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série vermelha (militares), 2000-2003

Red Series (Military men), 2000 -2003
impressões fotográficas em processo cromogênico digital (Lightjet) em papel Fuji Crystal Archive, laminadas
180 x 100 cm



laminated photographic digital Lightjet C-print on Fuji Crystal Archive paper
180 x 100 cm


(...) Um dos poucos projetos de apropriação fotográfica que Rosângela Rennó realizou sobre pessoas que ou detêm ou performam distinção socioeconômica é a série Vermelha (militares) (2000-03). Trata-se de uma etnografia do poder, que desloca o olhar antropológico para os corpos hegemônicos com o objetivo de os escrutinar e lançar sobre eles premissas de alteridade. O ponto de partida são dezesseis fotografias de adultos e crianças, todos do gênero masculino, trajando uniformes militares. Reproduzidas a partir de álbuns encontrados em sebos ou em coleções pessoais, essas imagens sofreram intervenções da artista e foram ampliadas a tamanho próximo à escala humana. 

Por trás dos personagens centrais, é marcante o vislumbre de algum traço de paisagem, ao invés dos fundos neutros, tão próprios das fotografias de registro civil. Esses são retratos de recordações, que vinculam a tarefa de representar indivíduos à de repertoriar suas vestes, poses, lugares e hábitos de lazer no momento específico do retrato. Nessa situação em que a contextualidade imagética e identitária parece constar como um privilégio de classe, é possível analisar, apesar das especificidades, o desejo afim dos retratados de se caracterizarem para justificar uma posição de superioridade na hierarquia social. Assim, as cenas escolhidas servem como indicativo de um universo muito maior e de uma mentalidade a partir da qual ser fotografado como um oficial militar supostamente agrega a esses indivíduos insígnias de bravura e poder. 

As cenas não se restringem ao Brasil, mas aqui acionam com assombro o legado de autoritarismo que governos militares tiveram e têm como marca. Ao trauma das mais de duas décadas de um regime ditatorial, entre 1964 e 1985, soma-se a revolta diante da gestão de Jair Bolsonaro, capitão reformado e presidente da república desde 2019, responsável pelo desastre humanitário, sanitário, ambiental e institucional em que o país se encontra. Como um ciclo sem fim nem reparação, os crimes da ditadura foram anistiados; a Comissão Nacional da Verdade, dedicada a apurá-los, foi concluída sem grandes desdobramentos em 2014; e o atual presidente, então deputado federal, na votação que culminou no impeachment de sua antecessora Dilma Rousseff, homenageou Carlos Brilhante Ustra, coronel e reconhecido torturador, inclusive da presidenta em vias de afastamento. Face a esse histórico, que sentimentos provoca a apologia sistemática ao gestual militarista em fotografias cotidianas e banais? 

A intervenção de Rennó é muito anterior a esses últimos eventos, mas brinda o momento presente com uma crítica contundente e atual. Por meio de ferramentas de edição digital, a artista aplicou uma veladura avermelhada sobre todas as imagens. As figuras se fundem quase por completo à camada espessa de cor, resultando em monocromos tanto impactantes quanto insólitos. Na qualidade de símbolo, o vermelho traz a alusão inevitável a sangue e violência, além de remeter, possivelmente em segunda instância, ao comunismo, ideário político a que os militares de ontem e de hoje fizeram e fazem uma oposição anedótica. Na qualidade de matéria, por sua vez, essa cor proporciona a opacidade necessária para se quebrar o sistema de crenças gerado pelas imagens e mais uma vez acessá-las enquanto construção ou já reconstrução. (...)



MAIA. Ana Maria. Seu espelho, um caleidoscópio(excerto de texto). In Rosângela Rennó: pequena ecologia da imagem. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9-35-
(…) One of Rosângela Rennó’s few projects of photographic appropriation that have as their subject people who either hold socioeconomic power or implement socioeconomic distinctions is Vermelha (militares) [Red (Military men)] series (2000-03). It is an ethnography of power in which the anthropological gaze is shifted to hegemonic bodies, with the aim of scrutinizing them and also viewing them on a premise of alterity. The starting point are 16 photographs of adults and children, all male, wearing military uniforms. Reproduced from albums found in bookstores or personal collections, these images were intervened on by the artist and were enlarged to a size close to human scale. 

It is remarkable that traces of landscape can be glimpsed behind the main characters instead of the neutral backgrounds typical of civil registration photos. These are portraits of memories, in which the task of representing individuals is linked to that of registering their clothing, poses, places and leisure habits at the specific moment of the portrait. In this situation, in which the contexts of image and identity seem to be tied to class privileges, one may—despite the specifics of each shot—detect the models’ desire to characterize themselves so as to justify a position of superiority in the social hierarchy. The chosen scenes are indications of a much larger universe and a mindset according to which being photographed as a soldier supposedly affixes emblems of bravery and power to these individuals. 

These scenes are not restricted to Brazil, but here they evoke with bewilderment the legacy of authoritarianism that has marked and still marks the country’s military governments. The trauma of a two- decade-long dictatorial regime (1964- 1985) is compounded by disgust at the Jair Bolsonaro administration. Bolsonaro, a retired captain and president since 2019, is responsible for the humanitarian, health, environmental and institutional disaster that has swept the country. In an endless cycle that leaves no space for reparation, the crimes of the military dictatorship were forgiven; the National Truth Commission, dedicated to their investigation, was closed without major developments in 2014; the current president, then a federal representative, in the voting session that culminated in the impeachment of his predecessor Dilma Rousseff, honored Carlos Brilhante Ustra, an army colonel and known torturer, one of whose victims was the former president. In such a historical context, what feelings are stirred by the systematic approval of militaristic gestures in everyday trivial photographs? 

Rennó’s intervention was carried out well before the Bolsonaro era, but it fits the present moment as a forceful and up-to-date critique. Using digital editing tools, she applied a reddish veil over all images. The figures are almost completely merged into the thick layer of color, resulting in both striking and unusual monochromes. As a symbol, the red color inevitably alludes to blood and violence, besides referring, perhaps secondarily, to communism, a political ideology to which the military of yesterday and today are typically opposed. In its materiality, in turn, red provides the opacity needed to break the belief system generated by the images and to once again access them as something to be constructed or reconstructed. (…)


MAIA. Ana Maria. Her mirror, a kaleidoscope (text excerpt). In Rosângela Rennó: Little Ecology of the Image. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2021, pp. 9- 35.


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