site em reconstruçãosite under reconstruction

Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda

Even in the clearest of images something unknown remains
Textos relacionados ao trabalho


Texts linked to the work Erasure


    […] A potência de conhecimento que qualquer fotografia guarda não é, então, de todo abafada em função de seu uso como instrumento de substituição da memória e, por conseguinte, como indutor de amnésia. Continuam a pulsar, na sua superfície, informações variadas prontas a serem ativadas como elementos de cognição daquilo que ela apresenta como imagem descarnada. E como a demonstrar tal persistência a contrapelo das evidências, Rosângela Rennó toma de conjuntos de fotografias feitas pela polícia em quatro cenas de crimes – produzidas, portanto, para registrar e investigar tais fatos – e desconstrói cada uma delas em muitas outras imagens. Todos esses pedaços – emoldurados individualmente como diapositivos preparados para projeção – são justapostos sobre mesas ou caixas de luz, solicitando, do observador, a recomposição mental das fotografias relacionadas a cada um dos crimes. Assim esquadrinhadas e interrompidas pelas bordas das molduras de suas muitas partes, as cenas perdem, contudo, forçosamente o seu poder de informar sobre o evento que supostamente registra, posto que não há mais nelas uma hierarquia de valores visuais, levando o olhar a vagar de um a outro fragmento sem saber ao certo onde deve repousar. Tal efeito se sobrepõe, em verdade, à destituição de alteridade dos indivíduos mortos fotografados, já em marcha desde quando suas imagens foram arquivadas como parte de processos criminais. Não por acaso, a essa série de quatro trabalhos é dado o título de Apagamento [2005]. É essa obliteração de sentidos e identidades, entretanto, que permite a observação daquilo que não seria percebido caso a integridade da fotografia fosse preservada: papéis em cima de um guarda-roupa, a imagem de uma criança em um porta-retratos, uma roupa jogada no chão, bibelôs em cima de um móvel, a sombra de uma cerca projetada no piso, uma fruta que já não serve, uma janela deixada entreaberta, uma garrafa esquecida em um canto, mesmo os cabelos da perna de uma pessoa morta. 

    Existe, nesse procedimento da artista, algo próximo ao adotado pelo personagem-fotógrafo do filme Blow-Up [1966], do cineasta italiano Michelangelo Antonioni (1912), que recorta e amplia muitas vezes uma fotografia feita ao acaso por suspeitar que nela, em um ponto distante do assunto central da imagem, reside a prova de que um crime foi cometido. Em ambos, há a certeza de que as fotografias carregam com elas também um “infra-saber”, coleção de informações parciais e somente sugeridas que são irredutíveis aos fatos nelas apresentados como inequívocos e importantes (1). Há contida, ainda, em tais estratégias, a idéia de que uma imagem fotográfica não registra apenas o momento de ocorrência de um fato principal, mas instantes diversos nos quais sub-eventos se misturam, se modificam e se confundem de modo heterogêneo (2). Embora de impossível demonstração, tal noção é implicada na sobreposição, feita por Rosângela Rennó com algumas das imagens de crimes que ela “apaga”, de fragmentos de fotografias distintas, formando um palimpsesto de cenas que aludem não só a espaços separados mas, também, a tempos diferentes que co-existem em um mesmo fato. O referente, portanto, não é fixado de pronto em uma fotografia, mas estabelecido, de formas diversas, a partir de seu escrutínio por olhares diversos. (…)


        1.    Barthes, Roland. Ibid.
        2.    Derrida, Jacques. “The Photograph as Copy. Archive and Signature”. European Photograh, 19/20, Winter 1998/Summer 1999. 


    ANJOS, Moacir dos. Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda. In ANJOS, Moacir dos. Crítica. Rio de Janeiro: Automática, 2010, pp. 242-255.
    [...] The potential knowledge that any photograph contains is not, therefore, entirely annihilated by its use as a substitute for memory, which, in turn, induces amnesia. Its surface is abuzz with information ready to be brought to life as facets of cognition of that which it represents as an image shorn of flesh. Furthermore, as if to show such persistence against all evidence, Rosângela Rennó takes from sets of photographs taken by the police at four crime scenes—to register the facts as a basis for investigation—and deconstructs each one into many other images. All these pieces—each one framed as a slide ready for projection – are laid alongside one another on tables or light boxes, inviting the observer to recompose mentally the photographs relating to each of the crimes. Interrupted by the edge of the frames, the scenes lose, however, their power to provide information on the event that they supposedly register. The hierarchy of visual values they contained is broken down and the eye wanders from one fragment to another without knowing for certain where it should rest. This effect, in fact, superimposes itself on the deprivation of the corpses photographed of their alterity, which was already underway from the moment the images were archived as part of the criminal investigation. It is no accident that this series of four pieces is entitled Erasing [2005]. It is the very obliteration of meanings and identities that allows one to see what would be imperceptible if the photograph were preserved as a whole: papers over a wardrobe, the image of a child in a portrait frame, clothes scattered on the floor, knick-knacks on a piece of furniture, the shadow of a fence cast on the ground, rotten fruit, a window ajar, a bottle left in a corner, the hair on the legs of a corpse.

    The procedure the artist uses here comes close to that of the photographer in the film Blow-Up [1966], by the Italian director Michelangelo Antonioni (1912), who cuts and blows up a photograph taken by chance because he suspects that in a corner of the photo far removed from the main image there is proof that a crime was committed. In both cases, there is a certainty that photographs also carry an “infra-knowledge”, partial and merely suggested information that cannot be reduced to the facts they present as unequivocally important (1). Such strategies also contain the idea that a photographic image does not only register the moment of occurrence of a principal fact, but diverse instants, in which sub-events blend into each other, modify and become confused with one another in a heterogeneous way (2). Although impossible to demonstrate, this notion becomes implicit when Rosângela Rennó superimposes on some of the “erased” crime images fragments of other photographs, thereby forming a palimpsest of scenes that allude not only to separate places but also to different times coexisting in the same fact. The referent is thus not fixed and readily available in the photograph, but established in various ways under the scrutiny of a plurality of observations. […]


        1.    Barthes, Roland. Ibid.
        2.    Derrida, Jacques. “The Photograph as Copy. Archive and Signature”. European Photograph, 19/20, Winter 1998/Summer 1999.


    ANJOS, Moacir dos. Even in the clearest of images something unknown remains. In ANJOS, Moacir dos. Crítica. Rio de Janeiro: Automática, 2010, pp. 242-255.


    Texto completo

    Full text