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Imemorial, de Rosângela Rennó


Textos relacionados ao trabalho

  • Hipocampo


Texts linked to the work Hippocampus


    Frequentemente o trabalho de Rosângela Rennó atua como um trabalho de luto. Seu projeto, como em Imemorial (1994), tem sido criar uma transparência pela qual se pode observar como opera a fábrica de opacidade e como os dominados tornam-se opacos ao olhar. Nada escapa ao olhar da artista, nem utopias nem ideologias. Se não há nenhuma história heroica, tampouco ocorrem histórias autorizadas e apologéticas, nas quais os argumentos de autoridade (ou a autoridade mesma) se sobreponham ao fato. Aqui, Rennó está revisitando a função primacial da fotografia: a produção de evidências. O projeto utópico de Brasília, com seus edifícios monumentais do poder, projetados por um arquiteto socialista, confronta-se com o massacre de operários na construção da cidade: “o caráter do inumerável e do imponderável: Os mortos não foram contados. As pessoas morriam muito novas. Uma coisa que me impressionou era que havia muitas crianças empregadas”. Anotando o número de ordem dos operários comprovadamente falecidos, desde o 163 a mais de 5.000, pesquisados no Arquivo Público do Distrito Federal, no fichário de funcionários da Novacap, na época a construtora do governo. Rennó fez a sequencia dos mortos por ordem de entrada, como se retirasse do rol de funcionários os mortos, quase voltando ao formato do arquivo. “Transformo a pessoa em número puxado da pasta; resgato a ideia de arquivo, conservo o anonimato das pessoas”, informa ela. Sendo assim, Imemorial é um monumento fúnebre que celebra criticamente. Seu caráter arquitetônico está indicado na formulação de um espaço, ao ocupar um objeto parede e chão, em vez de estar situado no centro ou no muro. A formulação do espaço se dá no uso da parede e chão, quase como numa situação especular com a distribuição das fotografias e dos textos. O espelho real fica com as cinquenta fotografias agrupadas em faixas horizontais, sendo as fotos dos mortos em preto sobre preto, e as das crianças que trabalharam, mas não morreram, em cores muito escuras. Essas fotografias são feitas em filme gráfico, cuja superfície, muito brilhante e pintada de preto por trás, se torna então um espelho negro, indicativo do lugar de sombra social em que esses narcisos experimentam o desamor coletivo por si. Finalmente, o espelho obscuro, vazio no qual se projetam esses narcisos melancólicos pode dar a perceber que o retângulo da fotografia pode ser lápide para a morte agenciada. Se havia algum luto no processo de construção da cidade, havia também a solidão de seu arquiteto: “Mas à noite, ao recolher-me, ou quando todos se retiravam, sentia-me por demais só, e uma angústia enorme me invadia”, como confessa Oscar Niemeyer. A ironia melancólica de Rennó, frente a levantamento de monumentos apologéticos, é o título Imemorial (1994), como o monumento à capacidade do olhar de resistir à amnésia. Como se a morte de operários, como estrelas colapsadas, concentrasse uma energia que emergisse nessas imagens densas, escuras, quase negras. Aqui, Rosângela Rennó devasta a amnésia. Na produção de Rennó, obras como Imemorial atestam a dissolução dos grandes relatos e de um ponto de vista unitário da História. Desvenda-se um outro contrato social leonino: o modelo é fotografado para ser esquecido. No entanto, é preciso dizer que Rennó não tem a utopia do mundo diáfano de Rousseau, mas sabe que sua transposição dos limites, nessa experiência da clareza, seria como uma devassa na noite social. Por vezes Rennó até parece estar, a seu modo, imbuída do ideal de transparência social como em J.J. Rousseau. A artista trabalha com uma alteridade do olhar, do que vê e do outro que é visto. Imemorial, com seus retratos escuros de operários mortos, é uma constelação de buracos negros. 


    HERKENHOFF, Paulo. Imemorial, de Rosângela Rennó. In ANJOS, Moacir dos (Org.). Invenção de mundos: coleção Marcantonio Vilaça. Recife: Instituto Cultural Banco Real, 2006, pp. 174-175.