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Rennó ou a beleza e o dulçor do presente






    “A névoa que recobre os primórdios da fotografia é menos espessa do que a que obscurece as origens da imprensa”, afirma Walter Benjamin na sua “Pequena História da Fotografia”. A névoa que recobre a história social da fotografia é mais espessa que a palavra, parece afirmar a obra de Rosângela Rennó. É dessa espessura do signo visual que Rennó paradoxalmente buscará a conversão da imagem em palavra: o olhar solitário na relação com o mundo é impedido de se deixar seduzir por imagens. Se o filósofo também dizia que a câmera estava cada vez mais apta a fixar imagens efêmeras e secretas (e o que dizer hoje com a produção de realidade virtual?), cujo efeito de choque paralisava o efeito associativo do espectador, Rennó propõe uma outra experiência, que seria agora a problematização crítica dessa relação. Portanto, a relação da artista não é a transposição ilustrativa do pensamento do filósofo. 

    Sob a organização formal das obras e instalações de Rennó corre o subtexto – talvez a trama principal de sua obra – que é o retrato crítico da fotografia. A trama desse texto de Rennó envolve o modo como a imagem alcança uma presentificação do modelo. Envolve aspectos básicos ou mais sutis da linguística, percepção, discurso da História, economia e apropriação social da fotografia e outros. Para definição desse processo, deve-se usar um termo da técnica fotográfica: essa obra é revelação da fotografia. Na verdade, a produção de Rennó tem marchado para constituir uma epistheme da fotografia, cujas raízes estão parcialmente na produção da década de 70. Para Rosângela Rennó, a fotografia é um lugar de trabalho (1) não necessariamente ou apenas o ato de fotografar e, enquanto tal, só poderá produzir sentido se tomado como um lugar de conhecimento. Em 1993, a artista declarava: “Gosto muito de ter a consciência de ser perversa com o código fotográfico, a sociedade, o rosto, a realidade. Talvez o desejo de mudar a realidade de certo modo”(2). 

    Nos anos 70, o território entre fotografia e arte havia perdido a rígida demarcação histórica, especialmente com a obra de artistas como Iole de Freitas, Miguel Rio Branco, Mário Cravo Neto, Emil Forman, Carlos Vergara, Boris Kossoy, Essila Burello Paraíso e com a criação de um código a partir das etapas do processo fotográfico, com Regina Silveira e outros (3). Como parâmetro da intervenção no processo fotográfico, Iole de Freitas realizou, com espelhos partidos e facas, uma dramática série de autorretratos, como paisagens corporais. De uma maneira como nunca se experimentou na arte brasileira até o presente, para obter sua imagem, a artista realizou a integração entre seu corpo e a câmera (fotográfica e cinematográfica) como um órgão único. Criou-se uma vertigem de olhares: corpo, câmera, espelho, vidro ou faca foram unificados como um só órgão sensível, cuja mirada sobre si mesma construía-se sem diferenciar entre a fantasmática interior e a expressão do corpo (4). A fotografia de Iole de Freitas trabalha na base da autorrepresentação como construção da subjetividade. Em 1973, duas exposições no Rio de Janeiro mostram uma nova fotografia. Iole de Freitas organizou a mostra Foto Linguagem no Museu de Arte Moderna, incluindo obras de Bernd & Hilla Becher, Christian Boltanski, Urs Luhti, Annette Messager, Duane Michals e William Wegman, entre outros. A segunda exposição foi Vanguarda Internacional, na Galeria do Instituto Brasil-Estados Unidos do Rio de Janeiro em outubro de 1973. Essa mostra da coleção Thomas e Myriam Cohn inclui obras de artistas como os Becher, Duane Michals e William Wegman. 

    Rosângela Rennó foi incluída na exposição A Espessura da Luz – Fotografia Brasileira Contemporânea em 1994 (5). O texto de introdução a essa mostra situa Rennó dentro da perspectiva histórica e dos posicionamentos políticos da fotografia brasileira ali desenvolvida frente um déficit de linguagem. “Num país de tantos contrastes econômicos e sociais e de diversidade cultural, a fotografia sofre uma dupla tentação frente ao real: o miserabilismo, como expressão de uma má consciência pequeno-burguesa, e o exotismo, remanescente das projeções das fantasias europeias medievais de um Paraíso na Terra em pleno século XX”(6). O Brasil tem sua tradição de cultura da crise. Já em 1966, o crítico Mário Pedrosa discutia a crise na função comunicacional e social da arte, concluindo que “Nesse momento de crise e opção, devemos optar pelos artistas”(7). A ditadura de 1964 levou a cultura brasileira à formulação de estratégias, como a tática prevalecente da denúncia sutil através do fotojornalismo. É com a lenta distensão política a partir do final da década de 70 que a fotografia se libera daquelas tarefas de revolta e de defesa da liberdade. Uma atitude de experimentação se expande para alcançar seu ponto principal na atualidade. A obra dos artistas da mostra A Espessura da Luz – Fotografia Brasileira Contemporânea enfrentava a inacessibilidade do Outro. Isso nos permite remontar à herança mais remota das palavras do poeta Murilo Mendes sobre as fotomontagens de outro poeta, Jorge de Lima, como sendo “uma vingança contra a restrição de uma ordem de conhecimento”(8). Essa não é, portanto, uma fotografia em desencanto. Pode ser irada, nostálgica, apreensiva, afável, analítica, dialógica, mas é sempre responsável ante o fenômeno do Outro, ser único e insubstituível. 

    Do ponto de vista da política cultural da diferença, as imagens apresentadas pelos artistas participantes da mostra A Espessura da Luz – Fotografia Brasileira Contemporânea não têm a pretensão de substituir a auto-representação. No entanto, na situação específica da sociedade brasileira, aqueles artistas promovem o necessário agenciamento de ideias críticas ante diferenças de toda ordem – econômicas, culturais, étnicas, regionais e também de classe social. “A fotografia [diríamos, como a arte] não gera atitudes morais, mas pode reforçá-las – e contribuir para que atitudes incipientes se consolidem”, afirma Susan Sontag (9). No seu processo de estabelecimento de significação, essa fotografia projeta uma dimensão de resposta crítica, em que a revolta é envolta no refinamento do discurso. A hipótese da neutralidade social não compõe a crença desse olhar. Não que esses fotógrafos estejam se submetendo à chantagem ou à obrigação ideológica de uma fotografia populista. A aparente autonomia da linguagem pode então tornar-se real, depois de compreendida a impossibilidade do neutro, o que propicia vincular essa fotografia à vida. Esses fotógrafos vivem a busca incessante da alteridade, a apreensão desse ser incomensurável, o Outro. Numa sociedade complexa como a brasileira, com sua violenta história, formação étnica e rígida estrutura de classes, a cultura do século XX mantém um traço de busca de identidade nacional contra um passado colonial. Isso se reflete ainda hoje na produção artística. No conjunto de imagens, a perspectiva é a de aproximação do Outro do fotógrafo, a sua construção enquanto processo ético no interior da sociedade, marcada pelas diferenças sociais. Nessa dimensão, a fotografia seria também um espaço poético de retorno do reprimido. “Só a fotografia revela o inconsciente óptico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional”, observou Walter Benjamin (10). Nas artes, o retrato já ganhara uma base individualista depois da Revolução Inglesa do século XVIII e a Revolução Francesa de 1789. Alfredo Margarido compreende que “o alargamento da produção do retrato aparece como a resultante de dois movimentos complementares: as diferentes revoluções europeias, completadas pelas modificações tecnológicas”(11), como a fotografia. “Sobretudo, importa reter a banalização do retrato, já que os grupos dos humilhados e ofendidos que, até então, não puderam dispor de um duplo”, aduz. No século XIX, os retratos de escravos do Rio de Janeiro produzidos pelo fotógrafo Christiano Junior em 1865 não visavam individualizar uma classe social não emancipada como sujeito jurídico (12). Os modelos posavam em estúdio exercendo seus ofícios. As fotografias de Christiano Junior descontextualizavam o escravo da vida e do trabalho, destinadas que eram ao souvenir do exotismo brasileiro, como observa Boris Kossoy na análise da ideologia fotográfica (13). Nessas fotografias de Christiano Junior, no entanto, ainda encontramos uma referência ao caráter industrioso do negro no Brasil, como na obra de J.B. Debret. Essa ideia, no entanto, seria dissipada com a propaganda da imigração europeia, através da construção de uma nova ética de trabalho em que o negro é frequentemente apresentado como indolente e malandro. Com isso, justificava-se a imigração. No corpus da obra fotográfica de August Sander está uma série de retratos que podem ser divididos nos sete grupos que compreendiam a ordem social da Alemanha em seu tempo. Outro retrato de grupo oprimido no final do século XIX, agora com outra carga de intenção política, é How the Other Half Lives (Como Vive a Outra Metade) de Jacob August Riis, editado em forma de livro em 1890, com a intenção de conscientizar a sociedade sobre as condições de vida de vasta parte da população imigrante de Nova Iorque. “A crença em que a experiência de todo homem deve valer algo para a comunidade da qual ele a retirou, não importando qual seja esta experiência, desde que ela tenha sido recolhida ao longo de algum trabalho decente e honesto, me fez começar este livro”, afirma Riis em seu prefácio (14). Sem o recurso documental, Rennó escolhe resgatar essa possibilidade de uma recuperação de restos fotográficos, com sua atuação alinhada por uma história dos oprimidos, na tradição de Walter Benjamin. A artista opta enfaticamente por trabalhar sobre a ideia da “história dos vencidos”, contra a história dos vencedores (15). Se o mesmo Benjamin argumenta que uma das funções sociais mais importantes do cinema é criar um equilíbrio entre o homem e o aparelho”(16), consideremos então que Rosângela Rennó busca um tenso reequilíbrio da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. 

    No plano da identidade pessoal e ainda com relação à herança histórica, deve-se compreender que o retrato fora um gênero pictórico inexistente no Brasil colonial, porque a ciosa metrópole desestimulava toda produção de imagens pessoais que pudessem constituir representação simbólica do poder desvinculada da Coroa. Assim, mais remotamente, a obra de Rosângela Rennó toca na tradição colonial brasileira de uma retratística ausente e de um processo ativo de construção do esquecimento visual do rosto. E esse é um retrato metafórico de uma sociedade de exclusão e da imobilidade social. 

    Rosângela Rennó pertence ao grupo de artistas que toma a fotografia como processo a ser reaberto. Compõe um movimento da fotografia retomado nos últimos quinze anos por artistas como Rochelle Costi. Carlos Fadon Vicente, Joaquim Paiva, Vik Muniz e Cássio Vasconcelos, que reabrem, com prioridade, as possibilidades novas ainda existentes da fotografia. Eles rearticulam a aludida tradição brasileira de uma fotografia experimental que emergiu na década de 70 e que, em geral, esteve soterrada sob o fotojornalismo. A geração de Rosângela Rennó, surgiu depois da abertura política dos anos 80 e seus projetos, vinculados a uma certa “estética do desaparecimento”(17), evidentemente, não têm, depois da abertura, o mesmo caráter literal, reiterativo que tinham no caso dos presos políticos e desaparecidos do regime de 1964. Pode- se assim melhor trabalhar uma fenomenologia poética e politizada do olhar, desnudando a própria fotografia enquanto ato de poder. Nesse panorama recente da intervenção mais direta e traumática sobre o código e a materialidade da fotografia devem ser citados ainda Paula Trope, Rubens Mano, Ruth Lifschits, Cezar Bartholomeu, Jean Guimarães, Cláudia Leão, Valeska Soares, Rosana Paulino e Cao Guimarães entre outros nomes (18). 

    Estes artistas substituíram homens e coisas por sua representação até o ponto em que o próprio sujeito habitaria a sua imagem. Determinada iconoclastia veio restaurar a diferença entre objeto e sujeito. Depois substituíram as representações por uma ideia de registro automático, e a fotografia passou a ser o duplo do real. Se passássemos ou se voltássemos a viver de novo num mundo sem fotografia, talvez nos parecesse estar vivendo uma cegueira do mundo. Rosângela Rennó primeiro interrompe o fluxo de fotografias, ao se recusar a fotografar (19). Esse é seu ponto de partida e medida econômica frente a um mundo marcado pelo excesso de imagens. As referências de Rennó à história da fotografia não se afirmam no citacionismo de imagens clássicas, mas como operação dos procedimentos e atitudes de um trajeto desde a câmara obscura. A artista trabalha com negativos encontrados aos milhares em arquivos de ateliers fotográficos populares, com fotografias recolhidas em jornais, com fotos de obituários e de identificação criminal. Depois substitui a imagem fotográfica pelo fato e por sua notícia. Em seguida passa a selecionar as notícias fotográficas, privilegiando aquelas em que há negação e recusa da fotografia. E, finalmente, substitui a própria escritura do texto noticioso impresso por uma projeção de luz, que se imprime na memória e se esvaece. 

    Mulheres Iluminadas (1988) (20) é uma obra de acercamento de Rosângela Rennó com a fotografia. A imagem apresenta a silhueta escura de duas meninas, a artista e sua irmã, numa foto de monóculo, parte do rito social do álbum de família na lembrança de uma viagem turística ao Rio de Janeiro. Está aparentemente corroída pelo tempo. Nessa fotografia de monóculo das férias na praia de Copacabana em 1968 entrevê-se uma pedagogia do corpo, através de sua exposição ao sol, e uma cadeia de olhares (dos outros banhistas, do fotógrafo e do público). O turismo e a família são a grande fábrica popular da fotografia na sociedade de massas. A qualidade fotográfica de Mulheres Iluminadas é a antítese do que ocorreria normalmente, já que, por excesso de exposição à luz solar, as imagens deveriam estar estouradas. A artista adulterou quimicamente os negativos, eliminando informações, inviabilizando a definição da imagem e produzindo uma veladura total. O negativo ficou transparente com a operação. Ranhuras e ataques químicos ao negativo dificultam a identificação dessas mulheres mal iluminadas, esculpem o negativo, seu corpo e seu sentido. O processo químico potencializa a arbitrariedade deste signo. O caráter autobiográfico e fundante desta obra anuncia a constante preocupação com o recalque da mulher. A pauta de Rennó tratará de um sujeito que, buscando reconstruir seu passado, encontrasse apenas a possibilidade de produzir palimpsestos fotográficos de si mesmos. Evoque-se o critério de desfamiliarização da fotografia surrealista que ocorre no retrato de família de Mulheres Iluminadas e Irmãs Siamesas

    É no universo da familiaridade e do álbum de família que se introduzem fantasmas e terrores na obra de Rosângela Rennó. Em Irmãs Siamesas (1988), duas fotografias de mulheres são unidas por um traço a lápis. Um signo gráfico é sobreposto à imagem para consignar, sobre o retrato de família, que a fotografia é o laço afetivo que atravessará o tempo. O deslocamento é do lugar no cérebro do arquivo da memória visual para a usina do esquecimento. O congelamento do tempo, reiterado nas operações físicas sobre o corpo (desbotamento, cortes, recortes, projeções), aponta para uma lógica também fora da imagem. Onde a fotografia seria agenciamento da morte (como interpreta Roland Barthes) (21), fragmentos fotográficos e migalhas de desejo reintegram uma presença e, finalmente, apontam para a construção do Sujeito. O fetiche fotográfico incide sobre uma ideia de falta justamente ali onde o Sujeito se constitui. Rosângela Rennó produz, cruamente, identidades melancólicas, imagens que reivindicam a nostalgia de um dia terem sido alguém. 

    No início de sua carreira, a jovem Rosângela Rennó usará também muitos objetos lúdicos, alguns provenientes de sua própria vivência infantil. Diz a artista que Alice (1987/1988), obra feita no ano em que se formou na Escola Guignard em Belo Horizonte, “é uma série de oito fotos, anterior a Conto de Bruxas, na qual comecei a reciclar meu próprio arquivo. Usava a imagem de uma boneca gigante que fazia as vezes de Alice para mim”(22). Em Conto de Bruxas (1988), Rennó recuperava imagens de histórias infantis dos anos 40 para serem vistas no aparelhinho view-master, com seu disquinhos para ver em três dimensões. “Para mim, é o primeiro trabalho de apropriação de fotos pra valer”, diz a artista, (23). Ampliadas em preto e branco em grande formato (1,50 x 1,00 m), os inocentes bonequinhos viram monstros, porque sendo muito toscos e, ademais, atacados por fungos, revelam-se na ampliação criaturas abjetas. Daí a obra enfrentar a impossibilidade de reiterar sua origem como contos de fada. Entre as partes de Conto de Bruxas estão as cenas Da Capo al Fine, A Encarnação do Verbo, A Grande Cilada, Mea Culpa, Mulheres Violentas, A Última Promessa, Falsas Promessas. São imagens arquetípicas, como A Encarnação do Verbo, na qual Cinderela está como que ajoelhada e recebe a visita da fada, que tem asas. Como um Fra Angélico brutalizado por uma pane tecnológica, a imagem original da cena em view-master corresponde, na história da arte, à importante tradição iconográfica da Anunciação. O verbo que se fez carne e habitou entre nós é a fotografia, que, com sua pretensão de absoluto duplo do real, dispensaria, enquanto evidência, a própria palavra. Já o título Mulheres Violentas foi deliberadamente retirado de duas obras de Duane Michals: Women Fighting (Mulheres Brigando) e Men Fighting (Homens Brigando), ambos de 1993, duas verdadeiras lutas de anjos. Ambas são fotografias construídas e, abertamente, assumem sua teatralidade. O confronto engendrado na fotografia abjeto de Mulheres Violentas, com sua cena obtida com a precariedade (a simplicidade das transparências do aparelho view-master) e os sofrimentos (fungo) da imagem fotográfica, resulta na produção da fantasmática. A obra de Rennó cria atormentadoras histórias de bruxa, verdadeiros pesadelos estéticos, em contraposição à atmosfera de transparências oníricas, através da qual Michals, com seus anjos, penetra suavemente em regiões igualmente profundas dos embates do ser com sua identidade e dúvidas (24). 

    É necessário invocar aqui as posições de Walter Benjamin sobre o tema aura da fotografia. “A aura é uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja [...]. Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar o ‘semelhante’ no mundo é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue captá-lo até no fenômeno único”(25). Na pose-padrão, habitualmente repetida em todos os retratos trabalhados por Rosângela Rennó, o que se lê no cânone dos retratos de identidade como os 3 x 4 não é a subjetividade, por mais que a diferença seja legível, mas sim o estabelecimento da ordem com a submissão ao Estado (retratos de carteira de identidade, título de eleitor, certificados militares) ou ao capital (carteira de trabalho). Digamos que Rennó diagnosticasse que esses retratos de identidade ainda conservassem funcionalmente uma vaga ideia de aura. Essa seria a finalidade de tudo fazer sobreviver como aparente aura morta. Essa é a estratégia social de manter os modelos em segredo como forma de sua exclusão da história. 

    A exposição Anti-Cinema (1989) partia da incorporação na obra de fotogramas achados no lixo da PUC-Rio e da moviola da ECA. A mostra era constituída por sete fotografias em grande formato, extraídas dos fotogramas de cinema, isolados em forma congelada, com a aplicação de um título dado pela artista, impresso na própria foto. Há títulos como Sonora; A Deusa da Fortuna; A Espera; A Primeira Promessa; A Última Promessa; Semeadores de Trigo; Má Notícia, cujo título deriva de uma pintura de Rodolfo Amoedo (Más Notícias, 1895, Museu Nacional de Belas-Artes) e Fugitiva; Tocata e Fuga. Em Anti-Cinema, Rennó também utilizou três instantâneos de uma tia, tirados por seu pai. Formam o tríptico Otília. Rennó impôs um movimento na ordem estática da imagem, como uma leve pulsação visual, produzida por retículas de uso em artes gráficas. Na série Anti-Cinema também se incluem quatro discos com fotografias a que se atribuíram falsos movimentos. Eram fotos para “tocar”, isto é, girar numa radiola antiga. Os quatro discos são Photographic Gun (para Muybridge e Marey), Olho de Peixe (duas mulheres em cenário de cortina de banheiro com peixinhos), Conchacustic (foto de uma concha que se parece com Anémic Cinéma) e, com seu silêncio, Sonata de Outono (uma panorâmica de 360 graus, feita de fotos emendadas como na obra do holandês Jan Dibbets). Na fase inicial do projeto de Cronofotografia do francês E. J. Marey, com as placas de fuzil automático com doze clichês (26), podem ser encontrados precedentes históricos de Rennó, sobretudo no arranjo formal de seus discos. Como um recurso cinemático, esses discos trazem a fina ironia sobre o tempo e a imobilidade da imagem fotográfica. A imobilidade da fotografia, que era um limite, passa a ser uma qualidade. O olhar contemporâneo, que se formou vendo as bolachas redondas de vinil girando no toca-discos, é capaz de fazer girar imaginariamente o disco, posto que este era o destino do objeto. Prisioneira do congelamento, a fotografia em movimento, no entanto, não será como o disco, capaz de fazer emergir mecanicamente o discurso-música. Há uma obra dessa série com o título específico de Photographic Gun. Na sequência de fotos, orientadas pela artista, o modelo saca de uma pistola para atirar. Numa delas ele olha para trás, porque na sequência ele haveria de estar atirando em si mesmo. Esta consciência do lugar da fotografia constitui-se no momento de reconhecimento do modelo. Encontra-se aqui uma certa ironia com uma das passagens de um dos mais importantes textos da teoria da fotografia, a “Pequena História da Fotografia”, de Walter Benjamin, quando comenta que “No fundo, o amador que volta para casa com inúmeras fotografias não é mais sério que o caçador, regressando do campo com massas de animais abatidos”(27). Girado um disco mudo de Rosângela Rennó produzirá uma espécie de silêncio e opacidade dolorida. 

    Depois da fase familiar, com seu álbum, brinquedos, papéis infantis e memórias, é menos necessário desconstruir, porém mais descontextualizar imagens, fazê-las deslocar para o campo da circulação social das imagens e nesse processo revelar resíduos de presença. O Grande Livro do Adeus (1989) é um livro em ziguezague com duas capas idênticas, portanto, é um livro que não tem fim. Nas catorze imagens de fotogramas de um filme há um homem de costas e duas mulheres de perfil. Fala a mais jovem: ‘Vou despedir-me”. O livro é um baralho de dimensões temporais com efemérides, ritmos, rupturas, duração, circularidade: despedida, cinema, voz da mais jovem, ziguezague, livro sem fim, estrutura especular, coincidência de início e fim, adeus. O tempo que mais interessa a Rennó são os filamentos da memória primeiro e, depois, do esquecimento. 

    Afinidades Eletivas ou Relações Perigosas (1990) foi feito baseado em seu trabalho homônimo destruído, que fora elaborado para uma exposição e show multimídia em Belo Horizonte. O título, saído do último romance de Goethe, havia sido usado por Magritte. Rosângela Rennó constrói uma única fotografia de casamento a partir de duas imagens (dois casais diferentes) em uma moldura branca sob uma prancha de plástico com ranhuras da mesma largura das ranhuras feitas nas imagens. A isso Rosângela Rennó chama de fotografia bidimensional, porque superpõe as retículas e o plástico sobre as duas imagens. Assim, impede a leitura simultânea das duas imagens e, dependendo do ponto de vista, vê-se apenas uma delas, que se alternam com o movimento do espectador. Noutras circunstâncias, partes das imagens mesclam-se segundo um cálculo da artista. Nesse caso, de alguns pontos se podem ver dois homens ou duas mulheres que estão se casando. Num trabalho anterior, com título semelhante (Afinidades Eletivas), os mesmos casais haviam aparecido por meio de kodaliths em preto e branco entrecruzados, dentro de uma redoma com óleo mineral, que atua como uma espécie de lente sobre as imagens. Dependendo da posição do espectador, vê-se um ou outro casal ou dois homens e uma mulher ou vice-versa. Mais recente, a obra Círculos Viciosos (472 Casamentos Cubanos) (1995) é formada por um par de círculos acrílicos, dispondo-se um sobre o outro. A forma circular do plano básico é alegórica da aliança de casamento. Os círculos são recobertos por um relevo de fitas de negativos, que se dispõem sinuosamente, preenchendo o plano à moda de um intrincado bordado. Esse Círculos Viciosos se entrega como um buquê escuro de 472 casamentos, início e promessa talvez de 472 álbuns de família. A fotografia é aí congelamento de um momento mítico de coesão afetiva. Ao mesmo tempo, na organização labiríntica do espaço interior, evoca a dinâmica afetiva daquilo que é uma cerimônia fotográfica e o início de uma outra célula produtora de álbuns de família. Sendo ademais um ato civil e um sacramento, Círculos Viciosos, remete ao precedente da instalação Diferentes Idades da Mulher (1992), também aqui discutida. 

    Rosângela Rennó trabalha dentro da economia do estúdio fotográfico popular. Ao reaproveitar placas de negativos com duas fotos de identidade (tamanho 3 x 4), observa que em geral são pares de retratos de duas pessoas distintas. Nesse método do fotógrafo popular, ocorreram acasos e acidentes no processo, com a formação de casais fotográficos, ou repetições de retratos em mais de um negativo. O título Triângulo Amoroso (1990) (28), situação fortuita, enseja a referência à origem da artista. Rennó nasceu em Minas Gerais, onde as fortes tradições políticas e valores conservadores denotam a sociedade patriarcal. A fotografia na obra de Rennó era aí o duplo, um jogo de alteridade, um espelho de fantasmas, superfície da fantasmática. A artista descreve este período de formação em Belo Horizonte, onde se formou em arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986) e pela Escola Guignard (1987), dizendo que a discussão sobre fotografia “acontecia com meus companheiros de atelier, Piti e Paulo Schmidt. 

    Quem me introduziu na ‘atmosfera’ da apropriação de imagens foi Marcelo Kraiser, também por um tempo, companheiro de atelier (uma espécie de colega mais velho e, portanto, mais experiente), através do texto de Andreas Muller-Pohle sobre a necessidade da ‘ecologia da informação’. Outra leitura importante da época foi o delicioso A Filosofia da Caixa Preta, de Villém Flusser”(29). Em 1989, Rennó mudou-se para o Rio de Janeiro. Sua agenda se desloca dos conflitos da esfera privada, como os laços de família, para a esfera pública (o jornal) ou coletiva (os conjuntos de retratos), distanciando-se dos interditos da família. Rennó propõe a passagem da ousadia recatada da visão para as violências do olhar. “Meu trabalho mudou muito depois que cheguei ao Rio; tornou-se mais irônico e agressivo. Em Minas, eu trabalhava os negativos de fotografias de família e de amigos”, declara a artista (30). A violência e o anonimato da grande cidade, formas de solidariedade e uma cultura do corpo fazem também parte do ethos do Rio de Janeiro, com uma tradição da arte em que se misturam inesperadas nuanças desse pathos social, valorização da experiência, o encontro de fenomenologia com o sensorial. Nessa tradição encontramos o desdobramento da obra dos neoconcretos Hélio Oiticica (31), Lygia Clark e Lygia Pape, e de artistas de gerações seguintes como Cildo Meireles e Iole de Freitas. Já seus estudos na Universidade de São Paulo trouxeram-lhe um processo de conhecimento crítico da fotografia que a artista descreve dizendo que “Houve um aguçamento da vontade de trabalhar com a intertextualidade visual (assunto predileto do prof. Eduardo Peñuela), com os jogos intertextuais dentro do meu próprio trabalho. Acredito que daí nasceu o interesse pelo texto substituindo a imagem. Annateresa Fabris foi muito importante por introduzir-me na discussão sobre os primórdios da fotografia, a tensão relação com as belas-artes, a hegemonia do retrato fotográfico. A função social da fotografia desde o século XIX é tão fundamental que passa a ser confundida com a própria fotografia. Minha insistência no 3 x 4 é devida às aulas de Annateresa. Eduardo Brandão foi um dos grandes e poucos incentivadores de meu trabalho, que acompanha desde 1988. Pelo seu envolvimento com a prática fotográfica, é um excelente interlocutor sobre forma versus conteúdo e forma & conteúdo dentro do meu trabalho. Creio que foi a pessoa com quem mais discuti sobre isso desde que passei a morar no Rio”(32). 

    No início da década de 90, a produção de Rosângela Rennó gira em torno de uma certa pedagogia do olhar social através da fotografia. A obra Puzzle (Mulher e Homem) (1991) compõe-se de dois tabuleiros, contendo imagens de um quebra-cabeça, colocados em pedestais individuais e separados. O quebra-cabeça é, no caso, uma imagem literal posto que, com sua dispersão em partes, o retrato de carteira de identidade deve ser recomposto como objetivo do jogo. É desse jogo integrar aspectos visuais e qualidades. O inquieto artista Waldemar Cordeiro, em seus trabalhos Autorretrato Probabilístico e O Beijo (ambos de 1967), trabalha com a fragmentação da imagem, através de cortes ortogonais da fotografia, necessários a uma lógica de operação da obra. As partes de Autorretrato Probabilístico trazem alternadamente as palavras SIM e NÃO como contradição embutida no sujeito. 

    “Demolir o significado é demolir o sistema”, afirma o artista dos Popcretos (33). Em O Beijo, as partes da imagem de uma boca estão na ponta de hastes formando a imagem completa. Por um movimento mecânico, as hastes se movem, fazendo explodir a imagem, que se dissolve como um beijo no olhar. Na obra de Rennó, faz-se uma alusão aos cortes na composição fotográfica, agora segundo um outro sentido, não para a imagem, mas para o próprio ato do corte A obra é propiciatória da experiência simbólica de reconstituição do sujeito. Na linha dos jogos, cabe referir-se também ao Jogo dos Sete Erros (1986). Trata-se de proposta contendo sete erros fotográficos, desde imagens de bonecas sem cabeça até defeitos de processamento fotográfico ou arranhões no negativo. Outro jogo infantil, de treinamento da memória, produz o modelo para tornar visível o esquecimento na proposta do O Grande Jogo da Memória (1991). O espectador deve buscar os pares de imagens, articulando acaso e memória (34). Ali onde existe olvido social, Rosângela Rennó propõe um exercício da memória: o jogo da linguagem é o jogo de memória. Como um baralho de cartas anônimas, todos os retratados são desconhecidos do mesmo naipe único, isto é, nenhum pode ser mais anônimo que o Outro. Jogo da memória não é mais aqui o exercício do cérebro do brinquedo infantil, mas uma operação de resgate num dado campo. A regra do jogo é desvirar e olhar as imagens, repondo-as de costas, guardar as fisionomias e juntá-las a outra imagem idêntica. Não se trata de um jogo de alteridades. Não está em jogo a localização do Outro ou do duplo. Essa experiência é simultaneamente a busca da diferenciação e do reconhecimento da identidade. Ganha o O Grande Jogo da Memória aquele que apresenta menos falhas de memória. 

    Na produção de Rosângela Rennó, outra distorção fotográfica reencaminhada para o processo de significação é A Mulher Que Perdeu a Memória (1991). A obra incorpora a imagem fora de foco de uma mulher aparentemente idosa. Embora seja uma obra ainda de seu período mais confessional e privado, A Mulher Que Perdeu a Memória problematiza o fora de foco, aqui metafórico, que já não seria apenas aquilo que não se faz tecnicamente bem no momento decisivo do clique, mas ainda, e talvez principalmente, aquilo que se afasta da memória, seja na distância temporal, contingência da idade, seja na distância social enquanto estratégia de dominação. A fotografia molda e é moldada por uma psicologia da memória. Perder a memória não seria, então, avançar na idade, mas perder um rosto. Fora de foco, na sociedade, é estar posto à margem. A obra de Rennó anuncia uma de suas equações; ter memória é assumir criticamente o que se põe à vista. Na instalação Diferentes Idades da Mulher (1991) (35), Rosângela Rennó organiza um conjunto de nove fotografias de mulheres por ordem de idade numa escala ascendente/descendente, acrescentando textos sobre a parede e perfume de flores. A instalação tem sentido “didascálico”(36) ao tratar da condição da mulher nas diversas etapas da vida. Não importa quem são (a identidade das retratadas não tem qualquer importância) ou a idade; têm que seguir o rito existencial e a regra social e cultural que se cumprem imperturbavelmente na sociedade da amnésia. Esquecer não coincide exclusivamente com não lembrar, mas é também lembrar sem atentar para o processo de individuação. Lembrar-se e negar subjetividade. A raiz dessa instalação são as Alegorias das Etapas da Vida do Homem (ou da Mulher) e as Escalas da Vida, gravuras de fundo moralizante frequentes no século XVIII (37). A ideia de escala relaciona-se com aperfeiçoamento moral. Trata- se de representações arquitetônicas com degraus ascendentes e descendentes – inevitáveis no itinerário da existência – em forma de arco ou ponto. Suas partes mais baixas e extremas são nascimento e morte (ou batismo e extrema-unção na vida sacramental; por isso, os degraus são também espelhos da consciência). Rennó determina uma organização gráfica das fotografias e da escrita sobre a parede de modo a seguir, como um diagrama, o plano arquitetural das representações utilizadas nessas Alegorias e Escalas da Contra-Reforma. No entanto, a arquitetura de Diferentes Idades da Mulher, uma verdadeira Alegoria das Etapas da Vida da Mulher, foi invertida em forma de V, como se a ponte fosse vista especularmente, refletida no rio. Vinculada à ideia de árvore da vida, os atributos morais (ou funções culturais no sentido contemporâneo) nos remetem à ideia de ponte pela qual transitam as idades e cujo arco cruza o rio figurado da vida. Rennó utiliza perfume de rosa e jasmim para apontar o caráter volátil da matéria, sua transitoriedade. “Nem o odor [dizia Delacroix] nem o sabor se prestam a formar conjuntos sólidos e duráveis como a melodia ou a forma”(38). Simulacro dos odores do corpo idealizados, o perfume é culturalmente muito vinculado ao universo feminino como tática de sedução no jogo erótico (39). Em Diferentes Idades da Mulher, Rennó utiliza o perfume em excesso, a ponto de se tornar desagradável estar na sala de exposição. A obra converte sedução em repulsa e abandono. Como líquido, o perfume remete às águas do rio, aludindo à ideia de transitoriedade própria da metáfora da vida como um rio. As Alegorias e Escalas se referem ainda ao ciclo das estações presidido pelo Pai Cronos, encarnadas pelas quatro idades do homem. Ao trabalhar tão diretamente com o transcurso da vida, do nascimento à morte, Rennó opera a crítica, através da articulação de imagens, da própria função simbólica da fotografia como processo de retenção do tempo. Imagens estáticas de pessoas são retratos inesperadamente ativados, ainda que permanecendo inalterados. Articulados uns com os outros, todos ganham o sentido paradoxal de serem meramente fugidios congelamentos do curso inexorável do tempo. 

    Rosângela Rennó lida com a história saturada de fotografia que perde substância simbólica e se torna meramente índice de opacidade. A obra Amnésia (1991) é composta por uma fila de negativos de topo, lado a lado, formando uma caixa de luz com uma lâmpada fluorescente e os negativos transparentes. Vêem-se fantasmas porque os negativos são translúcidos. São visíveis também por causa da espessura, mas já não se podem identificar os retratados. O efeito é de uma lente rudimentar. Amnésia nomeia seu campo e introduz o conceito regente do olhar de Rosângela Rennó – a tática social de dominação da “amnésia social”. A partir disso, Rennó se estende na imbricação das operações semiológicas e políticas no campo da presença social das imagens mecânicas. Um bloco compacto de negativos fotográficos é iluminado por uma luz fluorescente. Por causa da espessura dos negativos, as pessoas são ainda visíveis, mas já é impossível reconhecê-las. O efeito de uma lente rudimentar demonstra que aquilo que era desejo aparentaria agora ser desinvestimento; o que era mecanismo de status tornou-se índice amnésico melancólico. O esquecimento social é projeção de um recalque, da impossibilidade de lembrar. 

    Na instalação Duas Lições de Realismo Fantástico (1991), uma longa faixa de 25 metros de comprimento por 1 metro de altura (40) amplia 33 retratos a partir de negativos 3 x 4. Essa faixa corre horizontalmente pelas paredes nas salas do edifício. A instalação, montada no antigo edifício do Paço das Artes na Avenida Europa, em São Paulo, fazia coincidir as janelas com as mulheres, segmento dos mais esquecidos no mar de esquecimentos da sociedade brasileira. As mulheres são, portanto, filtros de luz. Sonoramente existe aqui implícita a referência ao mecanismo técnico da contraluz (contre-jour) em fotografia, que implica produzir um halo de luz em torno dos objetos quando eles se interpõem numa fonte de luz fotografada, dificultando a sua percepção, mas conferindo-lhes igualmente um aspecto mais mágico. A contraluz era altamente valorizada pelos cânones fotoclubísticos até meados deste século. Aqui está uma irônica referência à construção e busca de aura na fotografia. Para a artista, a amnésia social, embutida na ideologia ou deliberadamente provocada, alimenta-se da própria fotografia, na perversão de sua função de memória visual para então produzir recalcamento. Inversamente à amnésia psicológica, em que a criança ou o indivíduo produz o esquecimento (portanto, é o sujeito que esquece), na amnésia social o próprio sujeito é apagado pela ideologia e outras práticas do poder. Cada imagem fotográfica trabalhada por Rennó é, então, interrupção fragmentária desse oblívio. É um resgate do sujeito no tempo, operando a presentificação do passado, como na concepção de Saul Karsz (41). 

    Nas obras mais antigas, a repetição dos retângulos dos negativos, cópias, cortes ou 3 x 4 e de sua distribuição em malha, ou ainda sua banalidade e quantidade são instâncias que exaltam o “não ver” resultante de uma aparente perda de significado da imagem. Ao organizar os negativos segundo algum critério extrínseco, como seus tons, Rosângela Rennó introduz um aspecto fortuito à lógica de circulação das fotos 3 x 4. Os estúdios para retratos em 3 x 4 não produzem apenas retratos para a autenticação estatal da identidade (para carteira de identidade e carteira de trabalho), mas produzem seus próprios arquivos mortos de negativos e cópias não reclamadas, e terminam por funcionar, no panorama da obra de Rosângela Rennó, como uma metáfora do próprio espaço social. O objeto de ataque de Rennó não é a fotografia amnéstica simplesmente, mas a reificação do homem no sentido já percebido por Brecht, mas agora ocorrente através desse processo da imagem. 

    Em Duas Lições de Realismo, o maravilhamento há muito cedeu lugar à banalidade. Rennó busca outra iconicidade, fundindo os níveis de percepção da imagem, a corporeidade e o poder simbólico da fotografia. Envolvendo tantas instâncias, a obra se faz como uma fotografia fora do código. O olhar trafega entre o interior da imagem e o corpo da fotografia. Não penetra a corporeidade. Age na pele da película. A imagem projeta-se como um abismo que se tivesse tornado raso e como se o modelo aparentasse agora ter uma alma rala. A perda de profundidade é compensada em algum ponto entre a superfície e a transparência. 

    A partir de um arquivo de milhares de negativos para retratos 3 x 4 de um estúdio fotográfico popular, Rosângela Rennó produz muitas obras, inclusive o conjunto de Obituários. Fixa-se seu interesse em trabalhar sobre o esquecimento da identidade produzido na vida social e pela acumulação. Rennó não exalta os aspectos fisionômicos dos retratados. A consequência é que centenas e milhares de rostos reunidos parecem perder todos a possibilidade da diferença, tornando-se uma superfície virtualmente cega. O óbito aqui não é a relação morte/fotografia, mas um fato concernente à representação. Cada um desses negativos parece deixar de atuar como representação do indivíduo. O conjunto de negativos abdica de ser uma representação coletiva. A única representação possível de que essas imagens seriam capazes é uma metarrepresentação, a dos limites da representação. A Rennó interessa essa cegueira provinda da aparente dissolução de uma realidade interior da fotografia, de que fala Boris Kossoy (42), ou de potencialidade informacional, discutida por Aline Lopes de Lacerda (43). Obituário Preto (1991) é uma rede de negativos de retratos isolados, com uma moldura de veludo negro que lhe traz peso, luto, volúpia e sensualidade. Há outra peça semelhante – Obituário Transparente (1991) (44) – em que a artista trabalha a transparência através de 378 negativos 4 x 5 em preto e branco em resina de poliéster. Nesse par de obras, a oposição entre opacidade e translucidez prepara para afirmar que as qualidades físicas importam mais para o nível metafórico dessas imagens. De fato, na medida em que a acumulação de centenas de negativos para fotos 3 x 4, não importando se escuros ou transparentes, dissipam a singularidade e a diferença nesses Obituários, a fotografia atinge, então, seu grau zero de expressividade. Essas pequenas fotografias são ditas fotos de identidade, para documentos oficiais. São como dejetos de imagens, recuperados por uma operação de escatologia semiológica, que lhes inventa uma possibilidade última de existência simbólica. A idealidade da pose e a identidade submergem no mesmo vazio de sentido do sujeito. Narciso encontra um espelho cego. Essas caras não seriam aquelas que Donald Kuspit analisa em “The Repressed Face”(45), porque não é mais o rosto que aceita ser visto por outros, tampouco é o rosto que se recusa a ser visto. “Existe de fato um rosto verdadeiramente aberto, que nada tenha a esconder?”, indaga Kuspit. Nesse mar de Outros, a alteridade se rearticula numa ordem de corporeidade, sob a organização formal por proximidades dos tons, desbotados no tempo. O Outro aqui é Ninguém, ser sem nenhuma identidade. A existência serial da obra de arte com a fotografia, analisada por Walter Benjamin (46),parece transferir-se, no processo de massificação, para o próprio modelo da fotografia. A perda da autenticidade da fotografia encontraria, então, sua correspondência no anonimato desses indivíduos. Para Pierre Bourdieu a fotografia é produção de índices sociais, de um grupo que os produz de sua própria integração. Num sentido, Rennó busca esses índices sociais nos espaços nos quais ainda teriam existência mínima nesses pequenos retratos (3 x 4 cm) para documento de trabalho e outras funções. Rennó promove devassas nesses territórios de sombras, tornando-os alegorias da noite social. 

    A amnésia não deve ser confundida com uma espécie de atordoamento pela mera questão de ruídos ou pane na comunicação ou com problemas dos códigos de transmissão. A amnésia reforça aquela perda do possível caráter analógico da fotografia com a realidade, como trata Umberto Eco (47). Frequentemente na obra de Rennó, num plano em que a fotografia se acentua como instrumento do poder e entre o horror e a ausência da imagem, estão permeadas a banalidade asséptica e a exacerbação afetiva. Atentado ao Poder (1992) foi realizada com uma série de treze fotografias de homens assassinados, recolhidas uma por dia, nos jornais populares do Rio de Janeiro, durante treze dias em junho de 1992, período em que a cidade sediou a conferência RIO-92 (48). Nesse período, os jornais de classe média alteraram seu perfil cotidiano no modo de noticiar a conferência, enquanto os jornais populares mantiveram seus padrões, fator indicativo da distância entre a maioria da população e os eventos políticos de tal ordem. Publicadas horizontalmente nos jornais, aquelas imagens dos homens assassinados são instaladas na obra de Rennó em posição vertical. O pequeno gesto arbitrário da artista altera o caráter estático dos cadáveres, conferindo-lhes tensão, como forma de burla de seu rigor mortis. Parecem estar desafiando a lei da gravidade. A obra produz uma espécie de desorientação. Agora, a produção de Rennó incorre sobre os códigos de transmissão da imagem. Em Atentado ao Poder, Rennó desenvolve uma alegoria do lugar da imagem fotográfica no espaço social, a exemplo do confinamento visual da violência mais extrema nas páginas dos jornais populares. Por detrás das terríveis imagens, emerge um halo verde, que não é a santificação dos mortos, mas ironização da aura da fotografia, de resto discutida por Walter Benjamin. Subjacente ao conjunto e na perspectiva da ideologia ecologista dominante está a indagação sobre o lugar do homem na natureza. Luz verde é a perda de visceralidade do quadro da morte. O desvio da conduta social, nessa perspectiva do ethos cultural brasileiro, é um índice da revolta individual e de responsabilidade coletiva. Atentado ao Poder refere-se à marginalidade social, está na tradição e no campo aberto no Brasil pela crônica Mineirinho (1962) de Clarice Lispector e a caixa Homenagem a Cara de Cavalo (1966) do artista Hélio Oiticica, realizada com a fotografia de um bandido morto pela polícia (49) . Lispector fala da “lama viva”. 

    A desmedida é um tema importante na arte brasileira. O excesso, a quantidade ganham uma intensidade de significação, muitas vezes como estratégia de amplificação negativa. Cildo Meireles, na sua obra Missão/Missões, como Construir Catedrais (1987), utilizou 60.000 moedas de um centavo no Brasil (e de cents nos Estados Unidos), sempre no menor valor cunhado no país. Problematizando a forma como um mecanismo de poder, Meireles opera a materialidade na perspectiva das tensões entre valor de uso e valor de troca. Com relação à fotografia, no plano conceitual das acumulações e nos exercícios do tempo. Emil Forman criou um padrão muito peculiar de desmedida. Esse artista apresentou uma instalação no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1975) em que reunia numa sala todas as imagens fotográficas de uma só pessoa (uma mulher então sexagenária) ao longo de toda sua vida. Essa era a extensão e o limite da mostra: o percurso fotográfico de uma vida como padrão da desmedida. Viver seria então ser fotografada. Eram centenas de fotografias emolduradas individualmente para reiterar a ideia de excesso de imagens fotográficas. A exposição era mais do que a ideia de uma fotobiografia, porque incluía casos como a fotografia da mãe ainda grávida dessa modelo ou apenas sua própria sombra quando fotografava algo; incluía instantâneos, elaborados retratos de estúdios, fotos em jornal e stills de cinema, monóculos e slides. Não se pode deixar de mencionar também o trabalho com arquivo fotográfico do francês Christian Boltanski, desde fins da década de 1960, com as convergências entre o eu e o Outro, o individual e o coletivo (50). A criança, na tragédia nazista, é dor e sobrevivência na memória. Já o artista alemão Dieter Hacker apresentou a instalação Aplainar uma Montanha com 10.000 fotografias de amadores espalhadas num ambiente na 10a Bienal de Paris (1977). Hacker vê uma questão política na incorporação de fotografias desses amadores, que poderíamos dizer constituir-se na grande epidemia de nosso século: “No exame das alternativas, o trabalho com fotografias de amadores tem um papel importante há alguns anos. Porque milhões de pessoas fotografam. E ainda que a fotografia de amadores seja apenas pouco elaborada, no entanto, sua força explosiva potencial se revela nas tentativas isoladas. O uso político da fotografia exige continuidade (51), conclui Hacker. 

    Num mundo marcado pelo excesso de imagens, Rennó recorre a formas opcionais de apropriação, evitando a citação e o pastiche. A artista trabalha com grandes arquivos de negativos de fotos de identidade, agora já sem qualquer utilidade ou valor, até que ela os reintegre no plano simbólico. Na instalação Realismo Fantástico (1991/1994) (52), estruturas giratórias projetam em perspectiva alguns negativos sobre as paredes, criando fantasmagorias pela qualidade precária das imagens, o anonimato do modelo e a distância social. Não mais fotografar – é a última e mais coerente opção da artista (53), Rennó, nesse momento, passou a trabalhar com os referidos negativos encontrados aos milhares. Esse é seu contraditório princípio de economia. Evidentemente, a artista está para além da crença de que o fotógrafo seria aquele que torna visível, como admitiam André Kertész ou Henri Cartier-Bresson. Para Rennó, o artista é o que torna a fotografia criticamente cognoscível em sua circulação social, justamente porque ela não realiza uma abstração do pensamento que afaste a produção simbólica do resto da vida material. 

    Como descrever um olhar em 3 x 4? Todo olhar expressivo e singularizado seria um desperdício. “Enquanto estiver posando para um retrato, esqueça toda tristeza e também esqueça onde está”, dizia em 1871 a seção How to Behave (Como se Comportar) do folheto Aos Meus Clientes, do americano Edward L. Wilson. A fotografia sempre foi um processo regulador do corpo. Há uma atividade de faiscação nesses mares de retratos da obra de Rennó. O que é a amnésia no dicionário e na medicina? Um mar abissal de egos em sombra. Na obra de Rosângela Rennó encontramos um permanente acercamento dos processos sociais de banalização e perda de significado da fotografia. Essa banalidade corriqueira do 3 x 4, inexpressiva, massificada como uma foto de stand automático de Andy Warhol, mas sem os quinze minutos de fama, porque mesmo não sendo lumpesinato, esses retratos são ainda marginalidade no consumo. Para Rosângela Rennó existe uma outra História da Fotografia, que não seria a das Grandes Imagens, mas justamente ali onde o meio parecia ter encontrado sua falência mais patente. O que as faz estranhas são justamente seres tão familiares e tão distantes de qualquer significação. Essas fotografias são tão simples, tão cruas tecnicamente e, no entanto, tão reais e conhecidas no processo de distanciamento social. Rosângela Rennó compreende que sua questão não se reduz às inadequações físicas do olhar, que eram as que afligiam Moholy-Nagy, mas chega às deficiências sociais do olhar, às deficiências socialmente produzidas. A nova imagem construída por Rosângela Rennó explicita uma anulação de milhares de imagens por sua repetição, banalidade e acumulação, e nesse esforço parece se esvair toda significação como um enfileiramento de retratos sem alma. O arquivo, a ficha, o formato 3 x 4, a convenção são agentes desse oblívio no campo social. Esse conceito de amnésia na obra de Rosângela Rennó confronta-se com a noção de habitualidade que, na maquinaria das classes sociais, foi enfrentada pela estratégia de estranhamento dos Futuristas Russos (54). Estranhamento é distinto de distanciamento, que Rennó deseja reverter. Na dimensão na qual os russos buscavam produzir estranhamento. Rennó faz atuar a proximidade para montar um anulamento corrosivo da instrumentalidade cotidiana da fotografia. Opostamente a certas teorias russas do estranhamento, Rosângela Rennó trabalha através do reconhecimento crítico e não pela habitualidade. Por isso essas imagens têm que ser necessariamente reconduzidas à circulação social, agora pelo campo privilegiado da arte. 

    No Andante Malincolico de sua Segunda Sinfonia (Os Quatro Temperamentos) (1901-1902), o compositor Carl Nielsen construiu um movimento lento de grande profundidade, calmo e translúcido, enquanto o Allegro sanguineo demonstra que a sanguinidade emocional não é dada a profundidades e a música é tonal e ritmicamente imprevisível (55). Nielsen procura interpretar musicalmente os quatro tipos humanos descritos por Galeno: sanguíneo, bilioso, fleumático e melancólico (56). Rosângela Rennó também trabalha sobre a mesma taxonomia galênica. Em Humorais (1993) (57), a artista constrói um raciocínio visual que nos induz a inferir uma patologia, que é o ponto culminante da medicina grega. Aos quatro tipos de Galeno, Rennó acrescenta o homem contemporâneo, apuramento máximo dos humores corpóreos quintessenciais do grego. O tipo contemporâneo é também aquele ser violado pela epidemia de imagens. É aquele que convive com o excesso de fotografias, com sua terrível circunstância. Sabe-se que existe “algo de destruidor no ato de bater uma fotografia. Fotografar pessoas é violá-las e vê-las como jamais podem ver-se a si próprias, conhecê-las como nunca poderão conhecer-se; é transformá-las em objetos de cuja posse nos asseguramos simbolicamente”, como diz Susan Sontag. Sua instalação Humorais compreende cinco caixas, imersas na penumbra; cada uma é uma figura espectral de rosto anônimo distinto, ampliado de negativo 3 x 4 e projetado contra uma tela-pele, feita em acrílico leitoso e bojudo como um tubo de tevê. A deformação foi expediente para que parecessem retratos compósitos, segundo a técnica inventada por Duchasse. Esses compósitos em geral saem bem borrados, meio manchados. Os textos eram como definições dos cinco humorais, extraídos do Código Penal Brasileiro que foi, portanto, dividido em cinco partes. Os títulos dos crimes foram atribuídos a cada humor através de características de cada comportamento humoral. Os crimes que correspondem aos cinco humores são obviamente os mais sofisticados, perversos e “atuais”, diz a artista (58). Testemunham os estados do Ser, confrontam-se com seu totem, severo e silencioso anúncio da regra penal, através dos textos do Código projetados através de um cilindro em rotação que assegura movimento constante. Os quatro tipos descritos por Galeno (sanguíneo, bilioso, fleumático e melancólico) deram margem a muita criação artística, como a sinfonia de Nielsen. Os tipos galênicos quase não se diferenciam na obra de Rennó. Não se expunge uma indiferenciação, uma impossibilidade de produzir subjetividade – e uma extrema diferenciação dos tipos já seria uma ruptura desse olvido. Tudo isso ocorre num território entre os retratos arquetípicos e os estereótipos, sendo aqui muito importante para a artista a idéia dos retratos falados da criminalística. No entanto, “às vezes gosto de ser óbvia, como no tipo sanguíneo que tem luz rósea e amarela” (59), diz a artista, que informa ainda utilizar o mesmo princípio da lanterna mágica. A tela com o retrato e o cilindro do texto são ambos da mesma cor e têm aparência aquosa, como se o discurso flutuasse nos fluidos dos tipos galênicos. Por isso, existe menos patologia e menos expressividade da linguagem do que em obras como na composição de Nielsen. Na obra do compositor dinamarquês ainda existe uma ideia de representação através da música (isto é, música expressiva dos tipos através do ritmo, tonalidade, instrumentos, interpretação etc.) em cada um dos quatro movimentos de sua Segunda Sinfonia, os quais correspondem à criação dos tipos galênicos psicológica e musicalmente homogêneos e consistentes. De fato, nos cinco retratos distorcidos dos Humorais existe quase uma uniformidade tipológica. Eles são diferenciados na exata medida para justamente dissimular o fato de que talvez estejam reduzidos à melancolia como a última possibilidade enquanto indivíduos-retratos extraídos de um oceano de negativos improdutivos (isto é, desnecessários à produção de retrato porque seus modelos mudaram de fisionomia com o correr do tempo, esqueceram-se desses negativos, não voltaram a encomendar etc.). O termo fotográfico negativo, torna-se, então, sinônimo de ausência de valor econômico e da marginalidade social. Da clássica taxonomia do homem à exegese de Código Penal, Rennó apropria-se da história da fotografia, da invenção da hipótese do retrato compósito e das tipologias fisionômicas da criminologia positivista. A fotografia, que nascera como registro e evidência do real, torna-se agora a própria construção e molde do real. No jogo de cumplicidades do código visual com o Código Penal, o confronto entre os fragmentos de tipificação de crimes e os retratos anônimos produz embates entre desconstruir e ratificar a ordem. 

    Uma história do olho passa pela lanterna mágica e pelos teatros de sombras, em que sonhos e delírios visuais pareciam já buscar a tecnologia do esquecimento através de imagens então inapreensíveis. As referências de Rennó à história têm sido uma operação crítica frente a procedimentos de um trajeto desde a câmara obscura. Mais remotamente ainda, é necessário referir-se ao jogo de sombras da caverna de Platão – a prisão da humanidade segundo Susan Sontag em certo momento – que se torna então índice oposto na trajetória de Rosângela Rennó. A única ameaça a esses fantasmas de gelatina estaria em qualquer excesso de narrativa que substituísse a trama da linguagem pela literatura do drama como instalação de um vírus mutante do fotojornalismo. Sobreviver à impiedosa ironia é o desafio para essas figuras. Além disso a expansão do campo despreza um estatuto puro de fotografia. É que a apropriação do fetiche fotográfico pela artista, superando também a antropologia e a gratuidade, incide sobre uma ideia de falta ali onde o Sujeito se constitui. Esses seres parecem, então, viver o paradoxo de experimentar, como sua única nitidez, a opacidade. São índices diáfanos de uma memória rarefeita. O que Rosângela Rennó produz cruamente são identidades melancólicas, como se as imagens reivindicassem a nostalgia de um dia ter sido alguém. 

    A historicidade da linguagem nesses corpos fotográficos se faz entre silêncio, morte, transparências e espelho. A contingência vulgar do congelamento do tempo, reiterada nas operações físicas sobre o corpo – são os desbotamentos, cortes, recortes, projeções ou a distorção óptica de negativos (2.000 no total) de topo na obra Amnésia (1991) – aponta para uma lógica também fora da imagem. Essa nova morte habitaria numa planície, num ponto entre a circulação do símbolo e o consumo do signo. No lugar onde a fotografia seria agenciamento da morte (conforme Roland Barthes), fragmentos fotográficos, excertos temporais, migalhas de desejo reintegram uma Presença, e podem, finalmente, apontar para a construção do Sujeito. A obra de Rosângela Rennó parece resolver a dimensão escatológica dessas fotografias. Entre o destino das últimas das imagens e a nova epifania do Ser surge uma circularidade do tempo. 

    Na série Arquivo Nacional (a partir de 1993), Rennó denota sua afiliação ao campo neoconceitual. Toda imagem fotográfica é substituída por notícias sobre fotografia, ou dramas fotográficos. A propósito, Rosângela Rennó informava em 1993 estar “colecionando todos os textos de jornais que ligam pessoas a imagens fotográficas (prints) ou histórias ordinárias sobre gente e fotografia. Ponho os textos no computador e quero ter um arquivo universal de imagens sem imagens, só textos, veiculados de diversos mecanismos e formas (outdoors, ultravioleta, livros, parede etc.)”(60). Ao reduzir seu trabalho fotográfico à palavra gravada, Rennó não deixa de ironizar aquele fotojornalismo, definido por um olhar que fosse meramente funcionário dos fatos. Rennó seleciona reportagens e notícias em que a presença da fotografia se revela por inesperadas circunstâncias. Diz a artista que “A maneira como eu lido como o texto é exatamente como faço com uma foto. Sinto que o texto determina uma potência imagética muito grande como informação descritiva que a foto não dá”(61). Num exemplo da série Arquivo Universal, Rennó trabalha com a notícia sobre uma mulher divorciada que vai ao juízo reclamar do ex-marido a devolução e posse da metade de sua foto de casamento, por não querer ver-se convivendo na mesma casa com a “outra”. É certo que a fotografia tem sido discutida como uma das dimensões de desmaterialização da obra de arte. No entanto, em algumas obras, o que resulta do uso da palavra não é a desmaterialização do trabalho, mas, digamos uma transubstanciação. Ocorre um trânsito. Há passagens: referentes visuais tornam-se imagens verbais. A bidimensionalidade da cópia fotográfica ganha corpo na letra esculpida do texto, como na série In Oblivionem (1994/1995). Existe câmbio de códigos de dicção. A imagem textual não se desvincula da existência de uma fotografia que não abdicaria do discurso através de sua corporeidade. Constrói-se um corpo para um outro código, responsabilizado por dar conta daquilo que se subtraiu ao olhar. Compreendendo a fotografia como uma linguagem da luz, Rennó vem trabalhando a construção da legibilidade como um problema da luz: textos brancos sobre branco, ou pretos sobre preto; textos em relevo para incidir sombras e luz. Numa atmosfera de penumbra, em Candelária (1993), os textos na parede são estruturados como pipas aladas como anjos. Flutuam e resplendem luz delicada. A obra refere-se à chacina de oito meninos de rua nas imediações da igreja da Candelária no Rio de Janeiro. São quatro partes formadas cada uma por duas pranchas retangulares de acrílico como asas e tendo no eixo central uma lâmpada de luz negra. A forma alada parece flutuar, há uma certa ideia de anjo formado por pipas, cuja linha seria o fio elétrico. Pipas são dos brinquedos mais populares entre os meninos do Rio de Janeiro. A linha dessas “pipas” de Candelária é como um fio-terra que mantivesse a ligação com a terra como um cordão umbilical, algo que nada deixa escapar. A leveza da escritura com letras ora em positivo ora em negativo impressas em branco sobre folhas de acrílico translúcido, acentua o sentido de flutuação e de silêncio reflexivo, já não mais de luto, como na contemplação proposta por Hélio Oiticica no Bólide Caixa 18, Poema Caixa 2, Homenagem a Cara de Cavalo (1968): Aqui Está, e Ficará, Contemplai seu Silêncio Heroico. Os textos relativos a fotografias ausentes tornam-se em si epifania e aparições da ideia de imagens em abandono. 

    As obras de Rosângela Rennó com textos relativos à fotografia ausente bordejam o grau zero da imagem. Da banalidade advém o grau zero da expressividade, adensado com o grau zero de autoria (como no caso das máquinas fotográficas automáticas em que o modelo vive sua solidão em frente da lente, como um estúdio-cela). Do processo de banalização, do desinvestimento simbólico e da política da opacidade decorre um grau zero de significação. 

    Na obra de Rosângela Rennó, negar a fotografia pode ser a redução ao puro referencial textual. Textos escritos com letras brancas sobre branco tratam de situações diversas em que a fotografia é mencionada e se localiza no centro da angústia, como “dramas fotográficos”. Quando a escritura desses textos é feita em relevo sobre a parede, temos uma remissão à escrita em braile, estabelecendo conotações com a percepção tátil e um diagrama do olhar háptico. Percebemos que não vemos. Essa é a aflição do olhar nessa política dos sentidos. Se isso fosse música seria a última fronteira dos rumores antes do silêncio. 

    Joseph Kosuth e sua obra One and Three Chairs (1965) devem ser referidos. Esse artista confronta o objeto com sua imagem em fotografia (em tamanho natural) e com sua definição (transcrição do verbete de dicionário). Coisa, imagem e palavra trafegam do plano real ao ideal. Se a obra de Rosângela Rennó tem este procedente na História da Arte, no entanto, a perspectiva lógica da artista tem sido a de estabelecer uma metaposição. A artista unifica coisa e referente visual, que são/é a fotografia, depois de reduzida à palavra noticiosa como seu referente textual. A fotografia revela-se como uma espécie de topologia amnéstica. A negação da fotografia e a crise da imagem enfrentam nessa obra (Arquivo Universal) de Rosângela Rennó seu momento mais radical de inacessibilidade. Para a fotografia exacerba-se o caráter de real ausente. Alguns desses trabalhos com texto são relatos do fetiche visual em crise, a fotografia. 

    “Após a separação do casal, provocada pelo romance entre ele e a filha adotiva, ele enviou a Y. X. o cartão Especially for you (especialmente para você) dentro de uma caixa. Em forma de coração, o postal contém uma colagem de fotos de toda a família. Os corações dos filhos do casal estão perfurados por espetos e um punhal atravessa o peito de X. X. O presente traz ainda, à esquerda, uma pomba carregando um ramo de ‘dor’, encimada pelas palavras ‘perda e ‘traição’”. 

    Nessa mesma ordem de projeção do humano no objeto fotográfico, é trabalhada em outra circunstância desses Arquivo Universal uma hemeroteca da fotografia que passa: 

    “A agricultora X. X., que era casada com o agricultor Y. X., de quem está se divorciando, entrou na justiça de C. com uma ação incomum: ela requereu ao juiz J. o pedaço em que aparece na foto de casamento, ao lado de Y. X., alegando que este era o único bem que os dois possuíam. No início os advogados que cuidam do caso acharam que o pedido não passava de brincadeira, mas X. X. insistiu, argumentando que de maneira alguma concordava em ter sua fotografia debaixo do mesmo teto que o ex-marido divide, agora, com outra. O juiz considerou o pedido e já mandou Y. X. devolver o pedaço que não mais lhe pertence, inclusive o negativo”. 

    Nos Arquivo Universal não se trata da cegueira, mas da subtração da imagem. Exatamente onde ela parece não estar, ali existe ainda mais forte a sua presença. Entranhada nessa circunstância está a estratégia estilística dos lítotes. A total negação da imagem revela e faz resplandecer o desejo último de fotografia. Numa notícia em jornal espanhol, com a sua potência imagética, uma fotografia ganha o caráter de ícone e instrumento do êxtase: 

    “Aquella noche, como cualquier otra en la finca, se encontraban rezando el Rosario en el exterior de la casa más de un centenar de personas. Al entrar en la casa, Z. vió a la vidente que ‘de pronto dice que la virgen le está hablando y se dirige, nerviosa, a buscar un libro. Cuando lo encuentra, se abra en la pagina 136 donde está la fotografía de la virgen, de cuyos ojos comienzan a salir lágrimas de sangre que se deslizam por las hojas del libro’. Varias personas acuden a la casa, donde se esparcía um ‘intenso aroma de rosas’ y sacan el libro al porche para que todos puedan ver cómo ‘las oscuras lágrimas seguían fluyendo’.” 

    Noutra obra da série Arquivo Universal, Rosângela Rennó perverte o duplo, apresentado como ativa existência in absentia. A fotografia – ela própria ausente no processo e na notícia – é novamente requisitada para a produção de evidência judicial. A luta pelo duplo e a luta contra o duplo parecem se confundir. A ironia do trabalho – a escritura da notícia como duplo da imagem na obra de arte – reconfirma uma ambígua (im)potência da palavra na substituição da imagem. Assume seu drama extremo na situação de limites sensoriais (surdez) e de fragilidade de comunicação (mudez). A falta da imagem é a violência última enfrentada nessa tragédia: 

    “A Funai vai exigir na Justiça que a empresa E. indenize a índia Y., de 15 anos, violentada e engravidada em agosto passado por técnicos que faziam prospecção na reserva indígena. Os funcionários da Funai ficaram revoltados com o descaso da Empresa, que enviou apenas uma relação de nomes, sem fotografias, dos técnicos que trabalhavam na área, naquela época, para que a adolescente identificasse os autores do crime. Y. é surda-muda e deficiente mental.” 

    “A história não mais centrada no acontecimento e no indivíduo suscita uma nova hierarquia dos documentos. [...] Os criadores da memória – as comunidades, os meios sociais e políticos – constituem seus arquivos de acordo com o uso que fazem da memória e de acordo com os meios materiais de que dispõem. É preciso romper com as pesquisas que se orientam a partir da ‘teoria do espelho’, isto é, aquelas que encaram a fotografia como reflexo da realidade”, diz Maria Lúcia Cerutti Miguel (62), chefe do setor de Documentos Iconográficos do Arquivo Nacional. Os textos relativos a fotografias ausentes são, pois, em si, como aparições, e aquela epifania do Ser em sua imagem em abandono. O corpus da obra de Rosângela Rennó vem reunindo um arquivo de arquivos, como se fosse ele mesmo o Grande Arquivo ou o próprio Arquivo Universal. Ademais, Rosângela Rennó vem construindo um surpreendente sistema próprio de arquivos. Em algumas de suas obras, pode-se falar de cegueira da imagem, como nos Obituários já discutidos e também na sua mudez primordial quando não são classificados. Em Atentado ao Poder já encontramos uma arquivística em marcha, enunciando os critérios de reunião das imagens, conforme já analisado. Essa vinculação do arquivo a um período de tempo demonstra a presença, no método de Rennó, de alguns procedimentos conceituais dos anos 60 e 70. Podem também ser encontradas, assim, obras feitas com imagens do arquivo de lembranças, vivenciadas pela própria artista no álbum de família, com peças como Mulheres Iluminadas e Estado de Exceção, este com seu título extraído de uma passagem da “Pequena História da Fotografia”, de Walter Benjamin. Outra alusão aos acervos simbólicos se faz com a obra Private Collection. Em seguida podem ser mencionados os arquivos encontrados (como um archive trouvé) em latas de lixo de universidades, cinematecas, museus ou ruas. Desses conjuntos saíram obras como Pequena Ecologia da Imagem e Círculos Viciosos. Os arquivos construídos pela própria artista têm perpassado sua produção, com sua coleção de notícias envolvendo fotografias, utilizadas em Arquivo Universal ou o conjunto de imagens de assassinados num dado período, como no caso de Atentado ao Poder. Na exposição Containers 96 em Copenhagen, Rosângela Rennó apresentou 22 textos em adesivos brancos colocados sobre as paredes corrugadas do contêiner, da metade para cima, como se o contêiner estivesse cheio da metade para cima. As paredes foram previamente pintadas de prateado. A instalação se chamava Special Trips (from the Universal Archive) e os textos todos falavam de experiências com viagens, transportes, de uma maneira física ou metafórica. Foram usadas luminárias próprias para barcos, pintados de branco no teto branco. O thesaurus singular de Rennó se explicita na classificação do arquivo com sua taxonomia dos seres humanos. Está, por exemplo, nos Humorais, em que a questão se desloca do objeto da classificação (os tipos psicológicos) para o próprio autor da classificação. Mais recentemente, Rennó tem trabalhado em arquivos recuperados, como um ressuscitamento de arquivos que socialmente estavam sepultados sob denso olvido. Os arquivos trabalhistas da construção de Brasília, utilizados em Imemorial (1994), ou os arquivos criminológicos da Penitenciária do Estado, localizada no Complexo do Carandiru, em São Paulo, exigiram enorme esforço da artista para garantir o acesso à informação pública e a exumação da História dos despojos dos arquivos mortos oficiais. Cicatriz era o definitivo arquivo de estigmas oficiais e grupais, até que Rosângela Rennó buscasse a afetividade, a poesia, a resistência e a revolta dos signos que pudessem resgatar o Ser em escrita. Quanto mais dormem, mais essas fotos são ativas enquanto agentes da amnésia. Arquivar é, paradoxalmente, uma forma de tornar irrecuperável, tornar invisível. Ao propor uma nova ordem, a obra de Rennó se apresenta como um enfrentamento e uma subversão dessa lógica perversa. A artista utiliza novas taxonomias e formas arquivais para tornar visível uma outra informação, legível como retórica da obliteração da memória. Esse tecido de arquivos, armado com fios das mais distintas nuanças afetivas, psicológicas, políticas, econômicas, culturais e sociais deixa entrever a outra manobra de obliteração que seria admitir- se como memória do Outro, desde que se constitua em memória do Outro reificado. O objeto Private Collection (1995) é um paralelograma formado por centenas de fotografias da artista, de seus pais e de fotografias abandonadas. Delas só se vê uma pequena faixa na lateral, em tons marrons da ação do tempo. Como se abrisse o laboratório da amnésia, revela-se que a cronologia é ação química e não de época biográfica ou histórica das imagens. Não há fissuras que permitam ao olhar evocar nostalgicamente o sujeito. A obra é uma alegoria irônica das tradições familiares em torno da fotografia, nessa cultura empírica da fotografia, já que diz Susan Sontag que “através da fotografia, cada família constrói uma crônica-retrato de si mesma – uma coleção portátil que testemunha sua coesão. Pouca importância têm as atividades que são fotografadas, contanto que se tirem fotografias e que sirvam de lembranças”. Já Private Eye (1995) contém uma câmera esculpida em baixo-relevo no interior de dois exemplares idênticos do dicionário Caldas Aulete. A Câmera foi selecionada horizontalmente em 49 fatias, com seu volume cortado em negativo nas folhas do livro. O dicionário é o mármore no qual se esculpe. Aquilo que se propõe a ser todas as palavras da língua, a nomear tudo e, até, a referir-se ao indizível, torna-se túmulo do corpo ausente, dotado de um poderoso olho. Torna-se a alma de outro projeto onipotente: a câmera fotográfica, que seria, para o olhar, a voracidade de engolir o mundo e reproduzi-lo em fotografia. 

    Algumas obras de Rennó, como Private Eye, apresentam-se como pequenos monumentos ao esquecimento. Private, a esfera privada, também parece recolher para produzir ausências. O livro, como corpo do conhecimento, recebe em negativo o volume do corpo daquilo que seria a produção de visibilidade. A introdução dessa câmera “ausente” corrói e come as palavras do livro, consumindo destrutivamente a informação. Volume é livro (conhecimento racional) e câmera (cujo corpo é escavado em negativo nas folhas do livro, como conhecimento intuitivo). Nesse sentido, a câmera, que fotografa para esquecer, é a forma da ausência (ou conforma uma ausência) como se apresenta na obra de Rosângela Rennó o problema Como Funciona a Máquina Fotográfica? (obra de Waltercio Caldas). O jogo de palavras aqui é claro. A câmera funciona como máquina de produção de ausências no tecido social. Essa ideia de monumentos fotográficos já surgira anteriormente na produção de Rennó em seu objeto Os Homens São Todos Iguais (1990), uma pilha de imagens reproduzidas em grande quantidade de dois fotogramas de cinema, aparafusada e fechada por um vidro em que se lê: “Os homens são todos iguais”. A frase parece um desabafo no imaginário feminino e uma constatação na vida real, que dispensaria a necessidade de avançar numa busca. O aparafusamento das fotos é interdição, como se o olvido fosse uma regra social cogente: é proibido lembrar-se do esquecimento. É vetada a “vontade de saber”, termo tomado emprestado de Michel Foucault. Por tudo isso, esse trabalho já seria um pequeno monumento à prática social da amnésia. Cildo Meireles, em obras como Tiradentes: Totem – Monumento ao Preso Político (1970), de certo modo fala de fotografia e monumento, embora esse seu monumento se erigisse transitoriamente no tempo e se evidenciasse através da fotografia e não em fotografia como a obra de Rennó. Essa ideia de monumentos fotográficos tem também sua base na formação da artista como arquiteta, graduada em 1986. Em Os Homens São Todos Iguais, Rosângela Rennó monta um retrato da própria fotografia ao operar uma tripla retenção do tempo: o congelamento da imagem pela fotografia, a ruptura do movimento cinemático e a imobilidade pelo aparafusamento. Assim, a morte – o esquecimento – morre três vezes. A obra de Rennó opera no território do embate entre lembrar e esquecer. Uma fotografia está entregue ao esquecimento não inocente – não por recalque individual, mas por sua instrumentalização por um projeto de amnésia

    Frequentemente o trabalho de Rosângela Rennó atua como um trabalho de luto. Seu projeto, como em Imemorial (1994), tem sido criar uma transparência pela qual se pode observar como opera a fábrica de opacidade e como os dominados tornam-se opacos ao olhar. Nada escapa ao olhar da artista, nem utopias nem ideologias. Se não há nenhuma história heroica, tampouco ocorrem histórias autorizadas e apologéticas, nas quais os argumentos de autoridade (ou a autoridade mesma) se sobreponham ao fato. Aqui, Rennó está revisitando a função primacial da fotografia: a produção de evidências. O projeto utópico de Brasília, com seus edifícios monumentais do poder, projetados por um arquiteto socialista, confronta-se com o massacre de operários na construção da cidade: “o caráter do inumerável e do imponderável: Os mortos não foram contados. As pessoas morriam muito novas. Uma coisa que me impressionou era que havia muitas crianças empregadas”(63). Anotando o número de ordem dos operários comprovadamente falecidos, desde o 163 a mais de 5.000, pesquisados no Arquivo Público do Distrito Federal, no fichário de funcionários da Novacap, na época a construtora do governo. Rennó fez a sequência dos mortos por ordem de entrada, como se retirasse do rol de funcionários os mortos, quase voltando ao formato do arquivo. “Transformo a pessoa em número puxado da pasta; resgato a ideia de arquivo, conservo o anonimato das pessoas”, informa ela. Sendo assim, Imemorial é um monumento fúnebre que celebra criticamente. Seu caráter arquitetônico está indicado na formulação de um espaço, ao ocupar um objeto parede e chão, em vez de estar situado no centro ou no muro. A formulação do espaço se dá no uso da parede e chão, quase como numa situação especular com a distribuição das fotografias e dos textos. O espelho real fica com as cinquenta fotografias agrupadas em faixas horizontais, sendo as fotos dos mortos em preto sobre preto, e as das crianças que trabalharam, mas não morreram, em cores muito escuras. Essas fotografias são feitas em filme gráfico, cuja superfície, muito brilhante e pintada de preto por trás, se torna então um espelho negro, indicativo do lugar de sombra social em que esses narcisos experimentam o desamor coletivo por si. Finalmente, o espelho obscuro, vazio no qual se projetam esses narcisos melancólicos pode dar a perceber que o retângulo da fotografia pode ser lápide para a morte agenciada. Se havia algum luto no processo de construção da cidade, havia também a solidão de seu arquiteto: “Mas à noite, ao recolher-me, ou quando todos se retiravam, sentia-me por demais só, e uma angústia enorme me invadia”, como confessa Oscar Niemeyer (64). A ironia melancólica de Rennó, frente a levantamento de monumentos apologéticos, é o título Imemorial (1994), como o monumento à capacidade do olhar de resistir à amnésia. Como se a morte de operários, como estrelas colapsadas, concentrasse uma energia que emergisse nessas imagens densas, escuras, quase negras. Aqui, Rosângela Rennó devasta a amnésia. Na produção de Rennó, obras como Imemorial atestam a dissolução dos grandes relatos e de um ponto de vista unitário da História. Desvenda-se um outro contrato social leonino: o modelo é fotografado para ser esquecido. No entanto, é preciso dizer que Rennó não tem a utopia do mundo diáfano de Rousseau, mas sabe que sua transposição dos limites, nessa experiência da clareza, seria como uma devassa na noite social. Por vezes Rennó até parece estar, a seu modo, imbuída do ideal de transparência social como em J.J. Rousseau. A artista trabalha com uma alteridade do olhar, do que vê e do outro que é visto. Imemorial, com seus retratos escuros de operários mortos, é uma constelação de buracos negros. 

    “A fotografia da paisagem, que poderíamos denominar também a ‘fotografia pátria’, não é um privilégio dos fabricantes de postais, mas sim um dever de todos os amadores de fotografia. A nossa terra em todos os seus aspectos, a grandiosidade com que se apresenta o romântico de suas luzes, é digna de muita obra-prima fotográfica”, ensina um popular manual de fotografia brasileiro (65). A instalação In Oblivionem (No Landscape) (1994-1995) (66) trata de uma arte sem corpo e de uma grandiosidade sem lugar. As imagens, aflitivamente imagens de nada ou quase ninguém, são incrustadas na parede. A instalação seria então um processo de manter vazio o espaço da galeria, o lugar da instalação. Em suas distintas versões, essa obra tem apresentado questões específicas adicionais em cada posto de exposição. Na mostra Cocido y Crudo no Centro Reina Sofía, em Madri, as imagens estavam instaladas em quatro janelas, que tinham 90 centímetros de profundidade. A artista trabalha a fotografia como uma superfície abismal tanto quanto o Cubo Branco conforma a ideologia do espaço da galeria de arte. Diz Brian O’Doherty em suas reflexões sobre o espaço expositivo contemporâneo que “a relação entre o plano da pintura e a parede que o sustenta é muito pertinente à estética da superfície”(67). A fotografia selava as janelas do edifício-museu, tornando-o um cubo branco tão cerrado quanto as catedrais antigas. Desse modo, a artista deixou o espaço expositivo totalmente vazio. A imagem proposta por Rennó, reduzida a seus significantes linguísticos, não ocupa lugar algum: está no interior da superfície. É como uma tatuagem impregnada na pelo do cubo branco, indelével apropriação de um corpo. Agora, a fotografia de Rosângela Rennó é aqui questão de espessura da superfície, depois de ser também espessura da luz. 

    Rennó passou a investigar também o lugar físico da imagem fotográfica no circuito de arte e o seu defrontamento pelo sujeito da percepção. É uma questão que já se problematizava em obras como Duas Lições de Realismo Fantástico (1991), em que estabelecia relações com o espaço das galerias do Paço das Artes em São Paulo, ao desenvolver uma cinta contínua de imagens por suas paredes e salas, localizando algumas exatamente em frente das janelas (ironizando o cânone fotopictorial da contraluz), além de lhes dar uma dimensão superior ao tamanho natural das pessoas, monumentalizando as antigas e diminutas fotos 3 x 4. Essa não é meramente uma operação física. A fotografia passa a ser o seu corpo, o lugar desse corpo, e o embate de um corpo com o corpo do espectador. Compreende ainda que essa forma de problematização de uma certa arquitetura da fotografia não seria apenas através das questões de dimensões da imagem (do papel fotográfico ou das projeções de slides etc.) ou a configuração do próprio espaço, mas incorporaria aspectos de escritura e também químicos e ópticos. Rennó sabe que o espaço de exposição também molda a percepção em seu processo de constituição de significados. 

    “Que em sombra e luz nos fogem, num repente”, exclama o poeta Bastos Tigre (68), num verso que bem poderia chamar-se “Hipocampo”. Na instalação Hipocampo (1995), Rosângela Rennó toma o cubo branco, ideal arquitetônico do espaço expositivo moderno, para revertê- lo em cubo preto de escuridão. A inversão articula também aspectos da fotografia como as polaridades negativo/positivo ou fotografia em preto e branco. O espaço poderia ser, então, o carro de Netuno, puxado pelo animal fabuloso, Hipocampo – um monstro marinho metade cavalo metade peixe -, no percurso do excesso à ausência de luz. O roteiro de Hipocampo é por regiões abissais da memória. Nas paredes brancas, os textos são escritos em planos perspectivados com pigmento fosforescente (69). O olhar deve faiscar significados. “Duma maneira geral. Fotografia é o maravilhoso processo de fixar as imagens dos objetos formados pela luz no interior de um aparelho fotográfico”(70). Em Hipocampo, um minuto de luz ativa a fosforescência. De uma maneira específica, Fotografia é o maravilhoso e às vezes doloroso processo de fixar as imagens dos objetos formados pela luz no interior de hipocampos. Hipocampos, Grande ou Pequeno, são regiões do cérebro, estruturas curvas salientes do corno temporal e occipital dos ventrículos laterais. Parecem imprimir na retina a fotografia que aqui não está. Iluminadas, a legibilidade dessas máculas é precária. Na escuridão, tudo se torna legível. Os textos flutuam como pura luz fantasmagórica, que logo passa a se esvair. De novo o espectro de Benjamin ronda a obra. Irônica, Rennó reduz a fotografia ao verbo, à sua negação, à escritura em luz fugidia. Antes a palavra na obra de Rennó tinha corpo (como nos volumes negativos das letras em Private Collection), funcionando como um diagrama da presença tangível da cópia. Agora a escrita é pura luz, a fotografia se anuncia como uma visagem. É o trabalho que mais se desloca do olhar como cultura para o nervo óptico. A fotografia, linguagem da luz, é reposta em sua condição de fenômeno luminoso. Rennó põe em xeque e põe a nu os próprios mecanismos da percepção. A fotografia agora seria uma espécie de enervação. São imagens que parecem se transformar em visões hipnagógicas. O que se vê é a perda da memória da fosforescência, diagrama do processo de oblívio tratado por Rennó. Oblitera-se a memória do próprio cubo branco da galeria, espaço social da arte. Hipocampo passa a ser o local do cérebro no qual os cientistas acreditam estar situada a memória. Nesse teatro do esquecimento, o trajeto do Hipocampo mítico é agora o da desmemorização. Nessa vertigem, os textos estão em fuga, porque a escrita, sendo em perspectiva, acentua a questão do ponto de vista (não do fotógrafo, mas do espectador). “Não confieis tão-somente à retentiva”, adverte em verso premonitório o poeta Bastos Tigre aos espectadores de Hipocampo

    “As crianças tinham acabado de sair do templo quando os jatos lançaram quatro tonéis de napalm e quatro bombas. A área toda foi consumida por uma gigantesca bola de fogo. X foi atingida por gotas de napalm. Arrancando suas roupas em chamas do corpo agonizante, ela correu uivando de dor em direção à câmera do fotógrafo e a um lugar na história”(71). 

    Rosângela Rennó inverte aquilo que era pura imagem em excesso e exclusividade verbal. A realidade fotográfica, nesse lance de Hipocampo, é agora puro referencial textual, mas conserva a noção de escritura, que remonta à tradição da poesia concreta e sua arte. Tudo foge. A notícia renega a presença da fotografia. “É a fotografia retenção da alma” diz a índia. O modelo foge da câmera. É a antipose. O espaço remete ao tempo. É o ponto de fuga. A escritura do texto é impressão fugaz na retina. É memória de instabilidades. Kim, a menina vietnamita, corre nua, pede socorro ao fotógrafo, foge do napalm ardendo em seu corpo. É o átimo de uma fotografia sem punctum. Aqui, o olho da câmera é o alvo da pulsão de vida no devir da talvez mais dramática imagem fotográfica de todos os tempos. É experiência da dor, circunstância inapreensível pelas possibilidades da comunicação verbal, diz-nos, diante dos jogos de linguagem. Wittgenstein: “Não pense, mas veja!” (72). Só a fotografia insiste em aprender o tempo. É o lugar da retina na topologia do esquecimento ou de um lugar na história. 

    Como numa instalação de Gary Hill, Hipocampo instala o olhar num campo de fantasmagorias de luz. Se em Hill há um diálogo e enfrentamento do corpo reduzido a uma potente imagem diáfana, na instalação de Rennó trabalha-se com a memória fantasmagórica do Outro, através de índices tênues do corpo. Em Rennó, já antes não se tinha a fotografia, substituída por notícias sobre elas. Agora nem mesmo se deseja a fotografia. Toda notícia agora nega a fotografia, como a de uma índia com suas razões míticas. A obra de Rosângela Rennó tem algo de reespelhamento. “No que se apresenta a mim como espaço de luz, o que é o olhar é sempre um jogo de luz com a opacidade”, diz Lacan. Configura-se então como uma dialética do desvendamento. 

    “Estou cada vez mais seduzida para trabalhar com imagens de grandes dimensões que não podem ser feitas com papel fotográfico. Interessam-me os paradoxos de tomar imagens do início do século e colocá-las em tecnologia contemporânea. Tomo a imagem química e vejo a mudança de significação com os novos meios. Comprei um computador [Power Mac] justamente para ter mais intimidade com este processo”, afirma Rosângela Rennó (73). A reconfiguração do olhar, para Rennó, está para além (ou para aquém) da ideia de verdade visual na idade pós-fotográfica. A realidade concreta da fotografia, seu caráter simbólico e uso efetivo asseguram-lhe uma validade. O olhar reconfigurado de Rennó é para aquilo que é tornado visível e evidenciado justamente para transformá-lo num não-visto. Para Rosângela Rennó, a reconfiguração do olhar, não buscaria então um conceito de “verdade visual”, mas de conhecimento de estratégias visuais em territórios sociais como a História da Arte ou a situação de classes sociais em seu abandono. Sem Título (1996) são retratos individuais em placas de metal em relevo (74). São trabalhados como clichês das antigas clicherias, que fizeram a matriz da imagem fotográfica da imprensa por largo período do século XX. A artista orienta a produção das retículas em relevos, determinando quanto esculpir na banheira de ácido para que os pontos abertos possam produzir o efeito de fotogravura. As imagens estão gravadas em positivo (peças cromadas) ou negativo (peças pretas). O processo das peças em negativo é um pretejamento com oxidação por banho de zinco, mas a imagem só é visível quando besuntada com alguma substância oleosa, explica a artista. Quando recebem luz oblíqua, as imagens cromadas produzem efeito semelhante a um daguerreótipo. As placas de metal recebem uma moldura de veludo. O que dá coesão ao conjunto é uma tatilidade, que aqui pode remeter ao Espelho Cego (1970) de Cildo Meireles. Impossível não querer tocar isso – a imagem em relevo – superando o olhar háptico. Há um jogo de temperaturas decorrentes dessa relação erótica do toque, na oposição entre o frio e a frieza do metal e o calor e o prazer do veludo. 

    Rosângela Rennó opera sobre os elementos que compõem o vocabulário da fotografia: luz e contraluz, química, câmera, negativo, pose, corte, cópia, ângulo e ponto de vista. A artista busca definir um sistema de significação específico para esses elementos, isento dos valores de eficiência da técnica. Obliteração do signo, censura e deturpação são efetivadas pelos agentes químicos sobre a película fotográfica. Luz que cega, contraluz aurática, lentes operam o controle social. Sem que se obedeça a uma lógica linear, todo o vocabulário se converte em ironia, metáfora, ruptura dos códigos da fotografia. O método de Rosângela Rennó implica, portanto, um redirecionamento do trabalho crítico de retórica visual. Rennó exacerba a amplificação das fotos 3 x 4, que passam de sua dimensão quase íntima e pessoal para um tamanho público, já à beira das imagens de publicidade, como Duas Lições de Realismo Fantástico. Outro argumento visual está nas sombras de Mulheres Iluminadas ou na quase eliminação da imagem em In Oblivionem, atingindo o limite da ilegibilidade. John Szarkowski analisa a tradição da fotografia baseada na cópia como administração da imagem: “A fotografia é um sistema de edição visual. No fundo é uma questão de emolduramento de uma parte do nosso cone de visão, ao permanecermos no lugar certo, na hora certa”(75). Em Hipocampo, trabalha sobre o desenvolvimento de uma arte que diverte bastonetes e cones de visão. 

    EIS O FILHO DA LUZ, gravou Febrônio Índio do Brasil em seu peito por tatuagem. Se a fotografia é linguagem da luz, este Índio do Brasil, internado no manicômio judiciário do Rio de Janeiro em 1927, seria, portanto, filho da fotografia, melhor dizendo, seria filho do fotojornalismo, porque seu retrato aparece nos jornais da então Capital Federal para satisfazer e aguçar a curiosidade popular sobre “aquele homem [que] era evidentemente um maníaco”, como o descreveu Blaise Cendrars, posto que “arrancava os dentes de suas vítimas e as tatuava com um sinal cabalístico”(76). O delirante texto de Blaise Cendrars causou polêmica na época em que foi publicado em Paris. Febrônio Índio do Brasil é a tatuagem na pele da polêmica modernista no Brasil. 

    “Não tocar mais no corpo ou o mínimo possível e para atingir nele algo que é o corpo propriamente. [...] O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos” – essa é a orientação do moderno sistema de controle social, como nas penitenciárias com sua nova arquitetura, tal qual descreve Michel Foucault em seu Vigiar e Punir (77). Na série Cicatriz (1966), Rosângela Rennó finalmente aproxima-se do universo da aplicação das teorias lombrosianas (78) e de sua crítica na moderna criminologia. Para realizar Cicatriz, Rosângela Rennó pesquisou longamente os arquivos fotográficos do Museu Penitenciário Paulista na Acadepen, pertencente à Penitenciária do Estado de São Paulo. Inaugurado por volta de 1910, o complexo do Carandiru compõe-se de quatro unidades autônomas: o Centro de Triagem, a Penitenciária Feminina, a Casa de Detenção (onde houve a chacina do Carandiru) e a Penitenciária do Estado. Os trabalhos fotográficos iniciaram-se por volta de 1915 no setor de Psiquiatria e Criminologia, sob a responsabilidade do Dr. Moraes Mello. Não há registro do nome do fotógrafo. “O que mais me impressiona em Carandiru é a quantidade de negativos. São 15.000. Isso é um chute, porque não dá nem pra contar. As fotos em Carandiru em geral, são mais de detalhe de intimidade do que as de J. A. Lassagne e Lombroso que conheço”, diz a artista (79). De certo modo o Museu Penitenciário Paulista pode ser correlacionado com o Museo Cesare Lombroso, criado em 1892 junto à Regia Università di Torino. Por sua vez, essas instituições remontariam de alguma forma a experiências anteriores, como a criação em 1874 do Serviço de Fotografia da Prefeitura de Polícia de Paris. Nessas instituições, a fotografia se põe como o olho da razão e do conhecimento. Assim, a danação vem do “olho divino” da fotografia. 

    O ângulo de visão é o que estabeleceria, para Cicatriz de Rosângela Rennó, a conexão mais imediata entre a câmera fotográfica e a prisão, com seu modelo arquitetônico orientado pela panóptica (80). O espaço seria de laboratórios de poder. Naquilo que seria o território lombrosiano feito em fotografia, Rennó procura encontrar outros índices de enquadramento e resistência, de individuação, identidade e diferença. “Macbeth, Hamlet e Otelo têm cada um a sua maneira de matar e de confessar”, afirma Enrico Ferri em 1902; “Essa verdade foi recentemente adquirida pela ciência, mas tinha sido adivinhada pela arte. Para a precisar, entre o tumultuar confuso das observações comuns e das verdades verossímeis, mas superficiais, recorreu a antropologia criminal ao bisturi da anatomia psicológica, nas cadeias e nos presídios, e socorreu-se a arte humana da intuição dos grandes gênios”(81). Cicatriz de Rosângela Rennó é, de modo crítico, uma fusão panóptico-lombrosiana. A arquitetura vira o olho da câmera, como uma grande-angular no espaço da penitenciária. O panóptico talvez seja a coisa mais semelhante à câmera munida de uma lente grande-angular. No conjunto de trabalhos em torno de Cicatriz (82), Rennó escrutina como se dá a construção do panóptico visual através da fotografia. A máquina fotográfica não é acessório, mas definição e conclusão, conjuntamente instrumento e prova, como afirma Giorgio E. Colombo (83). A artista extrai seu material relativo a esse modo de construir a extensão do olho fotográfico como a própria extensão do olho do Estado. Essa incidência do olhar fotográfico do Estado recai sobre o mais íntimo do corpo e sobre a relação do indivíduo com o próprio corpo. A câmera seria um olho onividente. Já não se vigia o lugar onde está o corpo do prisioneiro, mas todos os lugares do corpo do prisioneiro. No ambiente penitenciário e lombrosiano, os corpos são fotografados, marcados por signos, catalogados – “o tipo criminoso é retalhado em sua definitiva diversidade”, diz o mesmo Colombo. Constrói-se um homem indiciário, conforme os padrões da criminologia. A lente da câmera há muito já passara a constituir-se numa espécie de olho poderoso, como a da torre central do pan-óptico nas penitenciárias. Como no caso da ação penitenciária e da polícia técnica, Rennó passa a ler o próprio corpo do suspeito, no caso já não mais o preso, mas a própria fotografia, com o seu déficit social. Finalmente, pode-se dizer que o fotógrafo é um ladrão de almas. Rosângela Rennó produz uma bertillonage (84) poética. Encontra indícios e analogias de um discurso inaparente, subterrâneo ainda que correndo à flor da pele ou em sua espessura (85). 

    Desde os grandes mestres do Japão até aquele Índio do Brasil, “as razões para uma pessoa se tatuar têm sido discutidas de muitos modos por antropólogos, criminologistas e psiquiatras: atrair boa sorte ou espantar doenças ou o mal; provar ou exibir seu lugar ou status; decorar- se em ato de vaidade ou de auto-estima”, escreve Sandi Fellman (86). Para além dessas razões, entre as imagens de tatuagem selecionadas por Rosângela Rennó para o projeto Cicatriz, está a do presidiário apelidado d’Artagnan, que faz tatuar as inscrições alusivas à polícia: MORT AUX CONDES e MORT AUX VACHES, uma em cada pé, além de ENFANT DU MALHEUR. Outro interno faz inscrever em seu corpo as palavras TRAIÇÃO E VINGANÇA. São inscrições da resistência ao processo penitenciário. No Museu de Arte Contemporânea (MoCA) de Los Angeles (1996) a instalação Cicatriz é composta por dezoito fotografias e doze textos do Arquivo Universal que falam de cicatriz, sendo que os elementos têm uma disposição randômica. Os textos são realmente esculpidos na parede e as fotos encaixadas na parede de um modo absolutamente nivelado. “É uma instalação epitelial”, diz Rosângela Rennó, “pode-se passar a mão na parede e não há nada sendo projetado para fora. Só os textos estão em recesso”(87). Desse modo, Rennó deixará a galeria inteiramente vazia, nada ocupando de sua área. Os textos seriam, pois, como poros dessa exposição. As cicatrizes, nesses textos, são marcas tanto físicas quanto metafóricas. São marcas na alma porque são marcas no corpo. A pele que se tatua é a pele do cubo branco, território da arte. 

    Rosângela Rennó, no entanto, não adota uma posição maniqueísta ou benevolente na seleção das imagens. No interior da penitenciária existe uma prática, pelos condenados por crimes contra a propriedade e a vida, de se posicionar contra os praticantes de crimes de origem sexual (estupradores) e contra a diferença sexual (homossexuais), discrepante dos padrões dominantes numa sociedade machista. O grupo de presidiários dominante tinha o código, em geral, de fazer tatuar no rosto uma pinta, pequeno círculo negro, nos estupradores e homossexuais. O serviço fotográfico do Museu em Carandiru registrou inúmeros desses casos. A privação da vida heterossexual ativa aos presidiários resultava em mecanismos de compensação de fundo psíquico variado. Rennó apresenta algumas fotos de partes de rostos marcados por aquelas pintas, sinal da diferença (88). Estranhamente, a amnésia agora requer a lembrança, permanente, explícita e indelével. Na reorganização do capitalismo pelos presidiários e do sistema informal de poder entre os internos no presídio o estigmatizado se transforma em estigmatizador. 

    Não se pode discernir. Não se pode nomear. É proibido identificar. São fatos inomináveis. Não se trata do indizível na especulação filosófica ou nos entremeios da metafísica. “Aquilo de que não se pode falar, guarda-se em silêncio”, escreve Ludwig Wittgenstein no prólogo de seu Tractatus Logico-Philosophicus (89). O que é uma investigação filosófica de Ludwig Wittgenstein dos limites do conhecimento é, mutatis mutandis, parte de uma estratégia social no interior dos limites confinantes de um sistema de dominação: o que não se pode mostrar (isto é, tornar visível) deve lançar-se em sombra. A obra de Rennó trabalha então sobre uma área de recalque. Seu projeto não é apenas o mais óbvio, que seria iluminar o terreno social, mas sobretudo mapear a sombra. Com imagens visuais ou verbais, Rennó sabe, como Walter Benjamin, que “renunciar ao homem é a mais irrealizável de todas as exigências”(90). 

    A obra de Rosângela Rennó enquadra-se naquele conceito de fotografia enquanto uma prática de significação, enunciado por Victor Burgin como “trabalho com materiais específicos, dentro de um contexto social e histórico específico, e para objetivos específicos”. Pode parecer paradoxal afirmar que para a artista não houve uma decadência do papel da fotografia de tornar visível, evidenciar e aproximar. Sua obra aponta para o fato de que, no processo de amnésia social, a fotografia pode ser nova e eficiente forma de seu agenciamento, um jogo de esquecimento. Não é necessariamente a garantia absoluta de sua superação, como pareceu para alguns. Tornar visível é, portanto, apontar, dizer, recuperar a história, extrair do esquecimento. O principal do trabalho de Rennó talvez não seja resgatar a identidade, mas evidenciar o esquecimento produzindo uma fisionomia social pela recuperação de atitudes ante a fotografia e não meramente de imagens. E a partir daí, Rosângela Rennó age contra a inviolabilidade do esquecimento. Resgatar o sujeito no limite. Na arte brasileira o conceito de amnésia social de Rosângela Rennó pode ser comparado com o de “voz do gueto” de Cildo Meireles, em obras como Tiradentes: Totem – Monumento ao Preso Político (1970) e Olvido (Oblivion) (1989), ou com Emmanuel Nassar (91) a partir dos anos 80. A obra dessa artista opõe-se a qualquer operação de aphaeresis, em que a figura de retórica de supressão de um som é tomada como metáfora da supressão da própria voz sob a repressão política. Gueto seria a situação de confinamento e, sobretudo, vácuo, na qual se confronta com a impossibilidade da voz, seja ela um grito de dor ou denúncia. São ações em circunstâncias extremas em que o artista põe-se como duplo do Outro como única possibilidade de reconstituição da voz do oprimido. O que caracteriza essa produção de Rosângela Rennó é a compreensão de que o compromisso está também na forma de atuar e de organizar a obra. Victor Burgin sustenta que a imagem representa uma repressão contingente de práticas latentes: é nesse sentido que ela é ideológica (92). Naquela amnésia, o indizível não é apenas o nome esquecido e o anonimato, mas também a condição desse sujeito, transformado em ser inecessário pela ordem social. O indizível, para alguns, ficaria reservado a Deus, ou a certa tradição metafísica, como diria Wittgenstein. Na negação da imagem, Rennó revela o indizível, no recurso à extrema contundência do visível ou na sua aflitiva ausência. Sua obra, naquilo que contém de crítica à cultura, não cai na tentação de esquecer o indizível, porque busca, com toda a impotência que se queira de uma fotografia como imagem problematizada, que proteja o homem oprimido do indizível (93). 
    1. Victor Burgin, “Looking at Photographs”, em Thinking Photography, Londres, MacMillan Education, 1990, p. 153. 
    2. 2 Depoimento ao autor em 18 de maio de 1993. 
    3. Devem ser citados ainda outros artistas como Anna Bella Geiger, Antonio Dias, Cildo Meireles, Antonio Manuel, Waltercio Caldas, Ana Vitória Mussi, Sonia Andrade, Carmela Gross, Vera Chaves Barcellos, Júlio Plaza, Alair Gomes, Hugo Denizart, e o uso perverso da imagem fotográfica, como fetiche, nos objetos de Farnese de Andrade. 
    4. Lucy Lippard afirma que Iole de Freitas “combate o medo arquetípico feminino da faca ao manipu- lá-la ela mesma, em trabalhos fotográficos, cripticamente belos, às vezes combinando-a com fragmentos de seu corpo visto numa espécie de moldura de espelhos no chão, como se no processo de examinar ou reconstruir sua própria imagem (...)”, em From the Center: Feminist Essays on Women’s Art, Nova Yorque, E. Dutton, 1976, p. 136. 
    5. A exposição no Fotoforum de Frankfurt reuniu três gerações de fotógrafos: Claúdia Andujar, Mário Cravo Neto, Miguel Rio Branco, Luiz Braga, Rosângela Rennó e Paula Troppe. Algumas ideias aqui desenvolvidas nos primeiros parágrafos o foram a partir do texto de apresentação no catálogo dessa exposição, editado pela Câmara Brasileira do Livro, São Paulo, 1995. 
    6. Sérgio Buarque de Holanda estuda o assunto no período colonial em sua tese Visão do Paraíso (1958). 
    7. “Crise do Condicionamento Artístico” (1966), em Mundo, Homem, Arte em Crise, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 92. Ver também “Mundo em Crise, Homem em Crise, Arte em Crise” (1967), idem, pp. 215-20. 
    8. “Nota Preliminar”, em A Pintura em Pânico, Rio de Janeiro, edição do autor, 1943, s/n. A respeito, ver Paulo Herkenhoff, ”Fotografia, o Automático e o Longo Processo de Modernidade”, em Sete Ensaios sobre o Modernismo, Rio de Janeiro, Funarte, 1983, pp. 39-46. 
    9. Ensaios sobre a Fotografia, tradução brasileira de Joaquim Paiva, Rio de Janeiro, Arbor, 1981, p. 17. Todas as citações de Sontag foram extraídas dessa obra. 
    10. “Pequena História da Fotografia”, em Magia e Técnica, Arte e Política, 4a ed., tradução de Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 94. 
    11. “Retratos de Regiões, Raças e Profissões”. Colóquio Artes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, março de 1990, n. 84, pp. 42-49. 
    12. P.C. Azevedo e M. Lissovsky (orgs.), Escravos Brasileiros do Século XIX na Fotografia de Cristiano Junior, São Paulo, Ex-Libris, 1988. 
    13. “Estética, Memória e Ideologia Fotográfica: Decifrando a Realidade Interior das Imagens do Passado”, Acervo, Rio de Janeiro, 6(1-2): 13-24, jan-dez. 1993. As imagens eram anunciadas em 1866 pelo fotógrafo como “grande coleção de costumes e tipos de pretos, coisa própria para quem se retira para Europa”, apud Boris Kossoy. 
    14. Prefácio da primeira edição, em Jacob A. Riis, How the Other Half Lives, Nova Iorque, Dover, 1971.
    15. Depoimento por escrito ao autor em 10 de agosto de 1996. 
    16. “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica” (primeira versão), em Jacob A. Riis, op. cit,. pp. 165-196. 
    17. Paul Virilio, The Aethetics of Disappearance, Nora Iorque, Semiotext(e) Books, 1991. 
    18. A propósito ver Ligia Canongia, Imagem sobre Imagem, Rio de Janeiro, Espaço Cultural Sérgio Porto, 1991, Paulo Herkenhoff, “Fantasmas de Prata e Gelatina” em Indentidade do Analógico ao Di- gital, Niterói, UFF, 1992, e Tadeu Chiarelli, Uma fotografia Outra, São Paulo, Espaço Useche, 1993 e A Fotografia Contaminada, São Paulo, Centro Cultural São Paulo, 1994. 
    19. Raramente Rennó fotografa a produção de suas obras. Algumas partes do presente texto relativo a Rosângela Rennó são um resumo dos artigos “Construção do Sujeito” publicado pelo autor em Guia das Artes, São Paulo, 1993, no 32, pp. 12-13, e “Rosângela Rennó e as Últimas Fronteiras do Olhar”, em Urogallo, Madrid, 1995. 
    20. Faz parte da série Pequena Ecologia da Imagem, justamente com outras obras como A Mulher Que Perdeu a Memória, Passagem de Paris, Erro de Concordância e Estado de Exceção, todas de 1988. Antes, Rennó já havia participado de exposições coletivas como Fotografias na Itaúgaleria (1985) e Dez Fotógrafas no Palácio das Artes em Belo Horizonte. 
    21. Roland Barthes, A Câmara Clara, Lisboa, Edições 70, 1981, p.129: “Todos esses fotógrafos que se agitam no mundo, dedicando-se à captação da atualidade, não sabem que são agentes da Morte. É o modo como o nosso tempo assume a Morte: sob o álibi denegatório do terrivelmente vivo, de que o fotógrafo é, de certa forma, o profissional”. 
    22. Depoimento ao Autor em 10 de agosto de 1996. 
    23. Depoimento ao autor em 9 de junho de 1996. 
    24. Duane Michals, Duane Michals, Renaud Camus (introdução), Paris, Centre National de la Photo- graphie, e Nova Iorque, Pantheon Books, 1986. Ver também The Fallen Angel (O Anjo Caído), de Duane Michals. 
    25. Walter Benjamin, op. cit., p. 101. 
    26. Tratava-se de um mecanismo técnico, uma espécie de revólver inspirado na arma de repetição de Colt em que uma placa sensível (daguerreótipo), em rotação intermitente, é descoberta regular- mente por um disco obturador com 12 janelas, que permitem uma fotografia a cada 1,5 segundo. E. J. Mar(1830-1904), La Photographie em Mouvement, Paris, Centre Georges Pompidou, 1977,e nunca nos estudos do movimento n obra fotográfica do americano Eadweard Muybridge. 
    27. Walter Benjamin, op. cit., p. 101. 
    28. Para aproveitar o negativo de 6 x 9, o fotógrafo usou-o em dois retratos 3 x 4. Casualmente, a artista encontrou dois desses negativos em que havia as imagens de uma mesma mulher, uma de um homem e uma de uma segunda mulher, daí o título Triângulo Amoroso
    29. Depoimento escrito da artista ao autor em 10 de agosto de 1996. 
    30. Depoimento ao autor em 18 de maio de 1993. 
    31. Oiticica utilizou fotografias de marginais executados pela polícia, como no Bólide Caixa 18, Poema Caixa 2, Homenagem a Cara de Cavalo (1966) e Bólide Caixa 24 Cara de Cavalo (1968). Essas imagens foram obtidas em arquivos de jornais. Há inúmeros trabalhos com fotografias como a fotomontagem em Subterranean Tropicália Projects (com imagens de Lamarca morto) e fotos impressa de Marilyn Monroe (em QUASE-CINEMA BlockExperiments in Cosmococa, CC3 MAILERYN, 1973) ou Hendrix (em QUASE-CINEMA Block-Experiments in Cosmococa, CC5 HENDRIX WAR, 1973), ambas realizadas com Neville d’Almeida. 
    32. Depoimento escrito da artista ao autor em 10 de agosto de 1996. 
    33. “Novas Tendências” (1963), em Waldemar Cordeiro, uma Aventura da Razão, São Paulo, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1986, pp. 123-124. 
    34. A própria artista fala de sua memória visual, posto que “sou capaz de encontrar o negativo da mesma pessoa entre 2.000 outros” (depoimento ao autor em 18 de maio de 1996). 
    35. A mesma instalação, organizada de um modo um pouco diferente, foi apresentada na V Bienal de La Habana, sob o título de Curriculum Vitae. Na obra de Rennó, um precedente no trabalho de instalação com fotografia é Duas Lições de Realismo Fantástico (1991). 
    36. Didascália era, na Grécia antiga, o conjunto ordenado de preceitos e instruções relativos à represen- tação teatral, de ordinário elaborados pelo autor dramático e dados aos atores que lhe representavam as obras, conforme o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa
    37. A este propósito, ver Carne y Muerte, Gloria e Inframundo, de Jaime Cuadriello, em Juego de Ingenio y Agudeza, la Pintura Emblemática de la Nueva España, México, Museu Nacional de Arte, 1994, com relação ao México. A interpretação dessas representações neste parágrafo são extraídas do texto de Cuadriello. Rennó partiu de um velho cromo com uma dessas alegorias das etapas da vida da mulher, legendado em espanhol, e que existia na fazenda de sua família em Minas Gerais. 
    38. Edmond Roudnitska, L’Esthétique en question, Paris, PUF, 1977, p. 164.
    39. Cumpre fazer uma referência a Objetos de Sedução (1975), de Lygia Pape, que reúne um conjunto de quinquilharias, inclusive perucas, unhas e cílios postiços, batom, vidros de perfume. 
    40. Deve ser ressaltado aqui o complicado aspecto técnico de revelação de uma cópia, com múltiplas imagens, com a dimensão de 1 x 8 metros. Os 25 metros foram compostos por três fotografias gigantes. 
    41. Saul Karsz, “Time and Its Secret in Latin America”, em Time and Its Philosophy, Paris, Unesco, 1977, pp. 155.
    42. Boris Kossoy, “Estética, Memória e Ideologia Fotográfica”, em op. cit., pp. 13-24. 
    43. Idem, pp. 41-53. 
    44. Obituário Transparente, Obituário Preto, Puzzles, Irmãs Siamesas, O Grande Jogo da Memória e Amnésia fazem parte da exposição intitulada A Identidade do Jogo, apresentada pela primeira vez no Centro Cultural São Paulo em 1991. 
    45. Donald Kuspit, “The Repressed Face”, Aperture, no 114, primavera de 1989, pp. 48-54.
    46. Walter Benjamin, “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica” (primeira versão), em op. cit., pp. 165-196. 
    47. Umberto Eco, “Critique of the Image”, em Thinking Photography, op. cit., p.33. 
    48. Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que teria sido até então a maior reunião de chefes de Estado da história, daí essa instalação de Rennó conter a legenda The Earth Summit
    49. No território autorizado pela obra de Oiticica encontraremos, como as pinturas de Gerhard Ri- chter sobre prisioneiros políticos alemães, as instalações 111 de Nuno Ramos e Pedras de Lívia Flores (ambas de 1993), sobre o massacre de presos em São Paulo e de crianças no Rio de Janeiro. 
    50. Michel Frizot, Historie de voir, Paris, Centre National de la Photographie, 1989, vol. III, p. 132. 
    51. Catálogo 10a. Biennale de Paris, 1977, p. 144. 
    52. Derivada da instalação Duas Lições de Realismo Fantástico, desta vez constituída apenas pelas lanternas mágicas giratórias. 
    53. A atitude de Rennó é análoga à de Cláudia Andujar, que deixou de fotografar na década de 70, depois de ter morado por um longo período entre os Ianomami. Afirmando que fotografar não é mais importante. Andujar retoma suas antigas imagens para retrabalhar o signo fotográfico e conferir nova significação. Afirma que “O que eu tinha a dizer através da fotografia sobre os Ianomami eu disse. Não tenho mais tempo de fotografar. Na verdade faço muito mais que isto, fotografia, que é uma coisa mínima”. Coerentemente, Andujar realizou poucas exposições, quase sempre relacionadas com o trabalho de defesa do território dos Ianomami. Depoimento ao autor em 4 de fevereiro de 1994. 
    54. Simon Watney, “Making Strange: The Shattered Mirror”, em Thinking Photography, op. cit., pp. 160-161. 
    55. Conforme a análise de Robert Simpson em libreto de The Six Symphonies, de Carl Nielsen, no CD da London Symphony Orchestra (UK CD 2000/1/2), Londres, Unicorn-Kanchama Records, 1987. O compositor erroneamente chamou de “malincolico” ao tipo malinconico
    56. Claudius Galenus (131-201 AD), médico grego, que explicava a saúde através do equilíbrio ou desequilíbrio dos quatro humores, sendo a doença seus problemas e má cocção. Galeno e Aristóteles dominaram a medicina ocidental até o século XVIII, embora na Idade Média suas ideias tivessem tido prevalência maior. 
    57. A obra foi apresentada na mostra Aperto da Bienal de Veneza de 1993. 
    58. Depoimento escrito ao autor em 10 de agosto de 1996. 
    59. Entrevista ao autor em 18 de maio de 1993. 
    60. Depoimento ao autor em 18 de maio de 1993. 
    61. Entrevista de Rosângela Rennó ao autor em agosto de 1995. 
    62. “A Fotografia como Documento, Uma Instigação à Leitura”, Acervo, op. cit., pp. 121-132. 
    63. Sendo a obra relativa à construção da nova capital federal, Brasília é, no mito, identificada com o arquiteto Oscar Niemeyer, que também é o autor do conjunto Memorial da América Latina, em São Paulo. Rennó está aqui jogando com palavras. Evidentemente, a construção de Brasília, em que pese a perspectiva político-ideológica comunista do arquiteto, é processo do capitalismo no Brasil e o trabalho dos candangos, denominação dos operários da construção civil em Brasília, obviamente que se deu nos quadros das relações de classe do capitalismo no país. Rennó informa que o massacre ocorreu no alojamento da empreiteira Pacheco Fernandes, a partir de uma briga de dois operários por comida, e a Guarda Especial de Brasília (GEB) chegou atirando. A artista obteve as informações sobre o massacre em depoimentos que fazem parte do Projeto “História Oral”, desenvolvido pelo Arquivo Público do Distrito Federal. As informações deste parágrafo foram prestadas pela artista em seu depoimento ao autor em agosto de 1994. 
    64. Oscar Niemeyer, Minha Experiência em Brasília, Rio de Janeiro, Editorial Vitória, 1961, p. 23. 
    65. R. A. Freundfeld, Manual do Fotógrafo (Noções Preliminares), 3. ed., São Paulo, Melhoramentos, s.d., p. 63. 
    66. Apresentada na Bienal de São Paulo e, com notícias sobre mulheres, na exposição O Cru e o Cozido no Centro Reina Sofía, em Madri. Obra apresenta uma similaridade de título com a instalação Olvido (Oblivion) (1989) de Cildo Meireles, apresentada no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 1990. 
    67. Brian O’Doherty Inside the White Cube, 2. ed., Santa Mônica, The Lápis Press, 1986. Todos os comentários sobre a ideologia do Cubo Branco baseiam-se nas opiniões de O’ Doherth. 
    68. R. A. Freundfeld, “A Fotografia”, em op. cit., p. 8. Um verso dessa poesia deu origem ao título do presente ensaio. 
    69. O efeito de fosforescência é construído com um pigmento que capta e retém a luz, a qual é proje- tada através de uma lâmpada de tungstênio operada por um temporalizador. O processo compreende cerca de um minuto de exposição a essa luz e dois minutos e meio de escuridão. 
    70. G. dos Santos Leitão, Compêndio de Fotografia para Amadores, Rio de Janeiro, Giannini Fedrighi & Cia., 1926. 
    71. Fotofrafia de Huynh Cong (“Nick”) Ut numa estrada perto de Trang Bang no Vietnã (1972). 
    72. Investigações Filosóficas, n. 66, tradução de José Carlos Bruni, São Paulo, Abril Cultural, 1975. Essa sentença surge no contexto do raciocínio sobre parentescos de linguagem a partir da compara- ção dos processos de jogos de tabuleiro. 
    73. Depoimento ao autor em 11 de maio de 1996.
    74. Apresentadas na exposição Mercosul Cultural, no Centro Cultural São Paulo, 1996. 
    75. Susan Sontag, op. cit., p. 184. 
    76. Blaise Cendrars, “Febrônio Índio do Brasil”, em Etc..., Etc... (Um Livro 100% Brasileiro), São Pau- lo, Perspectiva, 1976, pp. 166-185. Acusado de abuso sexual e furor místico, Febrônio Índio do Brasil foi preso e depois transferido para o manicômio judiciário. Escreveu As Revelações do Príncipe do Fogo. Cendrars o teria visitado na penitenciária. Ver a respeito Alexandre Eulálio, A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars, São Paulo, Quíron, 1978. 
    77. Michel Foucault, Vigiar e Punir, tradução brasileira de Ligia M. Pondé Vassallo, Petrópolis, Vozes, 1977, p. 16. 
    78. Cesare Lombroso (1835-1909) é figura capital para a criminologia do século XIX. Desenvolveu teorias sobre as condições independentes da vontade (hereditariedade, doenças nervosas) que teriam papel na delinquência e limitariam a responsabilidade penal. Lombroso estabelece uma tipologia com os criminosos de nascimento com seus estigmas anatômicos, fisiológicos e psíquicos congênitos, criminosos alienados, criminosos de ocasião e criminosos passionais. 
    79. Depoimento oral ao autor em 10 de agosto de 1996. Todas as informações sobre Carandiru foram prestadas pela artista. 
    80. Uma construção que permite um sistema permanente de vigilância de todas as celas de uma prisão através de uma torre central, na qual o vigilante não é visto pelos presidiários, que então nunca sabem se estão sendo vigiados e, desse modo, internalizariam a própria vigilância. 
    81. Os Criminosos na Arte e na Literatura, 3. ed., Lisboa, Livraria Clássica, 1923. 
    82. Grande presídio do Estado de São Paulo, onde foram massacrados 111 presidiários em 1992 numa rebelião motivada pelas péssimas condições do sistema penitenciário. O fato tornou-se agente na arte brasileira, como se enumera na nota 49 supra. Rosângela Rennó procura Carandiru exclusiva- mente no arquivo fotográfico institucional e não pelo massacre. Inicialmente a direção do Presídio do Carandiru titubeou em autorizar a realização do projeto de Rennó por defesa da privacidade dos presidiários, ainda que todos provavelmente já mortos. No entanto, a artista apresentou-lhe uma edição da tese de doutorado de Francisco Alves Corrêa de Toledo, Contribuição ao Estudo das Tatuagens em Medicina Legal (São Paulo, Seção de Obras do Estado, 1924), na qual são publicados alguns prontuários. Para manutenção da privacidade dos internos fotografados, a direção do Carandiru exigiu da artista que não reproduzisse qualquer número de identificação dos presidiários porventura existentes nas fotografias. O Museo Cesare Lombroso, mencionado neste texto, também restringe a visitação pública. 
    83. Giorgio E. Colombo, “Le Stimmate del Galeotto”, Phototeca, 1(1): 128-120, 1980. 
    84. O escrivão da polícia francesa Alphonse Bertillon propõe, em 1876, o uso de uma antropometria somática recurso auxiliar da identificação, conforme Maurício Lissovsky, “O Dedo e a Orelha, Ascensão e Queda da Imagem nos Tempos Digitais”, Acervo, op. cit., pp. 55-74. 
    85. A busca da espessura da imagem, também com recurso à tatuagem, é encontrada paralelamente na obra da pintura Adriana Varejão, a partir de sua pintura Extirpação do Mal por Incisura (1994). 
    86. “Spirituality and the Flesh: The Japanese Tattoo”, em The Japanese Tattoo, Nova Iorque, Abberville Press, 1986, p. 14. 
    87. Depoimento oral ao autor em 10 de agosto de 1996. Na Bienal de São Paulo (1994), os textos estavam incrustados na parede e na mostra Crudo y Cocido a instalação se dava nos vãos em profundidade máxima do vão a 90 cm ou na superfície, como continuidade das paredes. 
    88. Por seu acordo com o Museu Penitenciário, Rennó aqui não apresenta o rosto inteiro dos presidiários. 
    89. Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, tradução portuguesa de M. S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. 
    90. Walter Benjamin, “Pequena História da Fotografia”, em Magia e Técnica, Arte e Política, op. cit., p. 102. 
    91. “Emmanuel Nassar: Arte de Solidões”, em Emmanuel Nassar, Niterói, Galeria da UFF, 1996. 
    92. Victor Burgin, “Photographic Practice and Art Theory”, em op. cit., p. 67. 
    93. Aqui foi realizada uma paráfrase de uma passagem de Theodor Adorno em Prismas, tradução espanhola de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962. 

    HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In Rosângela Rennó. Edusp: São Paulo, 1996, pp. 115-191.