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Identidades sequestradas


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  • Série Cicatriz


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    Interessada em resgatar a fotografia anônima do esquecimento ao qual foi relegada por uma sociedade que confia à imagem técnica a tarefa de construir uma identidade ao mesmo tempo única e tipológica, com o projeto Cicatriz, Rosângela Rennó confere a essa investigação um significado ainda mais preciso por sua circunscrição extrema.

    Cicatriz é resultado da apropriação e seleção de um conjunto de imagens que integram um acervo de cerca de mil e oitocentas fotografias de tatuagens, realizadas provavelmente entre as décadas de 10 e 40, pelo psiquiatra José de Moraes Mello, na Penitenciária do Estado, no Complexo do Carandiru (São Paulo). Por suas peculiaridades, este projeto coloca Rosangela Rennó diante de uma reflexão, que inclui não apenas a fotografia enquanto evidência ade uma identidade antissocial, mas ainda e, particularmente, uma concepção de corpo, muito próxima daquele questionamento da microfísica do poder proposto por Foucault em Vigiar e Punir.

    A própria artista usa a ideia dos corpos dóceis de Foucault para definir a relação dos presos com o trabalho do doutor Moraes Mello, a quem parecem revelar, sem qualquer oposição, a própria intimidade (1). A análise das fotografias executadas pelo psiquiatra revela, de fato, a existência de um vínculo de proximidade entre a câmera e os fragmentos anatômicos que trazem a marca da tatuagem. Dessa proximidade resulta uma visão diferente daquela de Lombroso e Lacassagne, que buscavam na documentação da tatuagem um indício a mais para a configuração do perfil do criminoso como um ser primitivo e ignorante. Por isso, as tomadas destes focalizam integralmente o corpo do prisioneiro, ou o retratam em plano americano, de frente e de costas, ao contrário do trabalho de Moraes Mello, que se caracteriza pela atomização de seu objeto de estudo. O psiquiatra brasileiro registra preferencialmente as mãos e os braços do preso, detendo-se no rosto só quando o queixo ou as maçãs do rosto trazem a marca da tatuagem.

    Como, até o momento, Rosângela Rennó não encontrou referências sobre Moraes Mello, seria arriscado traçar um paralelo entre sua prática e aquela de Lombroso e Lacassagne. Uma inferência, porém, pode ser feita a partir de Contribuição ao Estudo das Tatuagens em Medicina Legal, publicado em 1926 pelo doutor Correa de Toledo, no qual este cita o trabalho do Carandiru e aventa a hipótese de que o prisioneiro se tatua para evadir imaginariamente da cadeia, para realizar em si uma marca, mesmo à custa da dor física (2). 

    Fragmentação, proximidade da objetiva, composição cuidadosamente estudada, disposição, não raro, simétrica das partes a serem fotografadas são algumas das características das imagens escolhidas para estruturar a narrativa de Cicatriz. O termo narrativa não é abusivo neste caso: a artista cria sequências visuais, ora recorrendo ao dispositivo da semelhança tipológica (agrupamento de mãos, braços, rostos, por exemplo), ora acentuando ainda mais o caráter dissociativo do close-up, que revela um detalhe para ocultar a totalidade da qual o fragmento foi retirado. O efeito narrativo é reforçado pelo uso de textos relativos a cicatrizes, extraídos daquele Arquivo Universal que vem sendo constituído por Rosângela Rennó desde 1992.

    Se o objetivo geral do Arquivo Universal é explorar a dimensão da imagem ausente, elaborada a partir de um vestígio indicial em textos jornalísticos, simetricamente especular à falta de identidade daquele arquivo de retratos, que tem revelado inúmeras possibilidades combinatórias, no caso de Cicatriz, a problemática da ausência é ainda mais presente e determinante. Cicatriz traz em si a marca da ausência social em, pelo menos, dois níveis. Ausência/sequestro de um corpo, que a justiça moderna transformou numa categoria abstrata, num sujeito jurídico, ao qual se aplicam uma economia dos direitos suspensos, uma tecnologia política, diretamente emanada das relações de poder. Essas relações o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais (3). Ausência de qualquer memória, apesar da existência de um vasto arquivo fotográfico, haja visto o estado de abandono em que se encontram os quase quinze mil negativos produzidos na Seção de Medicina e Criminologia da Penitenciária do Estado de São Paulo. 

    Com Cicatriz, Rosângela Rennó põe à mostra sinais indeléveis de danificação/privação, marcas de experiências dolorosas, que revelam, com grande eficácia, o mecanismo constitutivo da microfísica do poder punitivo, para o qual o condenado é uma codificação do menos poder, é um incorpóreo (4). Não deixa de ser significativo, neste contexto, o caráter artístico que Moraes Mello conferia a suas imagens, caráter dilatado pela ampliação e pela disposição narrativa que alguns destes ícones ganharam na instalação da artista mineira no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles.

    Ao se apropriar de belas imagens e ao enfatizar seu caráter artístico, Rosângela Rennó realiza duas operações simultâneas. Chama mais uma vez a atenção para o uso disciplinar da fotografia, que produziu milhões de retratos forçados (5), e permite discutir em profundidade a noção de corpo dócil aventada por Foucault.

    O que é um corpo dócil? É um corpo sob constante controle, ao qual uma coerção ininterrupta impõe uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, o movimento. É resultado de uma anatomia política, graças à qual é exercida uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos (6).

    O que revelam as imagens do doutor Moraes Mello? Um corpo que se oferece obedientemente à objetiva, que expõe disciplinadamente fragmentos de uma identidade, que tenta evadir do confinamento graças à fantasia, que se deixa desarticular, esquadrinhar, recompor, que atenua com a estetização das imagens a coerção da qual é objeto. Nesse conjunto iconográfico, parece ser determinante a busca da cicatriz como signo diferencial por parte do preso, numa resposta talvez inconsciente àqueles rituais de punição que caracterizavam a justiça até fins do século XVIII e dos quais a marca a ferro quente era um dos elementos menos dolorosos. Mas nem por isso menos direto, uma vez que o corpo era atingido física e simbolicamente. Se a justiça moderna propõe práticas mais indiretas, o corpo do prisioneiro não deixa, contudo, de ser um instrumento, de ser colocado num sistema de obrigações, entre as quais pode ser incluída a fotografia judiciária. O que pretendia, afinal, o bertillonage? Identificar e individualizar o sujeito criminoso em seu estado civil e em seus antecedentes penais. Identificar e individualizar o sujeito criminoso em seu estado civil e em seus antecedentes penais. Identificar sobre o culpado os traços genéricos do desvio da norma graças a um ritual de subtração da identidade em prol da construção do tipo criminoso (7).

    O que revelam as imagens ampliadas e recompostas por Rosângela Rennó? Um corpo dissociado e esquecido, resgatado por um gesto que tenta trazer de volta elementos significativos de um momento da fotografia, que acreditava no poder indicial da imagem técnica para configurar uma noção de identidade individual e coletiva, singular e serial ao mesmo tempo. A evidência de uma identidade criminosa, que não passa de uma abstração real (8), acaba por explodir na instalação de Los Angeles. Se não fosse pelo contexto evidenciado, as imagens repotencializadas poderiam remeter a outras tatuagens, a outras cicatrizes, a outras dissociações. A prova de sua proveniência é, porém, indispensável: Rosângela Rennó, através dela, realiza um gesto não apenas estético, mas também político. Por trazer novamente à lembrança a segregação e a manipulação de identidades sequestradas, e aquela cicatriz que o Carandiru representa para a sociedade brasileira após o massacre de 1992.

    Se o massacre dos cento e onze presos, ocorrido a 2 de outubro de 1992, reverbera sutilmente em Cicatriz, o desmascaramento da naturalidade da violência pode ser considerado um dos eixos fundamentais da proposta de Rosângela Rennó. Bastaria lembrar, para tanto, os trabalhos dedicados às crianças da Candelária (1993) e aos operários mortos durante a construção de Brasília (1994), nos quais a naturalidade do registro fotográfico é colocada em xeque e reportada a um uso social preciso. O anonimato dos personagens parece remeter a uma sequência interminável, anterior e posterior aos acontecimentos em foco (9), da qual emerge o aspecto menos moderno do Brasil. É nele que se concentram todas as contradições de uma sociedade profundamente dividida, que se projeta no futuro sem ter resolvido problemas ancestrais. E é sintomaticamente a ele que se volta uma boa parcela das últimas produções de Rosângela Rennó, interessada em revelar uma modernidade problemática, para a qual a fotografia pode ser tanto um álibi quanto uma visão engajada na desconstrução dos mecanismos do poder.


        1.     Depoimento de Rosângela Rennó à autora (São Paulo, 15 set. 1996)
        2.    Id.
        3.    Michel Foucault, Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1977, pp. 15, 16, 18, 28.
        4.    Id., p. 31.
        5.    Christian Phéline, L’image Accusatrice. Laplume, AACP, 1985, p. 51. Phéline denomina retrato forçado a instrumentalização social da fotografia por parte da justiça disciplinar, alicerçada em procedimentos de recenseamento, observação e descrição dos indivíduos perigosos e irresponsáveis.
        6.    Foucault, cit., pp. 126-127.
        7.    Foucault, cit., p. 16; Phéline, cit., p. 57.
        8.    Phéline, cit., p. 65
        9.    Tomo esta idea de Nuno Ramos, que a enunciou no catálogo da exposição 111, dedicada aos presos massacrados no Carandiru. Ver: 111. São Paulo, Gabinete de Arte, jun-jul. 1993, p.38.


    FABRIS, Annateresa. Identidades sequestradas. In SAMAIN, Etienne (org.). O Fotográfico. São Paulo: Hucitec/CNPq, 1998.