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projeto terra de José Ninguém, 2021
projeto eaux des colonies, 2020-2021
- eaux des colonies (les origines), 2020-2021
- eaux des colonies (en construction), 2021
aucune bête au monde, 2019
lanterna mágica, 2012
Río-Montevideo, 2011/2016
corpo extranho africano, 2011
menos-valia [leilão], 2010
matéria de poesia, 2008-2013
a última foto, 2006
apagamentos, 2004-2005
experiência de cinema, 2004
corpo da alma, 2003-2009
bibliotheca, 2002
espelho diário, 2001
série vermelha (militares), 2000-2003
cartologia, 2000
vera cruz, 2000
parede cega, 1998-2000
vulgo/texto, 1998
vulgo [alias], 1997-2003
cerimônia do adeus, 1997/2003
cicatriz, 1996/2023
paisagem de casamento, 1996
hipocampo, 1995/1998
imemorial, 1994
atentado ao poder, 1992
duas lições de realismo fantástico, 1991/2015
paz armada, 1990/2021
anti-cinema (fotogramas), 1989
anti-cinema (discos), 1989
- pequena ecologia da imagem, 1988
O museu das insignificâncias: a memória, a arte e os restos da derrota
- Primeiro contemplei no tocador as pequenas joias, as loções e os objetos que usava. Peguei-os e os olhei. Dei-lhe voltas e voltas na mão ao seu diminuto relógio. Depois olhei o armário. Todas aquelas roupas e aqueles acessórios, empilhados uns sobre os outros. Os objetos que completam a todo ser me produziram uma solidão e uma dor terríveis e a sensação e o desejo de ser seu.
AHMET HAMDI TANPINAR
I.
Não é o museu o que me interessa, o que me interessa são as insignificâncias e sua existência precária. Afinal, quem ou o que pode determinar a significância ou a insignificância das coisas? Os objetos descartados, perdidos ou esquecidos perdem o valor de uso, mas ganham, em poder de sugestão, um acréscimo que os coloca em algum lugar entre a relíquia e o testemunho, que os afasta da insignificância e os impregna de sentidos íntimos e pessoais, mas que, paradoxalmente, são uma e outra vez compartilhados.
No Museu Quinta de Bolívar, na cidade de Bucaramanga, nordeste da Colômbia, há, numa vitrine, um peinetón: um grande pente convexo de tartaruga que, na época colonial, as mulheres usavam como enfeite de cabelo, sob a mantilha de rendas. A legenda sob a vitrine diz: "Peinetón usado por una mujer que danzó con el libertador Simón Bolívar."(1) E imaginamos - criamos imagens - o garboso oficial, a bela mulher (tem que ter sido bela), os salões iluminados com velas. O pente é quase uma antiguidade, mas o que importa não é seu desenho, nem o material do qual é feito, nem a ocasião em que foi usado, nem sequer a identidade dessa mulher que dançou com o libertador. O significado da bela peça decorada está todo neste homem: Simon Bolívar, el libertador, que dançou com a mulher anônima.
Se considerarmos que uma relíquia é um objeto associado a um santo, ou a uma pessoa considerada santa, o peinetón é uma relíquia pois, de acordo com o ritual católico, as relíquias podem ser de três graus:
1º grau: Um fragmento do corpo santo,
2º grau: Um fragmento da roupa ou de algo que o santo usara durante sua vida, e
3º grau: Qualquer objeto que tenha sido tocado pelo santo.
Uma relíquia, então, de quarto grau, porque Simón Bolívar dançou, apertou a mão, enlaçou a cintura da dama que usava el peinetón. Sem encarnar a divindade das relíquias, todos os objetos que usamos ao longo da vida nunca perdem o encanto que nos fez desejá-los; esse encanto, porém, se transforma em amargura, em saudade, em melancolia. Na imensa melancolia que parece se desprender das coisas velhas, não das antiguidades, das coisas velhas: as cortinas de macramê da casa paterna, o rádio de baquelita, o leque de papel, o aquecedor a querosene, os botões de madrepérola, os vestidos tubinho, a máquina de escrever, filmadoras super-8, câmeras fotográficas agora inúteis, gravadores de fita cassete. Já há alguns anos – desde o final dos anos 1980, talvez – os mercados de pulgas foram se transformando em brechós, que se multiplicaram, deixaram de ser frequentados pelos pobres para, pouco a pouco, atrair jovens estudantes, neodândis ou moçoilas enfastiadas. A palavra modernariato, neologismo criado a partir do italiano antiquariato, começou a difundir-se junto com o termo vintage, que provém da enologia, para designar os objetos- -fetiches do século passado.
Mas a reabilitação e o uso desses objetos, a meio caminho entre cadáver putrefato e relíquia do corpo consagrado, começou a aparecer nas colagens e assemblages surrealistas. Porque, para Benjamin, o surrealismo
[f]oi o primeiro a ter pressentido as energias revolucionárias que transparecem no "antiquado", nas primeiras construções de ferro, nas primeiras fábricas, nas primeiras fotografias, nos objetos que começam a extinguir-se, nos pianos de cauda, nas roupas de mais de cinco anos, nos locais mundanos, quando a moda começa a abandoná-los. Esses autores compreenderam melhor que ninguém a relação entre esses objetos e a revolução. (2)
A estética do mercado de pulgas (e sua ética) consistiria em substituir o olhar histórico sobre o passado por um olhar político, tal como queria Walter Benjamin. De acordo com o filósofo, os surrealistas descobriram como, nos objetos fora de moda e nas coisas "escravizadas e escravizantes", estavam latentes energias reprimi- das que podiam explodir em "niilismo revolucionário". (3)
Na atualidade, corre-se o risco de que o fora de moda que está novamente em moda como no modernariato e no vintage - esgote suas energias reprimidas ao ser atualizado pelas múltiplas e indiferenciadas demandas de memória. Hoje, podemos somar às ruínas da burguesia – cujas cinzas ainda estão quentes – as ruínas fumegantes da classe média urbana e por que não? as do futuro do proletariado da primeira metade do século XX. (4)
Modernariato, vintage, memorabilia, suvenires: objetos de desenho, joias, roupas, material escolar, rótulos de produtos, películas, fotografias, livros, postais da Grande Guerra, da Segunda Guerra, do primeiro governo peronista, da Revolução Cubana, da Jovem Guarda, da Guerra Fria, da Conquista do Espaço, da Alemanha Oriental, da União Soviética... A cultura contemporânea parece estar sempre em confronto com os signos que criou, desenvolveu e destruiu para se perpetuar. Reprimidos, talvez esquecidos, porém ainda sobreviventes, esses signos conservariam o poder de reacender as cinzas para se incendiar nas ânsias do sonho utópico que os viu nascer.
II.
Em Montevidéu, Uruguai, longe do centro, se encontra o Museu da Memória. Ocupa a Quinta de Santos, um palacete de verão que pertenceu ao ditador Máximo Santos, que governou o país entre 1882 e 1886. Trata-se de uma residência luxuosa no meio de amplos jardins, onde se encontra um pequeno castelo que servia de casa de bonecas para as filhas do ditador, um zoológico cercado de grades, a leonera (5), de triste fama, pavilhões para a criação de pássaros exóticos, uma gruta artificial atravessada por corredores labirínticos e iluminada com luz de gás, fontes, estátuas, cascatas artificiais...
Nessa casa, a memória das ditaduras recentes, ainda que em ruínas, se materializa em uma coleção de objetos residuais que, por sua modéstia extrema, parecem ser indignos de ocupar qual- quer vitrine. Abundam as fotos, muitas vezes grandes ampliações de pequenas imagens extraídas da imprensa da clandestinidade, um punhado de uniformes carcerários, portas de celas, panelas de alumínio usadas, a impressora de uma gráfica clandestina, algumas bandeiras, poucos panfletos. O que causa mais emoção, entretanto, o que marca mais o breve passo do tempo são os objetos insignificantes que, destinados ao descarte ou ao esquecimento, testemunham a resistência dos uruguaios durante a ditadura.
VITRINE 1: Esferas de rolimã, bolinhas de chumbo, uma garrafa de vidro com uma mecha de pano, pregos dobrados ao meio e soldados em cruz, panfletos manuscritos, boletins reproduzidos em mimeógrafo a álcool. A legenda explica: “Esferas y municiones para hacer cavallos resbalar, miguelitos, bombas de alquitrán, panfletos y diarios de la resistencia." (6)
VITRINE 2: Cinto masculino de couro sobre um diário onde se lê “El drama de la madre de Castagnetto” (7) e a notícia do desaparecimento do militante Héctor Castagnetto, sequestrado pelas forças paramilitares.
VITRINE 3: Uma pequena caixa de latão que contém um caderninho escrito com letra diminuta. A legenda diz: “Hojas donde se escribió, copiado, el libro ‘Historia del Partido Comunista Vietnamita' Ismael Bassin, hecho en el Penal de Libertad." (8)
VITRINE 4: Sobre saquinhos de papel de seda, estão expostos adornos feitos pelos presos políticos: uma cruz, uma aliança, uma agulha, uma pulseira, um anel de sinete e vários medalhões, todos talhados em osso. Há também pequenas esculturas e baixos-relevos feitos em barras de sabão.
A instalação museológica organiza os objetos como se fossem obras de arte, o que lhes confere um encanto inicial, pois estamos longe da aridez de um museu histórico. O efeito do fora de moda se potencializa na consciência daqueles que (como eu) viveram esse passado sem nunca esperar ver tais objetos elevados à categoria de objeto museificado.
Há uma estranha suspensão de valores na exibição das armas rudimentares dos resistentes – não são espadas, nem fuzis, nem metralhadoras –, e, ainda que reconheçamos sua modesta eficácia, passa rapidamente por nossa mente a pergunta sobre seu possível uso no século XXI. O coquetel-molotov evoca o espectro de um século XX que nunca cessa de acabar.
III.
Na página Memoria Abierta, inaugurou-se recentemente uma seção nomeada "Vestigios, un ensayo de transmisión através de los objetos" (9). Os organizadores da página propõem duas questões fundamentais: se os objetos podem estabelecer relações entre passado e presente, e se podem ser utilizados como ferramentas para a transmissão da memória.
Essa proposta busca explorar a capacidade que têm os objetos para estabelecer relações entre passado e presente, de maneira que possam ser utilizados como veículos para a transmissão da memória e que, ao mesmo tempo, promovam o debate e a reflexão. (10)
Com esse propósito, revelam e colocam na página fotografias de objetos daqueles anos, que familiares e amigos de vítimas da última ditadura militar conservaram. Cada objeto é acompanhado por um relato que o identifica e contextualiza.
Duas vezes vestígio, porque restos e porque fotografias, o que a página exibe são fotos de objetos deixados pelos militantes mortos ou desaparecidos e que são estimados como relíquias por seus parentes e amigos. Essas imagens - fotos de família, cadernos e livros escolares, discos, objetos feitos na prisão, memorabilia peronista - encerram e ativam a memória pessoal e afetiva que muitas vezes está ausente dos relatos históricos.
IV.
O escritor turco Orhan Pamuk acabou de inaugurar o Museu da Inocência, situado em um prédio do século XIX, no bairro de Çukurcuma, Istambul. Museu da Inocência é também o nome do último romance do autor, que narra a história do amor impossível de Kemal, filho de uma rica família burguesa, por Füsun, sua prima distante, muito mais nova que ele, bela e pobre. No final do longo relato, Kemal, que foi colecionando objetos ligados a Füsun, decide exibi-los no Museu da Inocência, um monumento em memória da juventude perdida.
Kemal conserva amorosamente cada relíquia de Füsun que pôde guardar ou roubar: o brinco que ficou entre os lençóis no dia do primeiro encontro, o saleiro que ela, uma vez, tocou, o pequeno cachorro de porcelana que ficava em cima do televisor da sua casa, o triciclo que a família de Kemal emprestou aos parentes pobres, o ralador de marmelo, 4.213 guimbas de cigarro, 237 fivelas de cabelo, 419 bilhetes da loteria nacional, lenços, ingressos de cinema, caroços de azeitona... O museu é o santuário de uma vida desperdiçada, onde os objetos escamoteados estão, como relíquias do corpo de Füsun, a lembrar os momentos em que Kemal estivera próximo da amada.
Lembro com imensa alegria que uma vez tomei com meu garfo uma das pequenas almôndegas morenas do seu prato e a pus na boca, quando, falando disto ou daquilo, me perguntou “Quer prová-las?", e outra, de novo induzido por ela, as azeitonas que apartava ao lado do prato, cujos caroços exponho aqui." (11)
Como o personagem de seu livro, o escritor organizou um museu de objetos ordinários em 83 vitrines, que correspondem a cada um dos 83 capítulos do romance. Negar Azimi, editora-chefe de Bidoun, uma revista sobre arte e cultura do Oriente Médio, sediada em Nova York, relata que Pamuk lhe disse que necessitava desses objetos para escrever seu relato:
Minhas percepções, ou você pode dizer, minhas antenas, estão atentas a tudo nas vitrines das lojas, nas casas dos amigos, nos mercados de pulgas e nos antiquários. Assim foi como o Museu da Inocência veio à tona. (12)
Como Kemal fizera no romance, durante anos Pamuk percorreu centenas de museus como o recém-inaugurado Museu da Inocência: longínquos, desconhecidos, esquisitos, assustadores monumentos dedicados a vidas insignificantes, a histórias ordinárias. "Meu romance honra os museus onde ninguém vai, aqueles nos quais você pode ouvir o som dos seus próprios passos. "(13)
O sentimento que impregna esses museus é identificado por Pamuk como hüzün. Em Istambul (14), Pamuk dedica um capítulo à palavra turca hüzün, que costuma ser traduzida por melancolia. Hüzün, que tem origem árabe, carrega em si um significado teológico de perda espiritual profunda, angústia e luto. Para o sufismo, hüzün é a angústia espiritual que se sente ante a impossibilidade de se aproximar ainda mais de Deus. Como a melancolia, hüzün é um estado de alma sombrio, entre elegíaco e nostálgico, um sentimento de fracasso terreno e, ao mesmo tempo, de indiferença. O Museu da Inocência, suas páginas e suas vitrines, onde os objetos, isolados do relato, livres talvez dele, estão a contar não somente a história de Kemal e Füsun, mas todas as histórias de amor, é o território do hüzün.
V.
a) Em uma foto, vemos um rapaz que levanta no ar um bebê de menos de um ano. O rapaz sorri, a criança olha assustada. Abrem-se outras: em uma, o jovem abraça o menino contra seu peito; na terceira, a família completa: mãe e pai sorriem com o bebê nos braços.
Essas fotos foram tiradas em uma quinta em San Miguel onde estávamos clandestinos meu marido, meu filho e eu. Meus sogros também tinham vindo de Mendoza e estavam vivendo conosco. Alguns dias antes, meu cunhado havia desaparecido. Vivíamos em uma casa muito simplesinha, em frente havia um arvoredo e atrás outra casa onde viviam meus sogros. Era uma região de quintas, daí havia vizinhos, e por isso queríamos dar a impressão de sermos uma família muito normal. Assim, combinamos fazer um dia de visita familiar no qual veio minha irmã, os filhos etc. Todos chegaram escondidos para que não soubessem onde estava a casa. Minha irmã trouxe uma câmera e aproveitamos para tirar muitas fotos. Isso era janeiro de 1976 e meu marido desapareceu seis meses depois. Essa é a única foto que temos de nós dois com nosso filho. (15)
b) Na vitrine veem-se esferas de rolimã, bolinhas de chumbo, uma garrafa de vidro com uma mecha de pano, pregos dobrados ao meio e soldados em cruz, panfletos manuscritos, boletins reproduzidos em mimeógrafo a álcool. A legenda explica: "Esferas y municiones para hacer cavallos resbalar, miguelitos, bombas de alquitrán, panfletos y diarios de la resistencia."
c) O Museu da Inocência - últimos parágrafos-, os personagens olham, sob a pálida luz da rua, uma fotografia:
Ambos olhamos a fotografia de Füsun com um maiô negro no qual levava o número 9, com respeito, amor e admiração, por seus braços cor de mel, seu nada alegre rosto, pelo contrário, bem triste, seu corpo maravilhoso e a intensidade humana e a espiritualidade que nos maravilhavam trinta e quatro anos justos depois que tiraram a fotografia.
- Por favor, ponha essa foto no seu museu, Kemal Bey... (16)
d) As fotos de cinco porta-retratos empilhados comprados na Cidade do México: aquele que está por cima mostra o retrato de um menininho, o seguinte deixa adivinhar a imagem de uma menina, depois as imagens estão cobertas e só se veem marcos dourados. Não se sabe quem são essas crianças, onde estão; adivinhamos por suas roupas que já não devem mais estar vivas.
LOTE 16
EMPILHAMENTO DE PORTA-RETRATOS
C.D.O. MERCADO DE RUA [TIANGUIS] DE SANTA CRUZ, CIDADE DO MÉXICO
P.P.P.O. 37,00
L.I. 130,00
5 PORTA-RETRATOS EM MATERIAIS DIFERENTES, METAL E/OU MADEIRA FOLHEADA A OURO, SOBREPOSTOS.
30X22X8 CM
VI.
Nos anos 1970, Christian Boltanski deu início aos seus Inventários. Tudo começou com uma carta manuscrita que o artista enviou em janeiro de 1973 a vários museus de história e ciências naturais e a vários curadores que conheciam sua obra.
Eu gostaria de apresentar a vocês, em uma das salas do seu museu, todos os objetos que rodearam uma pessoa durante sua vida, os quais, depois de sua morte, restam como testemunhos de sua existência. [...] Todos esses elementos devem ser apresentados em vitrines e cuidadosamente classificados. (17)
Um dos primeiros a responder foi o Staatliche Kunsthalle em Baden-Baden, que realizou o projeto e mostrou os objetos de uma mulher que tinha morrido recentemente. Outras cinco versões foram montadas entre 1973 e 1974, entre elas Inventário dos objetos que pertenceram a um residente de Oxford (Museum of Modern Art, Oxford) e Inventário dos objetos que pertenceram a umа mulher de Bois-Colombes (Centre National d'Art Contemporain - CNAC, Paris)
(…) Na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, no primeiro pavimento, em um pequeno espaço delimitado por duas paredes debaixo do mezanino, encontrava-se a instalação Menos-valia (leilão), de Rosângela Rennó, que constava de 73 objetos dispostos nas paredes e sobre uma mesa escalonada que ocupava o centro da sala. Cordões de isolamento separavam os objetos dos visitantes. Cada objeto estava perfurado e por esse furo passava uma corrente fina que sustentava uma plaqueta na qual se lia o nome da artista, o nome da instalação e o lugar onde o objeto fora adquirido. Uma placa na parede esclarecia que os objetos seriam leiloados em data próxima ao final da 29ª Bienal, pelo leiloeiro oficial Aloísio Cravo, especializado em pintura brasileira.
O trabalho Menos-valia (leilão) já havia sido realizado - como um ensaio piloto com o título de Menos-valia (subasta) – no Museo Universitario de Arte Contemporáneo (Muac) da Unam, dentro da programação do evento Jardín de Academus, organizado e curado pelo artista mexicano José Miguel Casanova.
Esse leilão, realizado em maio de 2010, investigava as possibilidades de atribuir um valor de exposição legitimado a objetos comprados nos tianguis da Cidade do México. Os lotes incluíram objetos variados, não apenas relacionados ao campo da imagem técnica. O que todos tinham em comum era estar à venda nos mais humildes mercados de usados e, talvez, uma certa aparência carinhosamente kitsch. No muro do museu e sobre a mesa de exposição, coberta de veludo vermelho, havia brinquedos infantis, bibelôs, frascos de vidro, mas também porta-retratos, visores estereoscópicos, fotografias emolduradas.
Em São Paulo, a artista montou 73 objetos nos quais usou como matéria-prima equipamentos fotográficos e filmográficos descartados, comprados nos mercados de pulgas mais pobres de dois continentes. Em suas derivas pelas feiras de Montevidéu, Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa, pelos tianguis do México, por El Rastro de Madri ou pelo marché aux puces de Paris, Rennó coletou câmeras fotográficas, carrosséis, visores e projetores de slides, dispositivos de estereoscopia, lanternas mágicas, praxinoscópios, microscópios, telescópios, binóculos, lunetas, lupas, espelhos, quebra-cabeças, silhuetas, álbuns de fotos, retratos, porta-retratos e também velhas fotografias.
Na figura contemporânea do artista nômade, à deriva entre centros e periferias, subsiste a imagem modernista do trapeiro - o catador - à deriva também entre o centro e a periferia da cidade para juntar o lixo dos que têm lixo para jogar.
Esse paradigma do artista como herói da modernidade se desdobra, para Baudelaire, numa corte orgulhosa de despossuídos: o esgrimista, o salteador, o apache, mas sobretudo o trapeiro.
[...] tem de recolher na capital o lixo de cada dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória: separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede, como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa Indústria, vai adotar a forma de objetos úteis e agradáveis. (18)
"Baudelaire percorria seu bairro e a cidade com um andar aos trancos, nervoso e lânguido ao mesmo tempo, como o de um gato, escolhendo cada paralelepipedo como se evitasse esmagar um ovo."(19) Esse andar abrupto de Baudelaire que Nadar descreve – nos fala Benjamin –, seria “o passo do poeta que erra pela cidade à cata de rimas", (20) um andar de trapeiro, que se interrompe, a todo instante, para escolher e guardar objetos ou pensamentos descartados.
O trapeiro é também um colecionador: coleciona “os anais da devassidão, o cafarnaum da escória”, os restos das catástrofes que flutuam atrás de nós em pura perda. As coisas que o trapeiro resgata desse limbo, que nem sequer são ruínas, serão transformadas, pois, diferentemente do colecionador, ele não amealha para si, apenas recolhe e encaminha.
Com elegância, delicadeza e, às vezes, humor, Rosângela Rennó montou esses restos e os transformou em objetos-fetiches, obje- tos-relíquias: objetos ambiguos que deslizam do sagrado ao profano, do sublime ao grotesco, da ironia à melancolia. Por acaso não é melancólico o sorriso que esboçamos ao ver aquela câmera fotográfica que tanto desejamos décadas atrás enclausurada em uma vitrine que a conserva e a alija de nós, como se fosse uma tânagra ou um pequeno hipopótamo egípcio de cerâmica vitrificada?
Em cada objeto se sobrepõem camadas de recordações. É possível que a primeira percepção seja a escassa temporalidade das coisas em si, porém, a partir desse dado, começam a brotar as memórias do uso, das condições de uso, do lugar onde foi comprada, das imagens que quase sempre vêm junto, das situações cotidianas nas quais se incluíram e, por fim - last but not least -, da preexistência mnemônica de obras da própria artista e de outros artistas.
Os objetos de Menos-valia (leilão) ativam a memória e, inconscientemente, a modificam, porque a hipotética memória primeira se acresce à memória do objeto evocado. Nesse processo de subtextualidade de "imagens mnemônicas anteriores", (21) que não é citação e muito menos pastiche - no sentido de transmissão de elementos visuais, reside o fundamento de uma tradição artística.
Defronte da instalação, se percebe que vários objetos evocam obras anteriores de Rennó como Realismo fantástico, Puzzles [homem e mulher], Arquivo universal, In oblivionem, série Vulgo, série Vermelha, Cartologia, Bibliotheca, Corpo da alma e A última foto, nomeando-os em ordem cronológica. Alguns objetos passeiam pela fotografia do século XIX, pela fotografia surrealista, pela jornalística ou pelo voyeurismo das fotografias pornográficas. Sobre outros objetos, flutuam alusões aos bichos de Lygia Clark, a um Bólide de Hélio Oiticica – a inesquecível foto de Mosquito da Mangueira com as mãos no rosto, olhando o Bólide Luz 1, Apropriação 3, plastiscope, 1966 –, aos agrupamentos de fotografias de Annette Messager. Um sentido sutil de ridículo impregna os objetos perfeitos que Rosângela constrói com elementos populares de sua geração: os abajures feitos com os carrosséis de diapositivos dos projetores Kodak, coroados por cúpulas como as que se usavam nas construções populares dos anos 1980, ou os simulacros de televisores montados com visores de meio quadro, como os que os fotógrafos de rua vendiam na mesma época. Objetos simples que evocam o consumo de imagens da classe média baixa no saudoso kitsch daquela década – não inteiramente perdida.
No texto que introduz o trabalho, a artista evoca uma nova disciplina: a Ruinologia,
[n]o campo das ideias, Menos-valia [leilão] pode ser compreendida, também, como uma das práticas contemporâneas mais fortemente vinculadas às atuais teorias da Ruinologia, como a do "recuperacionismo ativo de transformação", entre outras consolidadas recentemente. (22)
As ruínas que Rennó recupera são restos de um passado mais ou menos próximo, resíduos da vida moderna que ainda parece existir e proliferar, cada vez mais degradada, nas periferias pobres de nossas cidades opulentas. O que move a artista é um sentimento melancólico que não se regozija no perdido, mas que aceita a perda e a torna produtiva.
As ruínas perturbam porque anunciam a iminente perda de sentido que ameaça toda obra humana, mas essa falha na significância (essa insignificância) transforma-se numa vertiginosa proliferação discursiva. Na Renascença, os restos arquitetônicos das antigas civilizações adquiriram o estatuto de testemunhos, ainda vivos, de tempos mais gloriosos. Objetos e fragmentos de objetos do passado, sem significado nem função, foram investidos com valores estéticos, políticos ou históricos do presente. Os objetos de Rosângela Rennó apontam para pontos cegos na indagação sobre sua própria origem; são lugar onde se confrontam estratégias de reflexão que podem nos dizer mais sobre quem as olha que sobre o que é olhado.
- "Pente ornamentado usado por uma mulher que dançou com o libertador Simón Bolívar" (tradução livre). Devo essa informação ao dr. Adolfo Cifuentes.
- BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política - Ensaios sobre literatura e a história da cultura. Obras escolhidas, v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 25.
- 3 Idem.
- Cf. FOSTER, H. “This Funeral is for the Wrong Corpse”. In: Design & Crime. Londres: Verso, 2002, p. 139.
- Um fosso onde o ditador criava leões e, dizem, costumava jogar seus opositores.
- "Esferas e munições para fazer com o que os cavalos escorreguem, armadilhas de pregos soldados, bombas de alcatrão, panfletos e diários da resistência” (tradução livre).
- 7 "O drama da mãe de Castagnetto" [tradução livre].
- "Folhas onde se escreveu, copiado, o livro 'História do Partido Comunista Vietnamita' Ismael Bassin, feito na Penitenciária de Libertad” [tradução livre].
- Disponível em: http://www.memoriaabierta.org.ar/vestigios.
- Idem (tradução livre).
- PAMUK, O. O Museu da Inocência. Barcelona: Ladrões, 2009, p. 418 [tradução livre]
- PAMUK, O. apud AZIMI, N. “Os Objetos do Exercício”. Nova York: The New York Times, 1º de novembro de 2009.
- Idem.
- PAMUK, O. O Museu da Inocência. Barcelona: Mondadori. 2009, pág. 100.
- http://www.memoriaabierta.org.ar/vestigios/objeto.php?id=81 [tradução livre].
- PAMUK, O., op. cit., pág. 641.
- BOLTANSKI, C. apud GUMPERT, L. Christian Boltanski. Paris: Flammarion, 1994, p. 41.
- BAUDELAIRE, C. apud BENJAMIN, W. Charles Baudelaire, um lírico do auge do capitalismo. Obras escolhidas, v. 3. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 79.
- Cit. em Firmin Maillard, La cité des Intellectuels. Paris, 1905, p. 362 apud BENJAMIN, W. Passagens. BOLLE, W. (org) Belo Horizonte / São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 227.
- BAUDELAIRE, C. apud BENJAMIN, W. Charles Baudelaire, um lírico do auge do capitalismo. Obras escolhidas, v. 3. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 79.
- FOSTER, H., op. cit., p. 67.
- Texto de apresentação de Menos-valia (leilão), de Rosângela Rennó. Texto de parede na 29ª Bienal de São Paulo
MELENDI, Maria Angélica. O museu das insignificâncias: a memória, a arte e os restos da derrota. In MELENDI, Maria Angélica. Estratégias da arte em uma era de catástrofes. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017, pp. 357-374.
Texto originalmente publicado em: FLORES, Maria Bernadete Ramos; PETERLE, Patrícia (orgs.). História e arte, imagem e memória. Campinas: Mercado das Letras, 2012.