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Seu espelho, um caleidoscópio

Her mirror, a kaleidoscope

Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Body of Soul (The State of the World)

    [...] Em Corpo da alma (2003-09) e Corpo da alma (o estado do mundo) (2006-09), o ato de colecionar citações à fotografia na imprensa desloca-se do universo dos textos e volta-se a um gênero recorrente no fotojornalismo diário em diversas partes do mundo. São imagens em que figuram pessoas segurando retratos impressos de líderes religiosos ou principalmente de familiares ou amigos desaparecidos. O gesto nunca é despropositado: ele envolve apontar diretamente para a câmera, como se assim se pudesse lançar um apelo. Entre fotografias - as que sustentam e as que as documentam em sua busca -, essas pessoas tomam posse dos códigos de aparição para reivindicar sua própria existência e a de seus entes queridos, a despeito da iminência de morte física ou simbólica enquanto imagem. Como uma terceira camada, a reprodução reticulada e em grandes proporções que a obra faz desses originais não desmancha, e sim potencializa, suas tensões. Torna-os mais uma vez imagem, repetição de um atestado de finitude, apesar da promessa de transcendência. Por outro lado, ratifica a inteligência política daqueles que ocupam brechas possíveis para disputar a memória social e, só assim, salvaguardar suas memórias pessoais do total apagamento. 

    É lógico que, em um país como o Brasil, o sentido de disputa, que é inerente à vida e às relações de alteridade, ganha contornos drásticos, advindos de uma conjuntura de extrema desigualdade socioeconômica, acompanhada da ineficiência das instituições políticas e jurídicas para refrear a concentração de renda e garantir direitos básicos a toda a população. Esse quadro exige que se parta de marcos claros de gênero, mas principalmente de raça e classe, para analisar dinâmicas formadoras de identidade, representação e memória. Convém escrutinar como esses marcadores ramificam o próprio conceito de memória, além de outros, como autoria, anonimato, originalidade, transcendência, apropriação e fantasmagoria, caros às histórias da fotografia, da arte e das humanidades, às quais se endereça a pesquisa de Rosângela Rennó. 

    A relatividade semântica ainda afeta conceitos de um vocabulário político, como as noções de público e privado, a todo tempo presentes nos modoscom que a artista comenta questões estruturais da sociedade contemporânea, sobremaneira a brasileira. São públicos os corpos e imagens daqueles que já detêm poder político e econômico, mas também, em espectro radicalmente oposto, os daqueles que vivem em situação de vulnerabilidade, sobre os quais as instituições de controle tentam sedimentar narrativas disciplinares: moradores de rua, jovens negros, encarcerados, trabalhadores, pessoas com identidades dissidentes etc. [...]


    MAIA. Ana Maria. Seu espelho, um caleidoscópio (excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9-35.
    [...] In Corpo da alma [Body of Soul] (2003-09) and Corpo da alma (o estado do mundo) [Body of Soul (The State of the World)] (2006- 09), the act of collecting press quotations that refer to photography moves away from the universe of the text and turns to a genre that recurs in daily photojournalism in several parts of the world: images in which people hold up printed portraits of religious leaders or, more importantly, of missing family members or friends. The gesture is never random. It involves pointing directly at the camera, as if making an appeal. Between photo shots—those that they hold up and those that document them in their search—these people take up the codes of appearance to claim their own existence and that of their loved ones, despite the imminence of physical or symbolic death as an image. As a third layer, the work’s large-scale, reticulated reproduction of these originals does not defuse tensions, but rather enhances them. It makes them once again an image, giving them another certificate of finitude despite the promise of transcendence. On
    the other hand, it ratifies the political intelligence of those who occupy small spaces to dispute the social memory and, thus, to safeguard their personal memories from total erasure. 

    In a country such as Brazil, it is only to be expected that the sense of dispute—which is inherent to life and relations of otherness— should take drastic contours which arise from a situation of extreme socioeconomic inequality, together with the powerlessness of political and legal institutions to curb income concentration and ensure basic rights to the entire population. This framework demands that we start from clear benchmarks not only of gender, but especially of race and class, to analyze the dynamics that shape identity, representation, and memory. It is worth looking at how these markers subdivide the very concept of memory as well as other ones, such as authorship, anonymity, originality, transcendence, appropriation, and phantasmagoria, dear to the history of photography, art, and the humanities, to which Rosângela Rennó’s research is addressed. 

    Semantic relativity still affects the concepts of a political vocabulary, such as the notions of public and private, constantly present in the ways Rennó comments on structural issues of contemporary society, especially in Brazil. The bodies and images of those who already hold political and economic power are public; however, in a radically opposite spectrum, the same can be said of those who live in vulnerable situations, on the basis of which the institutions of control try to consolidate a disciplinary narrative: street dwellers, young black people, prisoners, workers, people with dissident identities, etc. [...]


    MAIA. Ana Maria. Her mirror, a kaleidoscope (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9- 35.


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