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Rennó ou a beleza e o dulçor do presente


Textos relacionados ao trabalho

  • Atentado ao Poder


Texts linked to the work Outrage against Power


    […] Na instalação Diferentes Idades da Mulher (1991) (35), Rosângela Rennó organiza um conjunto de nove fotografias de mulheres por ordem de idade numa escala ascendente/descendente, acrescentando textos sobre a parede e perfume de flores. A instalação tem sentido “didascálico” (1) ao tratar da condição da mulher nas diversas etapas da vida. Não importa quem são (a identidade das retratadas não tem qualquer importância) ou a idade; têm que seguir o rito existencial e a regra social e cultural que se cumprem imperturbavelmente na sociedade da amnésia. Esquecer não coincide exclusivamente com não lembrar, mas é também lembrar sem atentar para o processo de individuação. Lembrar-se e negar subjetividade. A raiz dessa instalação são as Alegorias das Etapas da Vida do Homem (ou da Mulher) e as Escalas da Vida, gravuras de fundo moralizante frequentes no século XVIII (2). A ideia de escala relaciona-se com aperfeiçoamento moral. Trata- se de representações arquitetônicas com degraus ascendentes e descendentes – inevitáveis no itinerário da existência – em forma de arco ou ponto. Suas partes mais baixas e extremas são nascimento e morte (ou batismo e extrema-unção na vida sacramental; por isso, os degraus são também espelhos da consciência). Rennó determina uma organização gráfica das fotografias e da escrita sobre a parede de modo a seguir, como um diagrama, o plano arquitetural das representações utilizadas nessas Alegorias e Escalas da Contra-Reforma. No entanto, a arquitetura de Diferentes Idades da Mulher, uma verdadeira Alegoria das Etapas da Vida da Mulher, foi invertida em forma de V, como se a ponte fosse vista especularmente, refletida no rio. Vinculada à ideia de árvore da vida, os atributos morais (ou funções culturais no sentido contemporâneo) nos remetem à ideia de ponte pela qual transitam as idades e cujo arco cruza o rio figurado da vida. Rennó utiliza perfume de rosa e jasmim para apontar o caráter volátil da matéria, sua transitoriedade. “Nem o odor [dizia Delacroix] nem o sabor se prestam a formar conjuntos sólidos e duráveis como a melodia ou a forma” (3). Simulacro dos odores do corpo idealizados, o perfume é culturalmente muito vinculado ao universo feminino como tática de sedução no jogo erótico (4). Em Diferentes Idades da Mulher, Rennó utiliza o perfume em excesso, a ponto de se tornar desagradável estar na sala de exposição. A obra converte sedução em repulsa e abandono. Como líquido, o perfume remete às águas do rio, aludindo à ideia de transitoriedade própria da metáfora da vida como um rio. As Alegorias e Escalas se referem ainda ao ciclo das estações presidido pelo Pai Cronos, encarnadas pelas quatro idades do homem. Ao trabalhar tão diretamente com o transcurso da vida, do nascimento à morte, Rennó opera a crítica, através da articulação de imagens, da própria função simbólica da fotografia como processo de retenção do tempo. Imagens estáticas de pessoas são retratos inesperadamente ativados, ainda que permanecendo inalterados. Articulados uns com os outros, todos ganham o sentido paradoxal de serem meramente fugidios congelamentos do curso inexorável do tempo.  […]


        1.    Didascália era, na Grécia antiga, o conjunto ordenado de preceitos e instruções relativos à represen- tação teatral, de ordinário elaborados pelo autor dramático e dados aos atores que lhe representavam as obras, conforme o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa
        2.    A este propósito, ver Carne y Muerte, Gloria e Inframundo, de Jaime Cuadriello, em Juego de Ingenio y Agudeza, la Pintura Emblemática de la Nueva España, México, Museu Nacional de Arte, 1994, com relação ao México. A interpretação dessas representações neste parágrafo são extraídas do texto de Cuadriello. Rennó partiu de um velho cromo com uma dessas alegorias das etapas da vida da mulher, legendado em espanhol, e que existia na fazenda de sua família em Minas Gerais. 
        3.    Edmond Roudnitska, L’Esthétique en question, Paris, PUF, 1977, p. 164.

        4.    Cumpre fazer uma referência a Objetos de Sedução (1975), de Lygia Pape, que reúne um conjunto de quinquilharias, inclusive perucas, unhas e cílios postiços, batom, vidros de perfume. 


    HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In Rosângela Rennó. Edusp: São Paulo, 1996, pp. 115-191.


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