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Rosângela Rennó, a filosofia da instituição fotográfica

Rosângela Rennó. The philosophy of the photographic institution
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Texts linked to the work Body of Soul


[...] Corpo da alma reúne retratos de jornal de gente que exibia fotografias de pessoas desaparecidas. A fotografia é o campo de batalha contra o esquecimento afetivo e da revolta. Se a imagem trata da carnalidade do nome, Espelho diário politiza conceitualmente a materialidade da fotografia. Diante da estranheza e do estrangeirismo de Corpo da alma e da Bibliotheca, cabe citar Julia Kristeva: “Estranho, o estrangeiro está dentro de nós: somos os nossos próprios estrangeiros, estamos divididos” (1).

Corpo da alma, Rennó recorre à Gestalt da percepção da forma: os círculos, recortes das fotografias de jornal, perfazem imagens. Para Rennó, a retícula (os círculos) é índice da fotografia impressa. Os círculos são apresentados em plotagem de vinil ou são gravados em aço inox. Essas versões solicitam raciocínios gestálticos para o princípio da emergência da figura. Com zonas opacas e espelhadas, a superfície brilha e “desbrilha”, a imagem fotográfica emerge e some. Essa é, etimologicamente, a origem da escrita da luz (fotografia). Qualquer meneio do olhar, como as superfícies recobertas por areia com sílica nas pinturas neoconcretas de Hercules Barsotti, busca a fulgência da forma. A imagem é fugidia no aço, como se repelida. O espelho destorce, a camuflagem confunde. A tarefa aqui é problematizar distorções e confusões estabelecidas pela fotografia para tratá-las como questões fenomenológicas. Em Cardiff, a versão em vinil exposta é cinza sobre cinza traz imediata referência à fotografia em preto e branco como ponderável índice da cor. Pela camuflagem, elabora-se a hipótese de inferência de cores da fotografia em preto e branco, apontada por Ludwig Wittgenstein (Remarks on color, III, 271-277). São esses os códigos do visível de Corpo e alma: o compromisso material e seus modos de percepção.

Vítimas de desaparecimento ou morte (por atos de guerra, terrorismo ou violência urbana), as pessoas, cujos retratos são exibidos por parentes, aludem a um estado de impotência. Em diagrama, Rennó expõe o olhar do espectador ao abandono entre o reflexo fugidio e os efeitos dispersivos da camuflagem. Corpo da alma pressupõe, pois, um olho vigilante. Fotografias, argumenta Flusser, são superfícies imóveis e mudas (2). Onde a tradição fotográfica mobiliza pelo congelamento do acontecimento e desmobiliza pelos processos de institucionalização, a trajetória de Rennó inclui “desimobilizar” sentidos da fotografia sob sono arquivístico e tornar visíveis fatos extra imagéticos. Seriam o acontecimento da pose e sua intencionalidade simbólica uma forma de constrangimento do corpo sobre a alma? O corpo já não é a prisão da alma, mas o oposto – no perfil das indagações de Michel Foucault em Vigiar e Punir. Como a alma para Foucault, a fotografia no trabalho Rennó é efeito e instrumento de uma anatomia política (3). [...]


    1.    Strangers to ourselves. Trad. Leon Roudiez. New York, Columbia University Press, 1991, p 181.
    2.    Filosofia da Caixa Preta. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002, p. 45.
    3.    Vigiar e Punir. Tradução de Ligia Vassallo. Petrópolis, Editora Vozes, 1977, p. 32.


HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó, a filosofia da instituição fotográfica (excerto de texto). In Artes Mundi 3. Cardiff: Artes Mundi Prize Limited, 2008, pp. 76-83.
[…] Corpo da alma is a collection of newspaper photographic images of people exhibiting photos of missing persons. Photography is a battlefield against emotional forgetfulness and a means for revolt. If the image deals with the carnality of the name Espelho diário (Daily mirror) conceptually politicises the materiality of photography. Faced with the strangeness and foreignness of Corpo da alma and Bibliotheca, it is appropriate to quote Julia Kristeva: “Uncanny, the foreignness is within us: we are our own foreigners, we are divided” (1). 

In Corpo da alma, Rennó resorts to Gestalt laws of perception of form: the circles, cuttings of photos from newspapers, configure images. For Rennó, the reticule (the circles) is an index of printed photography. The circles are presented in vinyl or engraved on stainless steel. Each of the two versions requires specific Gestaltic approaches to the figure to begin emerging. With opaque and mirrored areas, the surface shines and blocks, the photographic image emerges and disappears. This is, etymologically, the origin of the “writing of light” which is photography. Any movement of the eye, like the sparkling dark surfaces covered in sand and silicon in Hercules Barsotti’s neo-concrete paintings, seeks the splendour of the form. The image is fleeting on the steel, as if repelled. Mirror distorts, camouflage confuses. The task here is to problematise distortions and misperceptions caused by photography in order to treat them as phenomenological challenges. In Cardiff, the vinyl version on display is grey on grey making an immediate reference to the black and white photo as a ponderable colour index. For the camouflage, one draws up the hypothesis of colour inference, noted by Ludwig Wittgenstein (Remarks on colour, III, 271-277), for instance, when perceiving someone is blond in a black and white photo. These are the codes of the visible part of Corpo da alma: the material commitment and its modes of perception.

Victims of disappearance or death (through acts of war, terrorism or urban violence), the people whose portraits are shown by relatives, allude to a state of impotence. In a social diagram, Rennó exposes the viewer’s gaze to that abandonment the same way as it is placed between the fleeting reflection and the dispersive effects of the camouflage. Corpo da alma requires, then, a vigilant eye. Photographs, argues Flusser, are immovable, silent surfaces (2). Where photographic tradition immobilises by freezing time and uses the processes of institutionalisation to demobilise, Rennó “unimmobilises” meanings from photography against archival inertia and makes visible facts that lie beyond images. Could the pose and its symbolic intentionality be a kind of restriction of the body over the soul? Here the body is no longer the soul’s prison but the opposite – in the profile of Michel Foucault’s conclusions in Discipline and Punish. As with the soul for Foucault, so photography in Rennó’s work is the effect and the tool of a political anatomy (3). […]


    1.    Strangers to ourselves. Translation. Leon Roudiez. New York, Columbia University Press, 1991, p 181.
    2.    Filosofia da Caixa Preta. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002, p. 45.
    3.    Vigiar e Punir. Brazilian translation by de Ligia Vassallo. Petrópolis, Editora Vozes, 1977, p. 32.


HERKENHOFF, Paulo. Rosângela Rennó. The philosophy of the photographic institution (text excerpt). In Artes Mundi 3. Cardiff: Artes Mundi Prize Limited, 2008, pp. 76-83.


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