagens, numa série de momentos arrebatados à dispersão no comum esquecimento ou à dissolução na amnésia social.
Em Bibliotheca, Rennó põe em marcha seu vício de colecionadora profissional e nos demonstra os complexos pactos que mantém com a memória. Suas estratégias de exibição e montagem recortam, fragmentam e editam o mais heterogêneo: de um luxuoso álbum do século XIX às vulgares capas de plástico das lojas de fotografia instantânea, de uma coleção de daguerreótipos a caixas de slides da década de 1960. Nesses álbuns sucedem-se caoticamente imagens de desfiles militares, cerimônias de casamento, uma manhã na praia, interiores vazios: os ritos do amor, da loucura, da guerra, as viagens e os regressos, o nascimento e a morte.
Na instalação, a coleção é escamoteada - oculta sob sua imagem plastificada - ou relatada - nas fichas do arquivo. No livro, a artista anula os códigos narrativos preexistentes e, ao destacar as imagens dos seus lugares de origem e remontá-las em uma nova coleção, propõe a invenção de novos sistemas, já que, através da edição dos álbuns ou das imagens, nem sequer nos é permitida a leitura cronológica.
Diante da instalação, avistamos, repetidamente, uma visão fantasmagórica que se mostra e se oculta. A narrativa se despedaça e estamos impedidos de atravessar os vazios; a imagem pontual se concentra em sua máxima intensidade e só nos é permitido ver, na aparente desordem dos signos, uma enumeração infinita de detalhes.
Do álbum de fotos
Não há nenhuma biblioteca viva que não abrigue, em forma de livro, um número de criaturas das regiões fronteiriças. Não precisam ser álbuns de colar ou de família, nem cadernos de autógrafos ou textos religiosos...
- Walter Benjamin
- Walter Benjamin
A palavra latina ‘álbum’ quer dizer ‘branco’ e, entre os antigos romanos, aludia à tábua - em branco -, onde se faziam as transcrições, para serem expostas à leitura pública, frases comemorativas, editais dos pretores, anúncios. Mais tarde passou a designar um livro em branco, destinado ao registro de pensamentos, notas pessoais, poesias, autógrafos, trechos de música, impressões de viagem e, por fim, um livro de folhas de cartolina ou de papel grosso, às vezes luxuosamente encadernado, próprio para colar fotografias ou cartões-postais.
Walter Benjamin o evoca:
“
...os álbuns fotográficos. Eles podiam ser encontrados nos lugares mais glaciais da casa, em consoles ou ‘guéridons’, nas salas de visitas - grandes volumes encadernados em couro, com horríveis fechos de metal, e as páginas com margens douradas, com a espessura de um dedo, nas quais apareciam figuras grotescamente vestidas ou cobertas de rendas.9
Para o filósofo, o álbum se constitui como uma soma da memória da burguesia do século XIX, uma memória estática e, sobretudo, falsificada. O costume de colecionar fotos em álbuns - assinala - surge na mesma época em que o hábito do retoque começa a generalizar-se e o gosto experimenta uma súbita decadência.10 Os fotógrafos, que se contentavam com dispositivos para apoiar a cabeça ou os joelhos, começam a utilizar outros acessórios artísticos: colunas, cortinas, tapeçarias, cavaletes, palmeiras, grandes telas pintadas - simulacros da ficção.
Ainda hoje, em alguns lugares do mundo, o estúdio do fotógrafo, um espaço ambíguo de produção e de representação, imita o salão da burguesia ou inventa paisagens bucólicas de riachos serpenteantes e neves pintadas. A foto, posada nesse cenário kitsch, reproduz uma cena teatral11 vivida deliberadamente em um lugar fictício, para um público determinado. O álbum abrigará essas representações, que serão atualizadas cada vez que o narrador o abrir e relatar suas histórias.
Suas páginas entesouram as imagens de pessoas em suas comemorações mais particulares, cenas íntimas da vida privada: nascimento, batismo, primeira comunhão, casamento; um menino em seu berço, o primeiro dia de aula, a família na praia ou na montanha, pais e filhos, avós e netos, almoços ou cenas em torno da mesa, piqueniques, festas, a construção da casa, o baile de carnaval, o navio, a viagem, o exílio, o regresso.
Uma narrativa por imagens se desfaz entre as páginas do álbum, grossas páginas marrom-escuro ou cinzentas, entre as que se pousava a delicadeza de um papel de seda com relevos de teias de aranhas, de ondas ou de pequenas estrelas... Dentro dele não somente as fotos acumulam-se: há cartões-postais, bilhetes, passagens de trem, recibos de hotel, recortes de jornais e também rastros de corpos: a impressão da planta dos pés dos recém-nascidos, dentes de leite, uma mecha de cabelo cortado presa por uma fita desbotada... Uma voz - em geral feminina - conta as histórias escondidas entre suas páginas. Avós, mães, tias, irmãs mais velhas atualizam um relato que vai sendo pontuado através dessas imagens e desses objetos. O romance familiar, que se condensa nas velhas fotos, se dissemina e se adensa.
Para Bourdieu, o álbum de família expressa o essencial da memória social. Não há nada mais parecido com a introspectiva busca do tempo perdido do que esses arquivos de fotos familiares com seus comentários, a peça principal no ritual de integração a que a família submete seus novos membros. As imagens do passado, postas em ordem cronológica - a ordem lógica da memória social -, evocam e comunicam memórias de eventos que devem ser preservados porque o grupo os vê como um fator de unificação. O álbum de família tem toda a claridade de uma tumba fielmente visitada.12
Se o álbum é, a maior parte das vezes, organizado cronologicamente, as narrativas quase nunca o são. Cada vez que alguém abre o álbum, o faz em busca de uma determinada imagem - o aniversário de 15 anos da menina, o batismo do menino, o casamento - e, depois, vai avançando à deriva segundo a evocação e as recordações. Pulam-se páginas, volta-se atrás. A história vai sendo contada lançando pontes entre os vazios e as falhas, as do álbum e as da memória, porque o álbum demonstra aquilo que já aconteceu, reforça aquilo que está claro, repete o que todos sabem: que a viagem foi inesquecível, que o casamento foi luxuoso, que o menino é muito bonito, que a menina dança balé. A novela pessoal ou familiar que se inscreve nas páginas do álbum trabalha apenas com resíduos, fragmentos de paisagens e de acontecimentos, retratos desfocados que a grande maré da vida deixou sobre a praia. Todo o tempo perdido.
A ampliação do espaço autobiográfico, da memória e do testemunho, não só no campo teórico, mas também no da criação literária e artística marca os últimos anos do século XX. Registrar nossas histórias individuais e coletivas, parece ser o único recurso possível para que possamos criar mitos fundadores que substituam nossos relatos desfocados, nossas identidades falsas. A fotografia, com sua enganosa ilusão de veracidade, perfila-se como o meio mais adequado para atualizar a própria fábula pessoal e propagá-la no interminável presente da arte. A foto extraída do álbum de família configura-se como o arquivo mais enfático e mais próximo de nossa identidade pessoal, geracional e familiar.
Das vitrines
Basta observar um colecionador manuseando os objetos em seu mostruário de vidro. Mal os segura em suas mãos, parece inspirado a olhar através deles para os seus passados remotos.
- Walter Benjamin
- Walter Benjamin
Impossível manusear os objetos nas vitrines de Bibliotheca. O que elas exibem sob o vidro é uma foto em tamanho natural do seu conteúdo. Os belos álbuns de couro ou veludo, as velhas caixas de diapositivos, os pequenos e vulgares álbuns de lojas fotográficas, os maços de fotos amarradas com barbante são vistos, apenas, através das laterais de envidraçadas.
Para a artista, este procedimento, ao impedir a experiência da coisa e oferecer plenamente só uma imagem brilhante e distanciada, profana pela última vez o que já foi dessacralizado e, ao mesmo tempo, propõe uma discussão sobre o papel do museu na cultura de massas.
A operação de Rennó parece também recusar aquele excesso de sentimentalismo que emana dos objetos do nosso passado recente. Os álbuns com suas fotos estão ali, mas se quisermos vê-los, deveremos fazer um esforço. Imagem e referente coexistem, paralelos e próximos, no mesmo espaço sem nunca se encontrarem, sem nunca poderem ser contemplados simultaneamente.
Um código de cores rege a organização das vitrines metálicas. As cores que fazem referencia aos continentes servem de fundo às fotos das coleções e à estrutura superior das mesas. Assim, a vitrine 38, cuja estrutura azul-claro indica que seu conteúdo foi comprado na América do Sul, exibe, sobre fundo laranja, três álbuns com fotos feitas na África.
Na vitrine 32, o fundo e a estrutura azul-claro estão a nos dizer que a procedência e o local da venda dos álbuns é o mesmo: América do Sul. Lado a lado, sobre o azul impecável, um álbum aparentemente dos anos 1950, cuja capa revestida de plástico transparente ostenta um desenho de orquídeas, convive com outro, do final do século XIX, com elegantes porta-retratos, forrados em veludo de seda grená embutidos na capa.
As vitrines agrupam-se em ilhas de três ou quatro e, de forma enigmática, traçam um dos possíveis mapas da nossa época. Nesses estojos coloridos, sob essas fotos brilhantes, estão encerradas, silenciadas e cegas para sempre centenas de histórias individuais: nascimentos e mortes; batismos, comunhões e crismas; namoros e casamentos; formaturas, festas e viagens. A calma das paisagens e o fervilhar das cidades, os rostos indecifráveis dos desconhecidos, a casa paterna, o país distante, a nova pátria.
Do arquivo
Na prática, se há uma contrapartida da desordem de uma biblioteca, seria a ordenação de seu catálogo.
- Walter Benjamin
- Walter Benjamin
Na galeria, o pequeno arquivo plano passa quase despercebido. Nas suas duas gavetas estão depositadas as fichas que descrevem cada um dos álbuns. Nelas enumeram-se as características de cada coleção: unitária ou múltipla, formato, capa, tipo e cor do papel, número de páginas, cantoneiras, entrefolhamento de seda, preenchimento completo ou incompleto, quantidade e formato das fotos. Registram-se, ainda, os locais de procedência e destino das imagens, a existência ou não de inscrições textuais, se se trata de fotos ou slides, o número de ordem do álbum, a vitrine na qual ele se encontra.
O mais comovente do trabalho, porém, reside na pequena narrativa, que sob as rubricas “Assunto” e “Inscrições/Textos” descreve o conteúdo de cada coleção. Nelas, através de uma linguagem aparentemente objetiva, a artista alinhava as minúsculas histórias escondidas em cada álbum. A ficha 26, por exemplo, apresenta um álbum comprado na feira de San Telmo, em Buenos Aires. A peça, cujas capas rígidas revestidas em couro ostentam a bandeira de Israel e a estrela-de-davi ao lado de outros símbolos judaicos, tinha sido desmontada. As imagens foram destacadas do papel cinza claro, deixando marcas no verso das fotografias. Ali se lê:
Assunto
As fotos foram arrancadas do álbum e separadas em 3 “grupos”, unidos, apenas, com um elástico, e narram a história de um sapateiro pobre, judeu alemão que após fugir da Alemanha nazista encontrou a prosperidade como proprietário de uma sapataria em Buenos Aires, ao lado da esposa e dos filhos que chegaram. A história, contada através das fotografias de seu álbum desfeito, é comovente e intraduzível em palavras. Duas imagens simples e poderosas ficam na memória: o Zepelim, muito próximo, com a suástica pintada no leme e o postal em hebraico do navio que trouxe o casal para a América do Sul.
Inscrições / Textos
Não há inscrições sobre as páginas do álbum. As fotografias que se supõe terem sido realizadas na Alemanha apresentam várias inscrições em hebraico. Algumas inscrições em espanhol misturado ao hebraico, no verso das fotografias, sobretudo as que são mais recentes, realizadas na Argentina.
A narrativa elíptica deixa transparecer, entre as lacunas do relato, a história de um dos muitos exílios do século XX. Adivinhamos as imagens escamoteadas: o sapateiro, a esposa, o filho pequeno, a desolada paisagem dos pampas; vemos as imagens escritas: o Zepelim, o navio. Nossa memória nos permite refazer, com fragmentos de imagens outras, os rostos apagados, os sapatos de fivela, o nascimento do filho, a loja pequena na nova pátria.
Na leitura sucessiva das fichas se esboça uma narrativa maior, feita de vazios e deslocamentos, na qual nada está dito por inteiro e que, por isso, avança penosamente através dos interstícios dos seus frágeis encadeamentos. Entre uma história e outra, entre uma ficha e outra, as falhas constroem um espaço de suspensão do qual emergem, desordenados, todos os relatos.
Do mapa
Renovar o mundo velho - eis o impulso mais enraizado do colecionador ao adquirir algo novo...
- Walter Benjamin
- Walter Benjamin
Michel de Certeau afirma que toda narrativa é a narrativa de uma viagem.13 O topos da viagem percorre desde sempre o imaginário ocidental. De Virgílio a Dante, de Marco Polo a Calvino, de Cervantes a Borges, para permanecer apenas na tradição latina, é difícil encontrar um autor que não aborde, de alguma maneira, o tema da viagem. Para Georges Van Der Abbeele, a narrativa, como estrutura linear, determina em si mesma uma viagem; o deslocamento de um ponto inicial até o destino final: uma linha sobre o mapa.14
O motivo literário da viagem atualiza rupturas espaciais e temporais. Deixar o lar em busca de aventuras pressupõe, também, ansiar pelo retorno pois a viagem implica, além de fantasia e mudança, memória, esquecimento, perda, saudade, morte.
O mapa fixado na parede da galeria desenha esses percursos. Sobre um planisfério que exibe na lateral inferior esquerda o código de cores, estão os cem alfinetes já mencionados. Observando com atenção, percebemos que eles são mais numerosos sobre determinadas cidades da América do Sul e da Europa. Nenhum álbum parece ter sido comprado na Ásia e na África, poucos na América do Norte e na Oceania. Sem dúvida, o mapa exibe os roteiros de viagem da artista e de alguns dos seus amigos, nos últimos dez anos. Mas, além de tudo, no embaralhado das cores dos alfinetes, o mapa mostra de maneira muito parcial e também muito aleatória, o trânsito de algumas imagens e de algumas famílias ao longo do século XX.
O conceito de trânsito, central no pensamento de Mario Perniola, supõe uma “experiência de simultaneidade, de disponibilidade e de dilatação do presente que caracteriza a vida contemporânea”.15 Refere-se a um estado de provisoriedade e de indefinição, em que os aspectos estáticos e dinâmicos da vida parecem, paradoxalmente, coincidir.
Os laços com a terra perdida já não serão mais compensados com a esperança de uma terra prometida. De alguma maneira todos carregamos hoje essa consciência de não-pertencimento, de falta de raiz, de alheamento. Por isso, o refugiado e o exilado, aqueles que perderam para sempre o lar, parecem ser as figuras emblemáticas do nosso tempo. Sobre o mapa, cada alfinete colorido sinaliza a história de uma viagem, de uma família, de uma perseguição, de um reencontro, de uma fuga. Uma cartografia de exílios e de regressos pode ser delineada através desses registros aparentemente objetivos.
Da estante
Vocês já ouviram falar de pessoas que adoeceram com a perda de seus livros, de outras
que neste oficio se tornaram criminosas.
- Walter Benjamin
que neste oficio se tornaram criminosas.
- Walter Benjamin
Próxima do arquivo, instalada de maneira perpendicular à parede, uma dupla fotografia mostra a frente e o verso de uma fileira de livros numa prateleira. A foto, que tem por título Restante, não pertence plenamente à Bibliotheca, mas faz parte do grupo de obras que a cercam. Essa existência lateral, marginal, óbvia - afinal, entre todos os objetos é o que mais se aproxima de uma biblioteca - adivinha-se na aparência discreta, quase silenciosa que compartilha com o arquivo. Como um paratexto, nos oferece os protocolos de leitura do texto principal, Bibliotheca.
Na estante, os livros se organizam por assunto: arquivos, biblioteca, esquecimento, memória, museu, citação, fotografia, álbum de família. Ao alinhar obras fundamentais para a compreensão das estratégias museológicas da contemporaneidade, junto de textos de ficção, divulgação e catálogos de arte, a obra faz um sinal de cumplicidade aos leitores contumazes e oferece uma bibliografia ousada e lacunar aos incautos. Mais ainda, Restante, o que restou de uma biblioteca, é, ao mesmo tempo, uma justificativa irônica - entre os livros está a Bibliotheca de Fócio - e uma declaração feroz. Como os álbuns, os livros aparecem fechados, intocáveis, enclausurados em sua imagem brilhante.
Do livro
... toda ordem é precisamente uma situação
oscilante à beira do precipício...
- Walter Benjamin
oscilante à beira do precipício...
- Walter Benjamin
O livro de artista Bibliotheca contém nas suas páginas - suas estantes - apenas fotografias, centenas de fotografias, que se articulam seguindo uma ordem misteriosa.
Antes de clausurar para sempre os álbuns, Rosângela Rennó recortou, de cada um deles, algumas imagens e, com elas, criou um novo arquivo, o livro emblematicamente chamado Bibliotheca. Talvez, a enumeração razoável das imagens que se perderam ao longo do século.
O critério que guiou a seleção foi o de encontrar na foto uma certa estranheza, um ponto cego de sentido que fizesse dessa imagem algo singular e, ao mesmo tempo, múltiplo. Esse ponto, o punctum de Roland Barthes, determinou uma linha com a qual se alinhavaram os relatos fragmentários de cada álbum.
O processo da artista é moroso e complexo: num primeiro momento compra os velhos álbuns esquecidos nos mercados de pulgas. O álbum, que fora em algum momento a narrativa de uma viagem inesquecível, de uma família feliz, de uma vida intensa, foi abandonado no lugar para onde vão as coisas que já não têm utilidade. Ao adquiri-lo, Rennó recupera, discretamente, o valor das memórias sem valor.
O movimento seguinte supõe a lenta contemplação das imagens. Demoradamente, em silêncio, as imagens são interrogadas. Elas contarão a sua história. Por fim, a artista seleciona e refotografa uma quantidade considerável de imagens. Depois, sela para sempre os álbuns. Através dessa operação, a artista devolve às fotografias esquecidas uma visibilidade que lhes estava interditada.
Todas as fotografias do mundo formam um labirinto.16 No centro do labirinto traçado em Bibliotheca se esconde, multiplicadas centenas de vezes, a foto do Jardim de Inverno que Barthes nos ocultou. Aquela foto na qual ele encontrou, para sempre, o rosto perdido de sua mãe. Através dela, o escritor compreende que a mesma devia ser interrogada em relação ao que chamaríamos romanticamente de amor e morte.17 Sempre impregnadas pelo amor ou pela morte, as imagens urdidas pela fotografia são da mesma ordem das que vemos através dos vidros e dos espelhos. Nesse atravessar se instala uma interminável constatação: sendo um acúmulo de instantes inesquecíveis e já esquecidos, as páginas da Bibliotheca, feitas de histórias alheias, nos obrigam, de viés, a reviver a nossa própria história.
Do museu
Museu e mausoléu estão conectados por algo a mais que uma associação fonética. Museus são os túmulos familiares dos trabalhos de arte.
- Adorno
- Adorno
Em 1849, Flaubert escreveu a primeira versão de A tentação de Santo Antonio, a que retomaria em 1856 e em 1872. Em virtude dos seus mecanismos alucinatórios, da interminável progressão de grotescas fantasmagorias, este livro se constitui como o negativo perfeito da prosa discreta, sombria e murmurante do autor de Madame Bovary.18 O texto, uma sucessão de delírios e violências, pesadelos e espectros comoveu seus contemporâneos pela desmedida riqueza de sua fantasia. A Tentação seria, para a literatura, o que as obras de Bosch, Breuguel ou Goya foram para a pintura.
Em Fantasia da biblioteca, Foucault nos adverte que essa obra não é fruto de divagações ou lapsos de imaginação, mas o resultado prodigioso de um apurado trabalho de edição. O filósofo enumera de modo prolixo os livros utilizados por Flaubert na sua pesquisa erudita - a imagem de Diana de Éfeso, por exemplo, com leões em seus ombros e com frutas, flores e estrelas entrelaçadas sobre seu seio e grifos e touros surgindo da boca de um peixe que rodeia firmemente sua cintura é a exata reprodução da prancha 88 do último volume da tradução de Creutzer de Religions de l´Antiquité.19
Percebemos, então, que a região espectral já não se estende pelos domínios da noite ou do sonho da razão. As fantasmagorias, frutos da leitura cuidadosa, da continuada e consciente vigília, residem nas estantes da biblioteca, no rumor das vozes do passado, no exato escandir de suas frases, no acúmulo minucioso dos fatos, na reprodução de reproduções.
A tentação de Santo Antônio pode-se colocar ao lado do Déjeuner sur l´herbe (1863), talvez a primeira tela moderna em que podemos detectar a memória de outras pinturas e de outras tradições pictóricas. Assim como o livro de Flaubert supõe a existência de uma ampla biblioteca, a obra de Manet leva implícito o reconhecimento da nova e substancial relação que as obras de arte estabelecem entre si a partir da existência dos museus de arte.
Num mundo onde os museus começam a surgir, a arte, concebida em constante relação com a memória - Baudelaire fala de uma mnemotécnica do belo -, evoca os seus antecessores para ativar as imagens do passado, transformando-as. A relação inaugural, descrita por Foucault, entre Manet e o museu e Flaubert e a biblioteca, é o início de uma dialética arquivística que alcança, na contemporaneidade, suas consequências mais extremadas.
Para Malraux, essa dialética arquivística proveria meios para rearmar, com os fragmentos dispersos da tradição, uma metatradição global, um museu sem paredes - um museu imaginário - cujo eixo organizador seria a família do homem. Certas formas significativas teriam uma espécie de sobrevida, por isso costumam emergir, uma e outra vez, como espectros do passado. Nesse contexto, o essencial, não se localizaria na intimidade da alma, mas na exterioridade da imagem e da escrita.20
Como muitos trabalhos contemporâneos, Bibliotheca já não pressupõe o museu, nem sequer a biblioteca que lhe dá nome. Bibliotheca, construída com os despojos dos arquivos mais pessoais e mais íntimos, aspira à condição de um novo arquivo, íntimo e público ao mesmo tempo. As memórias fotográficas de pessoas comuns transformam-se nas memórias comuns a todos. Se a arte, hoje mais do que nunca, comporta uma região de sombras na qual se retraem os restos que não se deixam eliminar - o insolúvel, o inquietante, o enigmático -, é nessa zona de penumbra que deve buscar a essência de Bibliotheca. Em suas vitrines/páginas, as imagens perdidas retornam e propagam, para quem queira escutar, que não há uma só história, um só sentido, mas que existem simultaneamente múltiplas histórias, infinitos sentidos.
1. Photius, Biblioteca sine Myriobiblion. p.1. Transcrito por Roger Pearse, Ipswich, UK, 2002. http://www.ccel.org/p/pearse/morefathers/photius_03bibliotheca.htm
2. Idem, p.2.
3. Rennó, Rosângela. Bibliotheca. Barcelona: Gustavo Gilli, 2003.
4. Cf. Silvestri, Graciela. La presencia del ausente. Problemas de representación pública en las artes plásticas. www.bazaramericano.com. e Arfuch, Leonor. Álbum de familia & Arte, memoria y archivo. In Memoria. Antología de Punto de Vista. Buenos Aires: Punto de Vista/ Libronauta, 2001.
5. Benjamin, Walter. Apud Crimp, Douglas. In the museum ruins. Cambridge: The MIT Press, 1995, p.201.
6. Benjamin, Walter. “Desempacotando minha biblioteca”, in Rua de mão única. Obras escolhidas v..2. São Paulo: Brasiliense, 1993, p.228.
7. Benjamin, 1995, p.202.
8. Cf. Calvino, Ítalo. Colección de Arena. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 13 e ss.
9. Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política, in Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas v.1. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 97-98.
10. Benjamin, 1986, p.97-98.
11. Cf. Silva, Armando. Álbum de familia - La imagen de nosotros mismos. Colômbia: Norma, 1998, p.28.
12. Bourdieu, Pierre. Photography. A Middle-brow art. Stanford: Stanford University Press, 2001.p. 31. Tradução da autora.
13. Certeau, Michel de. Apud Van Der Abbeele, Georges. Travel as Methafor: From Montaigne to Rousseau. Minneapolis: University of Minessota Press, 1992, p.xix.
14. op. cit., p.xiii-xxx.
15. Perniola, Mario. Pensando o ritual. Sexualidade, morte, mundo. São Paulo, Nobel, 2000, p.24-25.
16. Barthes, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p.109.
17. Idem, p.110.
18. Cf. Foucault. Michel. “Fantasia of the library”, in Cahiers Renaud-Barrault, n.59, 1967, p.7-30.
19. Idem, p .12.
20. Cf. Malraux, André. The voices of silence. Princeton: Princeton University Press, 1972, p.13-130.
MELENDI, Maria Angélica. Bibliotheca: ou das possíveis estratégias da memória. In RENNÓ, Rosângela. O Arquivo Universal e outros arquivos. São Paulo: Cosac Naify Edições / CCBB, 2003, p. 23-35.