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Rennó ou a beleza e o dulçor do presente


Textos relacionados ao trabalho

  • Hipocampo


Texts linked to the work Hippocampus


    […] “Que em sombra e luz nos fogem, num repente”, exclama o poeta Bastos Tigre (1), num verso que bem poderia chamar-se “Hipocampo”. Na instalação Hipocampo (1995), Rosângela Rennó toma o cubo branco, ideal arquitetônico do espaço expositivo moderno, para revertê- lo em cubo preto de escuridão. A inversão articula também aspectos da fotografia como as polaridades negativo/positivo ou fotografia em preto e branco. O espaço poderia ser, então, o carro de Netuno, puxado pelo animal fabuloso, Hipocampo – um monstro marinho metade cavalo metade peixe -, no percurso do excesso à ausência de luz. O roteiro de Hipocampo é por regiões abissais da memória. Nas paredes brancas, os textos são escritos em planos perspectivados com pigmento fosforescente (2). O olhar deve faiscar significados. “Duma maneira geral. Fotografia é o maravilhoso processo de fixar as imagens dos objetos formados pela luz no interior de um aparelho fotográfico”(3). Em Hipocampo, um minuto de luz ativa a fosforescência. De uma maneira específica, Fotografia é o maravilhoso e às vezes doloroso processo de fixar as imagens dos objetos formados pela luz no interior de hipocampos. Hipocampos, Grande ou Pequeno, são regiões do cérebro, estruturas curvas salientes do corno temporal e occipital dos ventrículos laterais. Parecem imprimir na retina a fotografia que aqui não está. Iluminadas, a legibilidade dessas máculas é precária. Na escuridão, tudo se torna legível. Os textos flutuam como pura luz fantasmagórica, que logo passa a se esvair. De novo o espectro de Benjamin ronda a obra. Irônica, Rennó reduz a fotografia ao verbo, à sua negação, à escritura em luz fugidia. Antes a palavra na obra de Rennó tinha corpo (como nos volumes negativos das letras em Private Collection), funcionando como um diagrama da presença tangível da cópia. Agora a escrita é pura luz, a fotografia se anuncia como uma visagem. É o trabalho que mais se desloca do olhar como cultura para o nervo óptico. A fotografia, linguagem da luz, é reposta em sua condição de fenômeno luminoso. Rennó põe em xeque e põe a nu os próprios mecanismos da percepção. A fotografia agora seria uma espécie de enervação. São imagens que parecem se transformar em visões hipnagógicas. O que se vê é a perda da memória da fosforescência, diagrama do processo de oblívio tratado por Rennó. Oblitera-se a memória do próprio cubo branco da galeria, espaço social da arte. Hipocampo passa a ser o local do cérebro no qual os cientistas acreditam estar situada a memória. Nesse teatro do esquecimento, o trajeto do Hipocampo mítico é agora o da desmemorização. Nessa vertigem, os textos estão em fuga, porque a escrita, sendo em perspectiva, acentua a questão do ponto de vista (não do fotógrafo, mas do espectador). “Não confieis tão-somente à retentiva”, adverte em verso premonitório o poeta Bastos Tigre aos espectadores de Hipocampo

    “As crianças tinham acabado de sair do templo quando os jatos lançaram quatro tonéis de napalm e quatro bombas. A área toda foi consumida por uma gigantesca bola de fogo. X foi atingida por gotas de napalm. Arrancando suas roupas em chamas do corpo agonizante, ela correu uivando de dor em direção à câmera do fotógrafo e a um lugar na história”(4). 

    Rosângela Rennó inverte aquilo que era pura imagem em excesso e exclusividade verbal. A realidade fotográfica, nesse lance de Hipocampo, é agora puro referencial textual, mas conserva a noção de escritura, que remonta à tradição da poesia concreta e sua arte. Tudo foge. A notícia renega a presença da fotografia. “É a fotografia retenção da alma” diz a índia. O modelo foge da câmera. É a antipose. O espaço remete ao tempo. É o ponto de fuga. A escritura do texto é impressão fugaz na retina. É memória de instabilidades. Kim, a menina vietnamita, corre nua, pede socorro ao fotógrafo, foge do napalm ardendo em seu corpo. É o átimo de uma fotografia sem punctum. Aqui, o olho da câmera é o alvo da pulsão de vida no devir da talvez mais dramática imagem fotográfica de todos os tempos. É experiência da dor, circunstância inapreensível pelas possibilidades da comunicação verbal, diz-nos, diante dos jogos de linguagem. Wittgenstein: “Não pense, mas veja!” (5). Só a fotografia insiste em aprender o tempo. É o lugar da retina na topologia do esquecimento ou de um lugar na história. 

    Como numa instalação de Gary Hill, Hipocampo instala o olhar num campo de fantasmagorias de luz. Se em Hill há um diálogo e enfrentamento do corpo reduzido a uma potente imagem diáfana, na instalação de Rennó trabalha-se com a memória fantasmagórica do Outro, através de índices tênues do corpo. Em Rennó, já antes não se tinha a fotografia, substituída por notícias sobre elas. Agora nem mesmo se deseja a fotografia. Toda notícia agora nega a fotografia, como a de uma índia com suas razões míticas. A obra de Rosângela Rennó tem algo de reespelhamento. “No que se apresenta a mim como espaço de luz, o que é o olhar é sempre um jogo de luz com a opacidade”, diz Lacan. Configura-se então como uma dialética do desvendamento.


        1.    R. A. Freundfeld, “A Fotografia”, em op. cit., p. 8. Um verso dessa poesia deu origem ao título do presente ensaio. 
        2.    O efeito de fosforescência é construído com um pigmento que capta e retém a luz, a qual é proje- tada através de uma lâmpada de tungstênio operada por um temporalizador. O processo compreende cerca de um minuto de exposição a essa luz e dois minutos e meio de escuridão. 
        3.    G. dos Santos Leitão, Compêndio de Fotografia para Amadores, Rio de Janeiro, Giannini Fedrighi & Cia., 1926. 
        4.    Fotofrafia de Huynh Cong (“Nick”) Ut numa estrada perto de Trang Bang no Vietnã (1972). 
        5.    Investigações Filosóficas, n. 66, tradução de José Carlos Bruni, São Paulo, Abril Cultural, 1975. Essa sentença surge no contexto do raciocínio sobre parentescos de linguagem a partir da compara- ção dos processos de jogos de tabuleiro. 


    HERKENHOFF, Paulo. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In Rosângela Rennó. Edusp: São Paulo, 1996, pp. 115-191.


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