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As Identidades Fotográficas em Rosângela Rennó





    Percebemos que não vemos. Essa é a aflição do olhar nessa política dos sentidos. Se isso fosse música seria a última fronteira dos rumores antes do silêncio. 

    Paulo Herkenhoff 

    A fotografia não é um registro simples ou um suporte fácil, como nos mostra Rosângela Rennó Gomes, artista mineira nascida em 1962, que desde o início de sua carreira a percebia como meio de ludibriar e enganar o espectador, desertando qualquer ilusão do real. Sua apropriação crítica de imagens de arquivo de família, de estúdios fotográficos, ora de acervos sob o risco de destruição completa ou de apagamento (como os do Carandiru, Casa de Detenção de São Paulo), ora de imagens tão abundantemente reiteradas na memória social que passamos a não vê-las, formou uma revolução no olhar em sua poética visual, como já apontado por historiadores da arte e pesquisadores, como Tadeu Chiarelli e também Paulo Herkenhoff. (1) Não produzir novas imagens, mas inserir no arquivo cristalizado do social um estranhamento do olhar denso, irônico, obsessivo e radical: não seria feminista essa atitude de criar uma “pequena ecologia da imagem”, informada pelo próprio arquivo familiar, numa refinada dissonância em nossa memória afetiva, política e cultural? Na fotomontagem com brinquedos infantis Alice já não mora mais aqui (1987-1988), intuímos uma deserção familiar, na obra homônima ao título da película de Martin Scorsese, de 1974, na qual uma mulher escapa de sucessivas e violentas relações afetivas e sai em busca de sua liberdade financeira, emocional e espiritual, deixando vazios os espaços da domesticidade tradicionais. 

    Haveria, então, nessas formas do olhar, do fazer, nas escolhas éticas e estéticas dessa artista em relação ao fotográfico – ou seja, em relação a imagens já feitas - uma esfera de crítica cultural feminista ainda por ser destacada, problematizada e levada em consideração? O que essa artista que “não fotografa” pode nos dizer a respeito de nosso olhar aos arquivos, tão patriarcais e masculinos, na imensa maioria das vezes? Gostaria de retomar Manoel de Barros, referência poética de Rennó, que instiga: “As coisas que não levam a nada/ têm grande importância/Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, “o que é bom para o lixo é bom para a poesia”. (2)

    A historiadora feminista da arte Griselda Pollock reflete que, mais importante do que definir o que é uma arte feminista, seria perguntar-nos sobre qual é a problemática da prática artística feminista, que parte de uma iniciativa mais ampla: a de analisar a construção social da diferença sexual, mas também a construção psíquica dessa mesma diferença. Como são produzidas, assim, as relações de poder e observar como a cultura visual pode interferir criticamente nessas representações culturais (3). 

    Para tornar mais claro este objetivo, ressalto que meu foco não está em explicitar temáticas nas quais mulheres artistas haveriam de expressar algum interesse em particular, por formarem parte do universo feminino por excelência, como a maternidade, o doméstico ou o íntimo - e é importante frisar que tais reflexões tampouco se referem a uma suposta essência feminina fundada na natureza, mas na historicidade das práticas e dos gêneros, constructos do sexo social. No entanto, não ser esse o nosso objetivo aqui não despreza a importância dessa abordagem: por exemplo, são valiosos os estudos que buscam compreender o campo do instantâneo e do que inspira ou inspirou no passado o registro do olhar feminino deslocado da mirada patriarcal, desnaturalizando as escolhas e historicizando seus enlevos; ou os que buscam compreender o porquê da circulação ampla das mulheres pelo fotográfico, enquanto suporte mais acessível em termos financeiros, materiais ou pelo aproveitamento do tempo escasso que muitas artistas teriam para sua expressão artística, ao menos até muito recentemente. O enquadramento, os suportes ou os temas de interesse que uma fotógrafa poderia selecionar em diferentes épocas históricas poderiam ser outros dos objetos de investigação muito pertinentes, assim como sua biografia: como ela enxerga os corpos, as cidades, as passagens, sua própria autoimagem, o erotismo ou a sociedade. 

    Aqui, então, estamos em busca dos usos feministas do fotográfico e não necessariamente de temas que reluziriam como tipicamente feministas, tais como a exploração dos corpos femininos ou a superexposição midiática dos mesmos. Trata-se, por exemplo, de observar como a materialidade dessas produções está amparada ou relacionada a elementos como cartas, fotografias familiares, diários íntimos, objetos de uso privado, tecidos, roupas ou bordados, constitutivos das espacialidades e subjetividades femininas (4). De captar, portanto, nos usos dos objetos do cotidiano das mulheres uma parte fundamental da poética de diversas artistas contemporâneas – como o interesse pelos objetos obsoletos, fúteis ou sem valor como no caso de Rennó. 

    Diferentes pesquisadoras feministas mostraram como os arquivos tradicionais não permitiam conhecer como as mulheres se constituíram no passado, quais ações, aspirações e práticas tiveram em diferentes sociedades. Esses arquivos, em geral, selecionaram para a memória social as histórias de heroificação, que privilegiam o mundo público, onde as mulheres pouco aparecem. Para Perrot, 




    As mulheres ficaram muito tempo fora do relato, como se, destinadas à obscuridade de uma inenarrável reprodução, estivessem fora do tempo, ou pelo menos, fora do acontecimento. Confinadas no silêncio de um mal abissal. Nesse silêncio profundo, é claro que as mulheres não estão sozinhas. Ele envolve o continente perdido das vidas submersas no esquecimento no qual se anula a massa da humanidade. Mas é sobre elas que o silêncio pesa mais. (5)

    A invisibilidade, portanto, é um tema e uma problemática nodal para os estudos feministas, que pensam os modos de olhar e de não ver, de silenciar os vestígios das mulheres ao longo das épocas históricas. Notemos a percepção de gênero de Rennó nesse desaparecimento ambíguo da figura feminina, em A mulher que perdeu a memória, de 1988. Ao perder a memória, desfez-se a existência. Como historiadora, reconhecemos como são comuns os apagamentos das fontes e dos relatos, já que em muitas sociedades as mulheres são constituídas no e pelo silêncio e serem invisíveis é parte da ordem das coisas. As mulheres tendem a deixar poucos vestígios, sejam em escritos ou de forma material, e há até mesmo um pudor em relação a conservar sua memória, o que leva mulheres a, no final de suas vidas, até mesmo queimarem ou destruírem suas correspondências, diários, fotografias, indicando um silêncio em relação à própria ideia de honra, conforme discute Perrot. 

    Mulheres Iluminadas, obra de 1988, traz à tona esses aspectos antes mencionados. Do ponto de vista histórico, a partir da epistemologia feminista, parece bastante claro que uma fotografia, além de vestígio e traço do visível, compõe-se num arquivo que não é nem opaco nem transparente, mas que seus sentidos dependem das perguntas que fazemos a ele. Essas mulheres fracamente iluminadas foram rasuradas por Rennó e constituídas pelas sombras - de fato, trata-se de uma imagem de monóculo da artista e de sua irmã na praia de Copacabana durante as férias na infância, modificada e levada à veladura quase total, causando uma dissonância entre o título e a imagem dessas mulheres “mal iluminadas” (6). Incita- nos a refletir, assim, que uma fotografia não é garantia de memória para as mulheres, quando expulsa dos circuitos de sensibilidade. A valoração ou transvaloração das imagens, questionando o que cumpre o caráter do fetiche, do colecionismo ou dos circuitos capitalistas, é outro dos debates de Rennó que podem ser lidos num prisma feminista, assim como sua clara percepção de diluição da autoria. 

    Rennó formou-se em arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1986 e, no ano seguinte, em artes plásticas pela Escola Guignard, em Minas Gerais. Também integrou o grupo Visorama de estudos de arte contemporânea entre 1991 e 1993, titulando-se doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade Estadual de São Paulo, em 1997. Exibe seu trabalho nacional e internacionalmente em espaços como a De Appel Foundation, em Amsterdã − Holanda, The Museum of Contemporary Art of Los Angeles, L. A. − EUA e na Galeria Lombard Freid, New York − EUA. 

    Por meio da crítica acerca dos modos de construção das identidades na atualidade, principalmente daqueles que operam através da fotografia, a artista sublinha temas diversos como a obsessão normativa sobre o corpo, o escopo cultural de imagens que conformam as subjetividades em divisões binárias masculino/feminino e as cicatrizes e marcas corporais como espaço de denúncia aos modos adquiridos de lidar com tipos físicos. 

    Suas críticas sociais tomam a história da fotografia como objeto a ser evidenciado e questionado. Quando compõe esculturas, foge das referências tradicionais, por exemplo, em algumas obras do projeto Arquivo Universal (1992-2003), onde textos de jornal são gravados em paredes macias de isopor, provocando um aspecto de invisibilidade aos textos, mas ao mesmo tempo dotando as letras com uma inusitada sensibilidade tátil. Ela realmente subverte as práticas e os nomes que podem estagná-la, estando em fuga constante de uma identidade fixa. Parece 

    interessante notar que, enquanto grande parte dos artistas atuais procura manter um traço reconhecível de identidade em suas obras, Rennó crie um trabalho como o Arquivo Universal, guardando mil detalhes insignificantes sobre um mundo de memórias desconhecidas, conectando-se a uma postura nômade e portadora de uma sensibilidade que estranha radicalmente o habitual. 

    Iniciado em 1992 e vigente até 2003, o trabalho O Arquivo Universal e outros arquivos foi desenvolvido mediante um amplo projeto de recolhimento e organização de fotos perdidas e abandonadas e de textos de jornais referentes a fotos. Esse material permitiu a Rennó produzir inúmeras séries de obras, dentre as quais algumas que se referem às temáticas da fotografia como prática de controle social e de registro da experiência cotidiana (7).  Nesse arquivo, Rennó apresenta e debate temas como a violência e a vaidade, o casamento e o amor, o sistema prisional brasileiro, a imigração, os militares, o anonimato e o poder. 

    Desse vasto universo temático destaca-se o método utilizado pela artista de subverter o lugar comum das imagens cotidianas: as fotografias de casamento manipuladas tornam-se Cerimônia do Adeus (1997-2003); as fotos dos corpos de prisioneiros do Carandiru, refotografadas, tornam-se Cicatriz (1996-2003); os retratos antigos de família, esbranquiçados por ela, compõem uma sombria Parede Cega (1992-2000). E não são apenas os títulos das obras – sugestivos de outras possibilidades de aproximação com aquilo que é esquecido − que carregam o tom dramático, e por vezes irônico, de Rennó. Ocupando uma parede com a obra In Oblivionem (1995), valendo-se de imagens quase totalmente pretas, a artista escancara nosso hábito de abandono e esquecimento do passado, ao mesmo tempo em que nos alerta contra o fato paradoxal de vivermos abarrotados de imagens. 

    Ela quer interromper o fluxo de fotografias deste mundo marcado pelo excesso imagético (8). Assim como utilizado por Fernanda Magalhães, esse método de apropriação parece se associar a um embate contra a alienação perante as imagens sociais. E, diante da falta de sentido na busca por valores absolutos, essas artistas voltam suas atenções para o detalhe, para o tido como insignificante e momentâneo. Se, em Magalhães, os temas apresentam-se mais carregados de carnalidade, já que o corpo é apresentado como espaço ativo de resistência, em Rennó, o que se apresenta são justamente aquelas práticas aparentemente inocentes por meio das quais a sociedade contemporânea esquadrinha e polariza as identidades. 

    3.1 FILTROS DE LUZ 

    Uma perspectiva feminista singulariza, subverte e diz o lugar de sua fala, ou seja, marca-se principalmente pela atitude ética de construção de novas formas de sentir, pensar e agir na contemporaneidade, buscando outros modos de constituição das subjetividades. Problematizando os rumos do feminismo em nossos dias, Margareth Rago afirma: 

    [...] a feminista teria uma função social especial no sentido de ajudar a refazer as sociabilidades públicas, cada vez mais desgastadas e destruídas pela privatização do cotidiano, isto é, pela desvalorização da política e pela sobreposição, no mundo público, do modelo da amizade constituído pela referência familiar, isto é, na esfera da vida privada. (9)

    Rosângela Rennó, no começo de sua carreira, concebe imagens que questionam a submissão feminina, a aura de apagamento que permeia a construção da subjetividade das mulheres e o imaginário que as mantém em estereótipos como de princesas e bruxas. Posteriormente, aborda criticamente todo um universo de práticas opressoras sobre os corpos e as subjetividades, expressando um posicionamento político que caracteriza um novo modo de ação artística feminista. Nas artes, nas ciências ou na política, uma atitude feminista revela-se através do modo diferenciado de olhar, na denúncia das estratégias do poder masculino e na busca de novas configurações para a vida em sociedade. Não se trata, aqui, de formular uma identificação da artista com a militância, mas de observar em suas obras como os ecos de uma abordagem de caráter feminista estão presentes.
    A artista produz uma crítica refinada à produção de imagens na atualidade, principalmente as fotográficas. Observando como nossa cultura lida com as imagens fotográficas de modo obsessivo, ela parece perceber que o ato de olhar já está suficientemente condicionado na contemporaneidade e que as imagens não nos são mais necessárias para tanto. 

    Para a artista, a fotografia apropriada permite a observação das imagens que foram ou deveriam ser descartadas. Deste modo, essa artista também trabalha com figurações que, produzidas aos milhares, acabaram por ter seu propósito original banalizado, tanto nas fotografias policiais ou naquelas produzidas na esfera privada. Um questionamento acerca do esvaziamento da experiência na contemporaneidade apresenta-se: qual o propósito de construir uma imagem de si, para si mesmo, por exemplo, nos retratos de família ou autorretratos, que irá se perder num oceano de imagens vazias? 

    Ao considerar que ver não é algo neutro, mas um comportamento cultural permeado de significados, Rennó utiliza uma prática restrita, tanto por apropriar-se de textos e imagens antigos, quanto por dificultar nossa leitura e visão a um ponto tão extremo que interfere na própria naturalidade com a qual costumamos utilizar nosso olhar. 

    É interessante notar como é constituído o olhar sobre o feminino na obra de Rosângela Rennó. As figuras femininas em suas imagens aparecem sempre no tenso limite entre a nebulosidade e a transparência. Ainda no início de sua carreira, Rennó utilizou objetos lúdicos, alguns que eram de sua vivência infantil (10). Na série Conto de Bruxas (1988), utilizou imagens de histórias infantis dos anos 1940, feitas para serem vistas em aparelhos de view-master, ampliando-as em grande formato (1,50 x 1,00) e transformando os bonequinhos quase em monstros, devido também aos fungos que as atacaram. Tais imagens subvertem sua própria origem enquanto contos de fadas, apresentando cenas arquetípicas como em Encarnação do Verbo (1988) (11), onde Cinderela, sentada, recebe a visita de uma fada. 

    Por meio dessa reapropriação de elementos infantis, Rennó “cria atormentadoras histórias de bruxa, verdadeiros pesadelos estéticos”, segundo Paulo Herkenhoff (12). O título “encarnação do verbo”, que corresponde à tradição iconográfica da Anunciação na história da arte, aqui parece ser transmutado em uma crítica às definições de gênero que mantém as mulheres presas definidas em opostos simbólicos do “anjo do lar” e da bruxa. Conto de Bruxas sugere uma crítica aos lugares femininos tradicionais, sustentados por um imaginário de conto de fadas, veiculados em livros de histórias infantis. Falsas promessas (1988), título de outra fotografia da série, mostra um príncipe e uma princesa numa situação de tensão. Ao ironizar as virtudes femininas idealizadas, como a passividade e a amorosidade, Rennó faz desiludir da espera por um príncipe encantado. 

    Do repertório da artista, essas obras iniciais em sua carreira são as que se orientam mais abertamente pela discussão de gênero, apresentando os temas clássicos do universo feminino, transmutados em imagens fantasmagóricas e sombrias. Rennó, pelo que parece, busca desconstruir a delicadeza e a fragilidade desses arquétipos femininos, sublinhando, nessas obras, a dimensão assujeitadora dos mesmos. 

    Em Duas Lições de Realismo Fantástico (1991), Rennó mostrou retratos de mulheres anônimas em grande formato, evidenciando, segundo Herkenhoff, o aspecto de recatamento e submissão da condição feminina, por meio da estratégia de fazer coincidir suas fotografias com as janelas da exposição (era uma instalação de 25 metros de comprimento e 1 metro de altura, onde a artista ampliou 33 fotos 3X4) (13). Em um mar de imagens de homens e mulheres, o jogo técnico de deixar passar a contraluz através de algumas das imagens femininas, indica a preocupação da artista para com essas figuras esquecidas. Criando um efeito mágico, mas ao mesmo tempo dificultando o olhar, sugere a amnésia social, tão veementemente denunciada por Rennó. 

    Nessa obra, alude-se a uma determinada imagem do feminino por meio da exploração da opacidade de luz. Um rosto é dotado de um atravessamento luminoso, mas também evoca certa passividade inerte das fotografias abandonadas ou descartáveis. Operam-se filtros de luz em Duas Lições de Realismo Fantástico, gerando nas figuras femininas um aspecto arrebatador, mas que explicitam, contudo, uma melancólica experiência de apagamento de si. A crítica ao desaparecimento permeia a maioria das obras dessa artista e, quando debruçada sobre a construção da subjetividade feminina, abre-se a debates ainda mais instigantes. Em A bela e a fera (1992), as imagens distorcidas de duas mulheres nos indicam a desestabilização que a artista busca promover: as duas são belas, ou feras, ou ambas ao mesmo tempo, pois as imagens apagadas pelo tempo desfazem o sentido das identidades. Não se podem ver claramente os rostos das mulheres e, no entanto, não importa a Rennó delinear quem elas são, mas sim revelar as estratégias de produção das imagens e a quantidade de esquecimento que carregam consigo. Ao mesmo tempo, o título da obra parece indicar o quanto as polarizações da identidade feminina ainda permanecem presentes em nossa cultura, também de forma racializada, posto que funde imagens de uma senhora branca e uma negra. 

    Já em Afinidades Eletivas ou Relações Perigosas (1990) a artista impede a leitura simultânea de duas imagens (de dois casais diferentes) por meio da utilização de um recurso fotográfico (14). Ela incide sobre o tema do casamento célula produtora de álbuns de família, onde a fotografia exerce o congelamento mítico de coesão afetiva. A artista produziu, no mesmo ano de 1990, um trabalho com tema semelhante, também intitulado Afinidades Eletivas, em que duas fotografias de casamento estavam mergulhadas em óleo mineral, produzindo um efeito translúcido e nebuloso (15). 

    Em Afinidades Eletivas, de Rennó, existe um tom irônico, ao colocar o homem e a mulher unidos pelo casamento como uma justaposição impossível, nebulosa e capturada. Pode-se pensar nessa obra como uma crítica irônica ao casamento tradicional, à ideologia da domesticidade, legitimada por meio da educação e da performance cultural. Mergulhadas em um relicário de óleo mineral, sugerem reflexos múltiplos, confundindo e inebriando o olhar. 

    Em 1995, Rosângela Rennó apresentou a obra Círculos Viciosos (472 Casamentos Cubanos), formada por um par de círculos acrílicos, dispondo-se um sobre o outro. Dentro dos mesmos estão arranjados os negativos fotográficos de 472 casamentos e, como esses tendem a enrolar pela característica do próprio material, formam inúmeros pequenos círculos. Ao mesmo tempo em que a obra remete à repetição histórica do ritual do casamento, reitera a crítica da artista ao caráter vicioso e obsessivo do mesmo. Essas críticas serão retomadas por Rennó numa outra série a respeito do casamento, intitulada Cerimônia do Adeus, pertencente ao projeto Arquivo Universal, que abordaremos ao final do item Vidas Fotográficas. 

    Ao apresentar contos de fadas como pesadelos, ao tornar translúcidos os retratos de mulheres anônimas, ao embaralhar imagens de casamento, Rosângela Rennó abala um imaginário já há muito estabelecido. Por meio de suas apropriações, a artista apresenta figuras femininas como filtros de luz − ora translúcidas, ora obscurecidas − e imprime uma crítica ao esquecimento e ao desaparecimento social, mas também ao apagamento de si. 

    3.2 APAGAMENTOS 

    As veladuras e apagamentos intencionais propostos por Rennó em diversas séries de obras como In Oblivionem, Cicatriz, Série Vermelha (militares) e Imemorial produzem certa dificuldade do olhar “para forçar o espectador a buscar a imagem no limite da visibilidade” (16). Sua reflexão parte do pressuposto de que o mundo já possui fotografias demais e que, desse modo, a ação deve voltar-se para um reaprendizado do ver, deve empenhar-se numa espécie de reencantamento pelas imagens. Assim, a permanente opacidade que Rennó impõe às imagens produz uma dificuldade de decodificação para o espectador (já que as imagens originais são geralmente banais e de fácil compreensão), que é forçado a voltar-se para seus referenciais e a reconstruir as imagens mentalmente, “desviando-se do puro estímulo visual” (17).

    Essa artista comenta acerca de seu trabalho: “sou uma colecionadora compulsiva, gosto da fisicalidade, da materialidade das coisas. Por exemplo: as fotos dentro dos álbuns, os slides nos carrosséis, os envelopinhos antigos para guardar negativos” (18). Suas palavras demonstram o gosto arquivista de encontrar, recuperar e transformar o sentido de fotografias abandonadas, notado principalmente na delicada afeição que permeia sua percepção renovada. 

    Sabe-se que a figura do colecionador nasce com a ascensão da burguesia (19). Na esfera privada, ele acumula indefinidamente − selos, notas, moedas, suvenires, etc. Rennó utiliza-se dessa prática para desestabilizá-la e também ressignificá-la. Primeiramente, a artista guarda imagens que costumam ser, ao mesmo tempo, atraentes e repulsivas ao olhar contemporâneo: são recortes de jornais sobre assassinatos, narrativas sobre violência doméstica, fotos de presos, etc. Maria Angélica Melendi, a respeito da denúncia social presente nas obras de Rennó, comenta: 

    Através de suas refinadas estratégias de apropriação, deslocamento e recontextualização, suas obras evocam um acúmulo de sentidos pessoais, sociais e culturais. Referências constantes ao apagamento da identidade, à amnésia social e às memórias familiares ou domésticas ressoam em obras abertas a múltiplas interpretações, nas quais o reconhecimento depende do contexto cultural de cada um. A beleza de uma configuração formal impecável permite que uma voz poética e irônica se faça escutar persuasivamente. Ávidos por contemplar, os espectadores são impulsionados a refletir sobre os assuntos sociais tão delicadamente impregnados em suas obras. (20)

    De certo modo, Rennó constrói uma contra memória ao mostrar aquilo que é esquecido por nossa sociedade e as condições de produção dessas imagens. Melendi explora, por meio de Walter Benjamin, que o colecionador mantém uma relação muito misteriosa com os objetos que estuda e ama, sem priorizar a serventia dos mesmos. Se a memória oficial do Estado trabalha com práticas de esquecimento das massas anônimas, Rennó “parece obedecer à necessidade de deter o correr da própria vida e das próprias imagens, numa série de momentos arrebatados à dispersão no comum esquecimento ou à dissolução na amnésia social” (21).

    O rito fotográfico é uma fábrica. Rennó revolve e manipula as fotografias abandonadas como se estrangulasse as imagens até que delas se possam guardar somente impressões; são identidades perdidas, memórias que se esforçam para se manterem presentes – todas num imenso arquivo. Nesse processo de acumulação, a artista monta um Arquivo Universal (1992-2003), sugerindo que as imagens produzidas no mundo parecem tanto serem cópias umas das outras que não causaria diferença guardar uma, nenhuma ou cem mil delas. A artista, no entanto, sabe que as fotografias fazem parte de histórias cotidianas e que possuem um uso prático e valores de diversos tipos, como o estético, o documental, o simbólico, o sentimental, etc. Para ela, o questionamento acerca dessa atribuição de valor é um ponto bastante priorizado, pois quando uma imagem se destina ao lixo, como a maioria das que ela utiliza, significa que ela já perdeu muita coisa. 

    Rennó comenta, numa entrevista, que o processo de guardar e arquivar a fascina imensamente, e que este fato de poder preservar um testemunho, uma prova, um documento a faz lembrar da obra de Saramago Todos os Nomes, ou mesmo da memória total de Irineu Funes, de Jorge Luis Borges. A artista comenta: “se eu pudesse arquivaria todos os retratos do mundo” (22). No conto de Borges, “Funes, o memorioso”, narra-se a história do homem que possuía a memória de cada instante, em todos os seus detalhes (23). Ele era capaz de lembrar de cada folha de uma árvore: “Funes discernia continuamente os tranquilos avanços da corrupção, das cáries, da fadiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato” (24). Sua memória implacável permitia-lhe perceber o mundo obsessivamente. 

    Irineu Funes tinha dezenove anos, quando sofreu uma queda de cavalo. Somente então, passou a lembrar-se de tudo: 

    Irineu começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalís Historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Mitridates Eupator, que administrava a justiça nos 22 idiomas de seu império; Simônides, inventor da mnemotécnica; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado uma única vez. Com evidente boa-fé maravilhou-se de que tais casos maravilhassem. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o derrubou o azulego ele fora o que são todos os cristãos: um cego, um surdo, um abobado, um desmemoriado. (Tentei lembrar-lhe sua percepção exata do tempo, sua memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois, constatou que estava aleijado. O fato apenas lhe interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora sua percepção e sua memória eram infalíveis. (25)

    O Arquivo Universal de Rennó possui um caráter fantástico, que é melhor compreendido por meio do conto de Borges. A história de Funes também pode ser lida como uma alusão crítica à perda da memória histórica. Segundo a artista, seu “arquivo” constitui uma ironia acerca da ideia de colecionar infinitas fotografias, num work in progress que discute os temas do esquecimento social e do anonimato. 

    Uma das práticas de Rennó em Arquivo Universal é pesquisar em jornais textos que façam referência a alguma foto sem que essa esteja presente. Em muitas de suas obras, a artista usa esse procedimento de sinestesia, ao trocar a imagem pelo texto. São fotografias que somente se realizam por meio das leituras dos textos sobre as mesmas, já que a foto original propriamente dita não está acessível ao espectador. Em uma dessas obras, inserida na série In Oblivionem, mal se pode ler o texto abaixo explicitando múltiplas camadas de violências de gênero e racial: 

    A Funai vai exigir na Justiça que a empresa E. indenize a índia Y., de 15 anos, violentada e engravidada em agosto passado por técnicos que faziam prospecção na reserva indígena. Os funcionários da Funai ficaram revoltados com o descaso da empresa, que enviou apenas uma relação de nomes, sem fotografias, dos técnicos que trabalhavam na área, naquela época, para que a adolescente identificasse os autores do crime. Y. é surda-muda e deficiente mental. (26) 

    Herkenhoff, sobre esse procedimento de Rosângela Rennó, comenta que a imagem textual não se desvincula da existência de uma fotografia e esta não abdicaria do discurso através de sua corporeidade. Constrói-se um corpo textual para um outro código, responsabilizado por dar conta daquilo que se subtraiu ao olhar (27). Para Rennó, a questão da legibilidade e da visibilidade das obras é o que está em questão, formulada por meio de jogos com a luz. Em outras obras do Arquivo Universal a artista apresenta textos brancos sobre fundo branco, pretos sobre fundo preto, textos impressos em vidros, etc. A dificuldade ou a impossibilidade de enxergarmos esses textos relativos a fotografias ausentes, segundo Herkenhoff, esbarram no que seria o grau zero da imagem, ou seja, é da banalidade fotográfica que provém o vácuo de expressividade, de autoria e também de significação. 

    É importante compreender esse aspecto da produção de Rennó, pois ele evidencia sua negação à fotografia ao reduzi-la ao puro referencial textual. O público não pode ver a fotografia, que está ausente. Dela, Rennó apresenta somente um texto cujas letras muitas vezes também estão apagadas. O que ver, então? É perante a angústia dessa subtração da imagem que percebemos que não vemos (28). No entanto, mesmo com a ausência da imagem, podemos sentir sua forte presença. Essa é uma das críticas apresentadas nesses textos imagéticos: a artista demonstra a construção de imagens poéticas através da palavra, porém, denuncia a impotência das palavras como substituição da imagem, o que nos permite remeter às argumentações de Foucault, em A ordem do discurso (29). Para este autor, os planos de visibilidade e de legibilidade afetam-se de modos diversos, mas não se sobrepõem: as palavras não refletem uma realidade, nem mesmo imagética; elas constroem realidades (30). Rennó parece sublinhar o quanto nos acostumamos a tomar as palavras pelas coisas e as coisas por suas imagens, numa representatividade sem fim. 

    Elucida-se bem esta preocupação da artista noutra obra do Arquivo Universal, intitulada Parede Cega (1992-2000) (31),  onde podemos ver apenas os relevos e sentir as texturas de fotos antigas, delicadamente aplicadas numa parede macia. Novamente, as imagens não podem ser vistas, mas agora porque estão completamente cobertas por tinta e o estranhamento perante o vazio fotográfico se apresenta de maneira radical. A vida comum, registrada através do ato fotográfico, aqui parece abandonada. Rennó resgata essas imagens pouco a pouco, num lento processo de arquivamento, reapresentando-as esvaziadas de seu propósito original de retrato – como símbolos do esquecimento, sem nomes e sem rostos − marcadas por uma escuridão branca. 

    Michel Foucault indica como a História foi a obsessão do século XIX e que os espaços que mais constituem essa experiência são as bibliotecas e os museus (32). Ele mostra que “a nossa época talvez seja, acima de tudo, a época do espaço. Nós vivemos na época da simultaneidade: nós vivemos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado-a-lado e do disperso” (33). Observa como os espaços são diferentes para cada sociedade e destaca aqueles que se relacionam com todos os outros lugares, “de uma forma que neutraliza, secunda, ou inverte a rede de relações por si designadas, espelhadas e refletidas. Espaços que se encadeiam uns nos outros, mas entretanto contradizem todos os outros”. Foucault denomina esses espaços realizados de heterotopias em oposição às utopias, que são espaços fundamentalmente irreais: 

    Há também, provavelmente em todas as culturas, em todas as civilizações, espaços reais – espaços que existem e que são formados na própria fundação da sociedade − que são algo como contra-lugares, espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros lugares reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos. Este tipo de lugares está fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição geográfica na realidade. Devido a estes lugares serem totalmente diferentes de quaisquer outros lugares, que eles refletem e discutem, chamá-los-ei, por contraste às utopias, heterotopias. (34) 




    Os museus e as bibliotecas, na cultura ocidental do século XIX, segundo o filósofo, seriam heterotopias onde o tempo não para de se empilhar e de se acumular. 

    [...] a ideia de conseguir acumular tudo, de criar uma espécie de arquivo geral, o fechar num só lugar todos os tempos, épocas, formas e gostos, a ideia de construir um lugar de todos os tempos fora do tempo e inacessível ao desgaste que acarreta, o projeto de organizar desta forma uma espécie de acumulação perpétua e indefinida de tempo num lugar imóvel, enfim, todo este conceito pertence à nossa modernidade. (35) 

    Rennó parece reler essa tradição ao utilizar em sua prática artística o recurso do arquivamento e da concentração da memória. Ao captar essa lógica da modernidade, subverte-a artisticamente, colocando em pauta o próprio anseio de registrar infinitamente o passado. 

    Essa preocupação pode ser ampliada por meio das reflexões de Philippe Artières (36). Em seu artigo “Arquivar a própria vida”, o historiador apresenta como funcionam as práticas de arquivamento do eu, como meios de sujeição, mas também de subjetivação e de resistência ao controle normativo da sociedade. O autor analisa como os papéis que são guardados ao longo da vida podem servir para uma construção autônoma de si, na medida em que se guarda aquilo que interessa e que possui valor material, cultural ou afetivo. 

    [...] a constituição pelo indivíduo de arquivos pessoais, longe de restringir e de circunscrever, é formidavelmente produtiva. Enquanto alguns poderiam crer que essa prática participa de um processo de sujeição, ela provoca na realidade um processo notável de subjetivação. (37) 

    Ao arquivar a própria vida, pode-se inventar uma forma original de construir para si uma visão alternativa. Nesse sentido, fotografias de familiares, contas domésticas e cartas amorosas são todas resquícios, vestígios de acontecimentos cotidianos que podem ser utilizados para constituir uma imagem para si mesmo e às vezes para os outros. Inspirado em Michel de Certeau, Artières indica que arquivamos nossas vidas de acordo com nossas experiências, mesmo que o arquivamento de documentos e papéis seja uma exigência social e cultural. Ao rasurar, recortar ou sublinhar documentos, pratica-se uma “arte de fazer”, na medida em que se produz um arquivo por meio de uma prática de resistência ao esquecimento. 

    Próximo ao pensamento de Foucault, Certeau incide sobre a importância das construções culturais para a análise histórica (38). Em A invenção do cotidiano, o historiador analisa como o cotidiano pode ser um espaço de resistência do que é singular e próprio, pois nele os sujeitos fazem usos, apropriam-se e utilizam-se dos espaços e dos objetos ao seu modo. Ele amplia o debate acerca das seleções que as pessoas podem fazer a partir de um repertório, como morar ou cozinhar, de modo a criar novas contribuições e a colocar em novos contextos esses elementos que foram apropriados. 

    Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também “minúsculos” e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados”?), dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-políticos. Essas “maneiras de fazer” constituem as mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural (39).

    O modo de arquivamento de Rennó possui características muito especiais, singulares e particulares: “o olhar compassivo da artista desafia o espectador a procurar a ternura e a poesia escondida nas imagens comuns e abre possibilidades para atualizar as conexões entre arte e vida”, conforme comenta Melendi, na introdução do livro Rosângela Rennó: depoimento (40). A artista não guarda fotos e textos com o objetivo de preservá-los ou conservá-los simplesmente. Sua busca não é apenas por devolver à sociedade aquelas imagens que foram esquecidas, mas sim promover o debate acerca do uso social e cultural da fotografia e explorar as possibilidades de novos encantamentos e intensidades por meio das mesmas. A seguir, apresento conjuntos de imagens nas quais essa preocupação da artista é sentida mais fortemente. 

    3.3 VIDAS FOTOGRÁFICAS

    Susan Sontag apresenta a fotografia como sendo o objeto mais consistente e misterioso que compõe o mundo que identificamos como moderno (41). A fotografia conformou-se como o instrumento ideal para o espírito ávido da modernidade, convidando ao acúmulo e ao abarrotamento. A partir de sua industrialização, no século XIX, a fotografia adquiriu usos diversos, seja nos registros dos álbuns de família, recrutada pelas instituições de controle como a polícia ou como prova incontestável das viagens de turismo. 

    A partir de 1990, Rosângela Rennó passou a trabalhar com a fotografia do século XIX, com os usos e funções sociais das imagens, principalmente por meio da complexidade que envolve “essa coisa simples e banal que aparentemente é um retrato 3X4”, nas palavras da artista (42). Daí decorre sua reflexão acerca dos ciclos de vida de uma fotografia. Rennó comenta: 

    Elas nascem, cumprem sua função durante um certo tempo e depois morrem. Então comecei a me perguntar: qual o destino de uma imagem produzida? O que seria o ciclo de vida dessa imagem? Como circula? Quando ela ‘caduca’ ou perde a validade? Qual é o circuito onde está inserida? Que papel ela cumpre dentro desse circuito? (43) 

    Ao invés de somar imagens ao imenso e anônimo repertório existente na atualidade, a artista nos defronta com aquelas já cobertas pela densa névoa do esquecimento. O que isso gera? Aquelas imagens produzidas com o objetivo de identificar como as fotos 3X4 passam, por meio do olhar da artista, a adquirir novos sentidos como o do apagamento das diferenças e da massificação. Desse modo, o apagamento, o vazio, a ausência, portanto, constituem eixos fundamentais da obra da artista. Evidenciando a contradição presente no registro fotográfico, Rennó recria sentidos sobre arquivos abarrotados de imagens já emboloradas, apagadas e envelhecidas. 

    Subverte dos usos, reapropriando-se das imagens marginais, ou, no caso dos álbuns de família, ironiza da prática de colecionar as representações fotográficas como reflexos fiéis do passado: compreendendo o caráter de construção das imagens, seja pelas poses ensaiadas ou pela construção dos cenários, Rennó nos desilude do ato de lembrar inocentemente. 

    Para ampliar a compreensão acerca do procedimento artístico de Rennó, vale destacar como a fotografia, por meio de seus usos como prova e registro, tornou- se arma útil aos Estados modernos no controle e vigilância das populações em aumento e mobilidade crescentes (44). Nesse mesmo período, Alphonse Bertillon, chefe do Serviço de Identidade Judiciária da Polícia de Paris, elaborou um amplo sistema chamado de identificação antropométrica (1888) (45), que consistia em fotografar, medir cada parte fixa do corpo (nariz, olhos, dedos, etc.) e descrever verbalmente os elementos fisionômicos e marcas corporais de todos os tipos. Tais informações formariam, em síntese, a famosa “ficha” de polícia às quais, posteriormente, em 1902, acrescentou-se a impressão digital. 

    Esse sistema de identificação criminal apresentado por Bertillon relaciona-se ao aperfeiçoamento do retrato policial (46). O que Bertillon propôs, por meio de análises antropométricas, inscrevia-se plenamente numa prática típica do século XIX: “derivar de um corpo os sinais da identidade psicológica e do grupo social ao qual pertence o indivíduo” (47). Segundo Courtine e Haroche, esta prática é resultado de um fenômeno inédito: o surgimento das massas anônimas no território das cidades, o que propiciou o surgimento de uma nova cultura visual: 

    Assim, se o anonimato da multidão protege, ele também inquieta: coage a decifrar a personalidade. É necessário poder distinguir-se, e o corpo do outro torna-se uma coleção de detalhes a serem levantados, de indícios a serem interpretados. Desta forma, perpetua- se a divisão dos corpos e rostos na constituição e antagonismo de um físico popular e de um físico burguês, cujos traços são fixados pelo romance naturalista, pelas ‘fisiologias’, pelo realismo psicológico e social do retrato, pela caricatura de imprensa, pela fotografia. (48) 

    É importante considerar o que Alain Corbin compreende como o desejo de individualizar, visto como um dos processos de diversificação em curso na modernidade: contra o risco da homogeneização das identidades, incrementado pela urbanização, a originalidade foi estimulada; neste contexto, os progressos da alfabetização e da escolarização possibilitaram o surgimento de um novo vínculo entre o indivíduo, seu prenome e seu sobrenome e, aos poucos, contemplar-se frente a um espelho deixou de ser um privilégio, o que propiciou a proliferação do hábito de “olhar para si” (49). Essas são algumas das práticas em emergência na modernidade que denunciam a constituição de uma nova forma de sociabilidade e de construção das subjetividades: 

    No final do século, a difusão citadina deste ambíguo móvel permite a organização de uma nova identidade cultural. No indiscreto espelho a beleza desenha para si uma nova silhueta. O espelho de corpo inteiro autorizará o afloramento da estética do esbelto e guiará o nutricionismo a novos rumos. (50)

    Associa-se à proliferação dos espelhos a difusão social dos retratos como meio de afixar a própria imagem e de demonstrar a existência de si. A fotografia permitiu a democratização do desejo do atestado social, pois, conforme as técnicas avançaram, ser fotografado tornou-se mais acessível para grande parcela da população. 

    Neste contexto, a moda, em ciclos mais ou menos curtos, fornecia o ritmo do movimento de disseminação do individualismo, traduzindo “a preocupação em sublinhar o corte das gerações e o desejo de adaptar-se à nova norma, sugerida pelas classes dominantes” (51). Esse é um dos elementos que explica o processo de diversificação em curso. A este desejo associaram-se inúmeras práticas que propiciaram a acentuação do olhar sobre si, sobre o corpo e sobre as roupas. No âmbito das autoridades médicas e policiais, conforme a multidão emergia de modo denso e silencioso, onde cada indivíduo se apresentava absorto em seus interesses privados, os processos de identificação e de controle social tornaram-se mais precisos (52).

    A fotografia, assim, foi um dos recursos utilizados no controle da população crescente para identificar os “tipos perigosos”, catalogá-los e instituir a disciplina e a obediência dentro da sociedade. Foucault, ao analisar o nascimento da prisão, destaca que o controle sobre a vida e os corpos dos presos consistia em uma prática de saber-poder que emergiu no século XIX, no contexto de transformação das técnicas punitivas do Antigo Regime (53). Essa atenção moderna reservada aos corpos coincidia com a prática de fotografar os indivíduos com a intenção da vigilância. Para Foucault, investimentos sobre os corpos visavam treiná-los e produzi-los como “corpos dóceis”, aqueles cujas forças se multiplicavam em nome da produtividade. No nascimento da sociedade moderna e de suas técnicas de poder, essas disciplinas exerceram, assim, um papel fundamental para que a burguesia se tornasse a classe econômica dominante. Foucault destaca a importância do Panóptico, “um projeto de casas de correção, escrito em 1787, por Jeremy Bentham” para essa configuração (54). Priscila Vieira comenta acerca da organização desse projeto: 

    O seu plano propõe a construção de um edifício circular, no qual as celas dos detentos ocupam toda a circunferência. Essas celas, ainda, são separadas, o que impede os prisioneiros de se comunicarem entre si. O apartamento do inspetor ocupa o centro, e cada cela possui uma janela para que a luz ilumine todo o recinto. Essa organização espacial facilita o ideal proposto por esse projeto: que as pessoas, dentro das instituições de correção, fossem vigiadas constantemente ou que, ao menos, temessem essa condição, sem que os guardas estivessem efetivamente inspecionando as celas e os prisioneiros. A visibilidade, assim, torna-se uma armadilha para os vigiados. (55)




    Essa proposta, quando criada, visava à aplicação em qualquer local onde fosse desejável manter o controle sobre certo número de pessoas: hospitais, fábricas ou escolas. Executado inicialmente na reforma das prisões, o projeto pretendia atingir objetivos muito maiores, como os de reformar a moral, a saúde e/ou o trabalho nas fábricas. Assim, não se tratava apenas de um projeto arquitetônico, mas de uma lógica para o gerenciamento da “multiplicidade de indivíduos, com o mínimo de esforço” (56). Foucault argumenta: 

    O Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico. (57)

    O panoptismo seria a generalização desses mecanismos disciplinares que garantem a submissão das forças e dos corpos. A prisão é produto desse processo jurídico e disciplinar que, posteriormente, se espalha por todo o corpo social através dos mecanismos panópticos de punição dos indivíduos e da internalização da vigilância. Na prisão, os corpos são catalogados, controlados e investidos dessa internalização. Parece haver pouco espaço para a resistência e a criação de subjetividades que escapem ao controle. Rosângela Rennó, por meio de seu olhar artístico, cria interferências poéticas nesses rígidos processos disciplinares, ainda em voga no contexto prisional brasileiro. 

    Nas instituições penais, a fotografia adquire a função da razão e do conhecimento, num modelo orientado pela panóptica (58). Interessada nessa documentação, Rosângela Rennó apropria-se de arquivos criminológicos da Penitenciária do Estado, localizada no complexo do Carandiru, em São Paulo, e desenvolve uma série intitulada Cicatriz (1996-2003). 

    São fotos dos corpos de presos, muitos dos quais negros, principalmente de suas marcas corporais, escarificações e tatuagens. Nas prisões, Rennó evidencia que o poder do olho que fotografa recai sobre o mais íntimo dos corpos e também sobre a relação do indivíduo com seu próprio corpo. Hoje em dia, a tatuagem saiu da clandestinidade e afastou-se de uma imagem negativa que por muito tempo carregou, principalmente por ter sido associada às classes laboriosas, tidas como perigosas. Usada por inúmeras sociedades associada aos ritos de passagem, na atualidade, a tatuagem adquiriu ares de um primitivismo moderno que marcam signos flutuantes entre as “tribos urbanas”. 

    O arquivo do Museu Penitenciário de São Paulo possui inúmeras fotografias, o que chamou a atenção de Rennó para a necessidade de intervenção e organização desse acervo que estava abandonado e em processo de decomposição. Anna Teresa Fabris destaca, a partir de um depoimento de Rennó que, 

    Cicatriz é resultado da apropriação e da seleção de um conjunto de imagens que integram um acervo de cerca de 1.800 fotografias de tatuagens, realizadas, provavelmente, entre as décadas de dez e quarenta, na Penitenciária do Estado (Complexo do Carandiru, São Paulo), pelo psiquiatra José de Moraes Mello. O arquivo de tatuados da seção de Medicina e Criminologia da Penitenciária do Estado de São Paulo era organizado por um sistema de fichas, nas quais as tatuagens eram ordenadas em treze categorias – étnicas, profissionais, amorosas, políticas, criminais, passionais, obscenas, hieráticas, ornamentais, afetivas acidentais, terapêuticas e não classificadas – com a indicação exata de sua localização anatômica (59).

    A própria artista usa a noção de “corpos dóceis”, formulada por Foucault, para compreender as tatuagens dos presos do Carandiru (60). Em sua análise das fotos feitas por José de Moraes Mello, ela observou que existia um vínculo de proximidade entre a câmera e o corpo do prisioneiro. Vale lembrar aqui, que o início do século XIX foi marcado pelo discurso médico positivista e pelo determinismo biológico, como em Cesare Lombroso, médico psiquiatra italiano, pai da antropologia criminal (61). Na lógica lombrosiana, além de se vigiar o corpo do prisioneiro, todos os lugares do mesmo são olhados, marcados e catalogados, coincidindo com o controle fotográfico iniciado por Bertillon, também no século XIX. Estas técnicas antropométricas inspiraram diferentes sujeitos que transitaram no sistema prisional brasileiro até no século XX, podendo ser um vocabulário visual das fotografias do Carandiru, embora Rennó note que essas últimas detalham mais intensamente a intimidade do que as de J. A. Lassagne e Lombroso, que mostram os corpos de frente e de costas, em planos mais gerais (62). 

    Foucault afirma que o efeito mais importante do princípio do “panóptico” de Bentham é induzir no detento “um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder” (63). Essa internalização do controle que tem nos presídios o grau máximo de eficácia exige a criação de espaços de sossego às normas, de afirmação de sensibilidades, de memórias e de amores. Katia Canton, curadora da exposição “Pele, Alma”, ocorrida em 2003, no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, comenta acerca da obra Cicatriz

    Uma santa, uma mulher, estrelas são perfuradas com tinta e agulha no peito desses homens, resgatando a uma vida encarcerada, anônima, cheia de privações algo de único, algum poder, alguma beleza (64).

    Algumas tatuagens utilizadas por Rennó para a produção da série mostram sereias, nomes ou iniciais, rostos e símbolos, sendo alguns religiosos. Essas imagens são fotografias em close de partes dos corpos dos prisioneiros. Sobre elas, a artista utiliza filtros, dificulta o olhar, imprime uma borda ou uma moldura. Essa intervenção faz emergir ao espectador um aspecto poético, a beleza de histórias marcadas na carne dessas “vidas infames”, no sentido dado por Foucault: discursos daqueles “que não têm a glória, ou daqueles que a perderam e se encontram agora, por uns tempos talvez, mas por muito tempo decerto, na obscuridade e no silêncio” (65). São dores, crenças, laços de amor e de amizade, práticas de resistência ao esquecimento. 

    No contexto penitenciário, as marcas corporais parecem também estar relacionadas a um desejo de contestação social, ou mesmo a uma espécie de assinatura de si “pela qual o indivíduo se afirma em uma identidade escolhida” (66). Le Breton comenta, de maneira significativa, em seu livro Adeus ao corpo, que a tatuagem na prisão 

    [...] traduz uma resistência pessoal à eliminação da identidade induzida pelo encarceramento que entrega o tempo e o corpo à investigação permanente dos guardas. Para o detento, simboliza uma dissidência interna, sublinhando que a perda de autonomia é provisória, que o corpo permanece sua posse própria e inalienável, a marca não lhe pode ser subtraída. (67) 

    Philippe Artières possui uma interessante pesquisa sobre um arquivo penitenciário referente a tatuagens e marcas de prisioneiros, entre 1880 e 1910 (68). Esses homens não deixaram nenhum registro, nem cadernetas, nem cartas. Foram esquecidos e são como sombras anônimas, cujas histórias somente eles mesmos contaram por meio de uma escrita sobre o corpo. 

    Sobre o antebraço, o torso, sobre a omoplata ou a coxa, eles escreveram uma data, um nome, iniciais, um rosto, um emblema, o nome de uma cidade, de um barco. Autobiografias defronte ao efêmero, eles imortalizaram os instantes singulares de suas vidas: um aprendizado em uma oficina, um amor perdido, uma batalha ganha, uma peregrinação feita. Corpos-cadernos, eles são os homens tatuados. (69)

    A prática de fotografar os detentos, registrando escrupulosamente seus “sinais particulares” – com o objetivo de criar um fichário completo dos mesmos – acaba por dissolver o sentido daquelas tatuagens concebidas para distinguir e marcar as subjetividades, tornando-as “sintomas silenciosos de uma doença difusa, de uma dor inconfessável”, como destaca Jacopo Visconti (70). São essas evidências ocultas que Rennó destaca das imagens que, originalmente, haviam sido produzidas para aperfeiçoar mais e mais o arsenal de controle.


    Às imagens dos corpos de presos, Rennó associou textos sobre crimes, utilizando o mesmo método do Arquivo Universal e formulando uma crítica à sociedade fragmentada pelos limites do crime, da sanidade e da loucura, “no círculo vicioso das gerações carcerárias” (71). Herkenhoff comenta que “as cicatrizes, nesses textos, são marcas tanto físicas quanto metafóricas. São marcas na alma porque são marcas no corpo. A pele que se tatua é a pele do cubo branco, território da arte” (72). Em um dos textos selecionados pela artista, que são expostos junto com as imagens dos corpos tatuados e escarificados, lê-se: 

    Aos 35 anos, depois de cumprir dois anos e dois meses de prisão por assalto à mão armada, Z. foi posto em liberdade às 15h30m de ontem com as roupas do corpo: um par de sandálias de dedo gastas, uma calça jeans surrada e uma camisa pólo já um tanto puída no colarinho. Nos bolsos, apenas fotografias da família, um maço com cinco cigarros um tanto tortos, um isqueiro descartável e R$4 reais oferecidos por um colega de cela, além do pedaço de papel que o identifica como ex-presidiário em liberdade condicional. (73)




    Para não ser cúmplice dessas violências, da mecanização fria e anônima, a artista revira poeticamente a situação técnica, parecendo notar a dramaticidade existente na instituição penal brasileira. Foucault, acerca do sistema panóptico, comenta que o modelo proposto por Bentham havia sido inspirado no zoológico de Versalhes e que, na época de Bentham, aquele zoológico não mais existia, tendo sido os animais substituídos por homens, mantendo-se a preocupação análoga da observação individualizante (74). O surpreendente nessa lógica, além das desigualdades e injustiças perpetradas pelo sistema, do tratamento inumano dado aos prisioneiros, parece ser a relação assujeitadora que a modernidade construiu com a esfera animal de nossa condição. Vigilância internalizada e constante, docilidade nas expressões tidas como “baixas”, sob a pena de uma autopunição severa: é como se os instintos, memórias vibrantes e a sexualidade – sempre furtivos − precisassem ser continuamente contidos. 

    Rosângela Rennó, por meio de temas socialmente densos, como cicatrizes e marcas corporais de indivíduos marginalizados e excluídos, apresenta uma grande delicadeza artística. Cicatriz permite compreender as associações entre as concepções lombrosianas e modelo panóptico, formulando uma crítica da fotografia que, no contexto prisional, torna-se instrumento de definição e coerção do Estado sobre as populações, sobretudo de jovens negros. Sem deixar de gerar uma crítica contundente a essas violências culturais, Rennó exerce uma potência desestabilizadora por meio de suas obras, ao encontrar momentos destoantes nesse mar de imagens, instantes de suavidade e beleza que vêm dos contextos mais inesperados, em que a grafia na pele é lugar de autodefinição e memória. A artista faz repousar o olhar onde pareciam não existir brechas ou linhas de fuga, como nas prisões. Em meio a fotografias esquecidas, produzidas com o propósito do controle social, encontra espaços de denúncia, mas também de transgressão às normas, revisitando o corpo como arquivo do vivido. 

    Série Vermelha (Militares, 2000-2003) apresenta fotografias antigas de homens e meninos trajando uniformes militares, em poses hieráticas. Com a contundente interferência da artista, cria-se nestas imagens uma vedação vermelha quase total, que salienta significados pouco visíveis das mesmas. À distância, essas obras são como retângulos monocromáticos, mas, ao nos aproximarmos, é possível vislumbrar as imagens fantasmáticas daqueles homens e meninos que, como notou Tadeu Chiarelli, aparecem “perdidos no tempo e na cor, que parece querer tragá-los em definitivo” (75). Chiarelli atenta, por outro lado, que a cor vermelha possibilita uma série de associações simbólicas conflitantes entre si, por exemplo, pela simbologia da tragédia contra a do amor e do sexo. Paulo Sérgio Duarte comenta que é o crepúsculo da imagem e a noite da palavra que Rosângela oferece ao público, num lusco-fusco cor de sangue que banha os militares (76).

    A imagem militar seguramente possui conotações e regras rígidas e duradouras, mas ela pode ser compreendida por meio das colocações apresentadas acima. Em Série Vermelha é o apagamento o que mais chama a atenção do espectador, anunciando uma crítica dos usos dessas imagens como referencial simbólico do masculino. Virilidade, autoridade, força e rigidez: em sua névoa vermelha, essas construções acerca da imagem militar são dissipadas e tornam-se os espectros longínquos desses homens e meninos. No processo de apagamento, esses indivíduos surgem numa espécie de prisão eterna das organizações sociais, repetindo incansavelmente gestos viris que muitos outros já repetiram. O propósito de Rennó era o de afastar qualquer tentativa de glorificação associada à pose típica do portrait bourgeois, pois, o que mais pesou no momento de reunir e escolher as imagens “e que de certa forma ridicularizava a ideia de ‘glória’”, segundo a própria artista, “era a questão da vaidade masculina associada ao uso de uniformes”. De maneira irônica, ela explicita sua ambição crítica inicial: “Homem gosta de uniforme, acredita que ele lhe confere poder” (77).

    Rennó produz uma espécie de esgotamento de possibilidades de enxergarmos esses indivíduos criando uma dificuldade prática (por meio da manipulação das fotos), que sugere sua percepção crítica sobre as performances de gênero. Poeticamente, a obra captura as formas de representação constantemente tidas como naturais e as reverte, apresentando suas densidades e complexidades. Esse esgotamento vem acompanhado de um plano intenso, forjado por uma artista capaz de enfrentar a historicidade das representações e de formular novas perspectivas dialógicas para as subjetividades. 

    Convida a reler as imagens, mas também seus tons; repensar os dramas e intensidades do vermelho e do negro numa cultura bastante rígida e não só para o feminino. Rennó destaca a tragédia da guerra e o luto das mulheres; o sangue, o amor e o sexo, mas também a morte e a violência dessas figurações. E se o negro, em Rennó, é o ponto culminante da filtragem da luz, onde todas as imagens possíveis aparecem mergulhadas no mar do esquecimento, é também a cor que parece nos colocar frente a frente com uma questão implacável: a necessidade mesma de desconfiar das superfícies claras que proclamam assegurar a estabilidade e a ordem. 

    Em Cerimônia do Adeus (1997-2003) Rennó apresenta fotografias digitais realizadas a partir de negativos fotográficos que ela adquiriu em um estúdio de retratos de Havana, Cuba, em 1994. São as fotografias do adeus dos recém- casados, que provavelmente se despedem dos familiares e amigos após a cerimônia do casamento e vão às núpcias. Apagados e escurecidos, os casais posam para a câmera, acenando para o passado e marcando o rito simbólico representado pelo casamento. Por outro prisma, o título Cerimônia do Adeus sugere uma outra relação mais densa, que surge a partir de seu tom fúnebre, se pensarmos que ele também é nome de uma obra de Simone de Beauvoir, em que a filósofa narra os últimos anos de convivência com Jean-Paul Sartre, antes de seu falecimento (78).  

    É dentro do universo da familiaridade e dos álbuns de família que Rosângela Rennó introduz um clima fantasmagórico em suas obras, principalmente por meio do tema do sujeito melancólico, de imagens que reivindicam a nostalgia de uma identidade perdida. A apropriação de imagens antigas, já envelhecidas pelo tempo ou manipuladas pela artista para que adquiram um aspecto de apagamento, produz o efeito de desconstrução das identidades. Muitas vezes, é preciso um esforço para que se veja aquilo que o tempo está apagando. Assim, a artista incide sobre o tema do casamento como célula produtora de álbuns de família, onde a fotografia exerce o congelamento mítico da coesão afetiva (79). 

    No mundo pós-revolução sexual, o casamento não possui mais a importância de outrora. O casamento “monogâmico indissolúvel” enfraquece-se após a década de 1970 e, hoje, virou coisa do passado. Rennó parece explicitar essa transformação, o enfraquecimento de um rito que perde sentido, transformando-se em álbuns escurecidos, velharias e fotos esquecidas. Se o casamento, atualmente, adquiriu novas significações sociais, a artista não nos permite esquecer do imaginário sólido que o cerca. São marcas de subjetividades construídas por meio do rito fotográfico, pois a fotografia, nesses termos, é necessária para a afirmação e prova da experiência vivida. 

    Nesse sentido, a partir da sutileza de sua poética, Rosângela Rennó elabora perspectivas críticas e vincula-se ao debate da desconstrução de identidades fixas e consideradas “naturais”. Margareth Rago indica como a sexualidade feminina foi apropriada, desde o século XIX, pelos discursos médicos, bastante misóginos (80). A figura da “rainha do lar” conforma-se, na passagem para o século XX, em oposição à figura da femme fatale: a primeira, asséptica, vigilante e assexuada; a segunda, noturna e sedutora. As polarizações entre a mãe dedicada e higiênica e a prostituta extravagante deixaram poucos espaços de construção subjetiva às mulheres, pelo menos até a década de 1960.
    Em Histórias do Amor (1992-2003), Rosângela Rennó apresenta apenas textos que comentam alguma fotografia, sem, no entanto, apresentá-las ao espectador. Num texto da série é narrada a história de um casal que procura tirar a foto perfeita da cerimônia, mas bate a foto dias após o casamento, já que no dia o tempo estava fechado e a foto não sairia boa. Caso essa manobra não ocorresse, o risco seria guardar uma lembrança frustrante de um momento especial. A fotografia ideal do casamento é tomada como a prova incontestável da excelência dos votos, o certificado para a posteridade desta promessa de felicidade. O que está em questão, portanto, é a crítica de que a experiência parece somente ter valor por meio da comprovação das imagens. Susan Sontag problematiza essa obsessão contemporânea por fotografias investigada por Rennó: 

    Não seria errado falar que as pessoas têm compulsão pela fotografia, fazendo da própria experiência uma maneira de ver. Ao cabo, ter uma experiência torna-se sinônimo de fotografá-la, e participar de um acontecimento público passa a ser cada vez mais equivalente a vê-lo através da fotografia (81).

    Essa compulsão pela fotografia, seja como construção social da identidade ou como marca atemporal da experiência, leva a considerarmos as práticas de guarda da memória, principalmente as relações da mulher com o culto fotográfico, especialmente com o imaginário que liga o feminino à conservação da memória familiar. Em que pesem estas considerações, é interessante notar o que Alexandre Ricardo Santos apresentou a respeito do imaginário oitocentista (82). Também para este autor, é preciso considerar as relações estabelecidas entre a mulher e a fotografia no que tange à associação cultural do feminino com a responsabilidade pela memória familiar (83). Adverte, porém, que mesmo imbuídas de tal função, as mulheres precisam sempre inserir-se no código fotográfico que privilegia uma visão masculina do mundo. Assim, segundo Santos, toda uma carga de gênero pode ser percebida nas fotografias deste período, pois a prática fotográfica vinha acompanhada das informações morais do êthos masculino: 

    A dominação masculina está presente não somente no nu fotográfico, mas também no retrato, de homens ou mulheres. É ela que estabelece para cada corpo a regra de atuação ideal diante da câmera objetiva, onde os fotógrafos exercem o papel de juízes da visualidade ideal para a sociedade. (84)

    Na série Cerimônia do Adeus, esse aspecto da construção das identidades por meio da fotografia é bastante presente. A partir da exposição de inúmeras imagens que, no fundo, aparentam ser sempre a mesma, Rennó permite a crítica à homogeneização das experiências afetivas e a necessidade de reprodução incansável de um mesmo código sexual. Leia-se aí “heterossexualidade compulsória”, que é fundada na ordem do político, na fundamentação do poder (85). Ainda é possível pensar como, no âmbito da crítica feminista, o casamento constitui-se como o “contrato sexual” que historicamente restringiu as mulheres ao universo doméstico e à obrigatoriedade da maternidade (86). Para Carole Pateman, “o ‘contrato sexual’ é o binário sexuado e biológico, implícito na constituição e justificação da sociedade civil excludente do feminino, em esferas separadas do ‘público/privado’ (87)”. Se o contrato social é fundador da sociedade civil, Pateman indica como ele ignora a divisão primária do humano em duas naturezas distintas, ou seja, em nossa cultura as mulheres encarnam a submissão enquanto os homens, a liberdade. 

    Podemos avançar nesse âmbito mediante os argumentos de Judith Butler a respeito da performatividade do gênero (88). O gênero não é escrito no corpo como se este fosse um meio passivo sobre o qual se inscrevem os significados culturais. Esta autora empreende uma longa observação dos modos através dos quais as fábulas de gênero estabelecem e fazem circular sua denominação errônea de fatos naturais, questionando os impasses de definirmos o gênero como uma interpretação cultural do sexo: 

    O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de um significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem que designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. (89) 

    Portanto, o debate se desloca do sentido da inscrição do gênero sobre o corpo para o da compreensão dos aparatos culturais que organizam o encontro entre o instrumento e o corpo. O intuito é o de percebermos quais intervenções são possíveis nessa repetição ritualística. O pensamento de Butler visa reformular, desse modo, a noção de gênero, para abranger as relações de poder que produzem o efeito de um sexo pré-discursivo e que ocultam, assim, a própria operação da produção discursiva. As obras de Rosângela Rennó questionam os modos de conformação das identidades pelo ato de fotografar, e podemos melhor compreendê-las por meio da desconstrução formulada pela crítica feminista atual, evidenciando como o gênero é um dos modos de construção dramática e contingente de sentido (90). Considerando o gênero como intencional e performático, é possível evidenciar as normas do mesmo que permitem as ficções sociais vigentes, como o próprio fenômeno da crença em um “sexo natural”. 

    Rennó apropria-se de imagens, por exemplo, em Cerimônia do Adeus, que foram produzidas dentro das normas sociais que privilegiam a visão masculina e heterossexual, onde o próprio casamento opera como estratégia de construção de uma ficção cultural. A ilusão de um eu permanentemente marcado pelo gênero é criada, portanto, por meio da estilização do corpo e dos gestos. Muitas vezes o âmbito das relações íntimas opera para reafirmar a necessidade e naturalidade desses atos de gênero, sendo a fotografia do casamento uma das construções que servem para fortalecer esses atos e sustentar a divisão binária das identidades. 

    3.4 ESPELHO DIÁRIO 

    Rosângela Rennó trabalhou a questão da identidade feminina na videoinstalação Espelho Diário, apresentada pela primeira vez em 2001, no Museu do Chiado, em Portugal. O título da instalação remete ironicamente ao tabloide britânico The Daily Mirror, conhecido por seu caráter sensacionalista. Ao mesmo tempo, alude à própria montagem da instalação, pois duas cenas são projetadas em duas telas instaladas lado a lado, que possuem um ângulo obtuso, o que sugere a ideia de um espelho, tendo a duração de duas horas. Esse trabalho foi realizado por meio da Bolsa Vitae de Arte e da Bolsa Guggenheim. 

    Espelho Diário é criado a partir de uma coleção singular. Nessa obra, Rosângela Rennó interpreta inúmeras situações envolvendo personagens femininas: são políticas, defuntas, pesquisadoras, donas de casa, delegadas, mães, prisioneiras, empregadas, sem-teto, cabeleireiras, violentadas, socialites, artistas, noivas, evangélicas, putas, etc. – todas chamadas Rosângela

    Nos vídeos, a artista executa breves monólogos íntimos, em que essas diferentes mulheres discorrem sobre a prisão, o casamento, a morte, a pobreza e a violência etc.− temas inspirados em notícias recolhidas durante oito anos na imprensa diária brasileira. Rosângela Rennó colecionou esses recortes que eram relacionados às suas homônimas entre os anos de 1991 e 1998 e, juntamente com a escritora Alicia Duarte Penna, organizou o material peculiar e montou o roteiro da videoinstalação. Os acontecimentos apresentam-se cronologicamente e são 230 fragmentos de fatos cotidianos de 133 mulheres, condensados em 105 dias do ano, por meio do texto do diário escrito por Alicia Penna. Esses registros foram organizados por data de ocorrência, profissão e ocupação das mulheres e, na videoinstalação, as personagens surgem numa diversidade de cenários e de vestimentas. Rosângela Rennó explica a estratégia utilizada na obra: 

    Os fatos verídicos coletados perfazem 105 dias de um ano de vida de um personagem impossível e improvável, cujo nome é igual ao meu próprio nome, o que significa que a liberdade temporal do diário, traduzida em 365 dias de um ano foi condensada. O tempo da personagem é tão singular quanto é a sua personalidade, pautada pela fragmentação e multiplicidade... a simplicidade, a ausência de artificialismo e o controle rígido da ‘teatralidade’ trabalham com a finalidade de apontar mais para a impossibilidade de identificar-me com as 133 Rosângelas do que tentar superpor-me a elas. Desnecessário dizer que a autorreferência no Espelho Diário é deliberada e ironicamente contrária àquela que normalmente orienta um enorme volume de obras contemporâneas de arte.... afinal, tratava-se de um exercício de colocar em minha boca as palavras da outra, sem que qualquer uma das duas deixasse de ser ela mesma, ao mesmo tempo em que uma poderia falar por todas as ‘outras’ (91).  

    Nesse diário imaginário, a artista parece apresentar uma reflexão acerca da identidade brasileira, a partir de vozes femininas dissonantes, mostrando uma multiplicidade que é bastante divertida se contrastada com a tipificação identitária ou mesmo de viés autobiográfico assegurada pelo nome próprio. Como as projeções parecem espelhar-se umas nas outras, o efeito de multiplicidades faz com que Rosângela Rennó perca sua própria face, mesclando-se com liberdade em experiências de outras mulheres. 

    Rosângela Rennó faz um desvio em sua estratégia recorrente de apropriação de imagens abandonadas, recortando então histórias cotidianas que poderiam referir- se a quaisquer Marias, Robertas, Gabrielas... Se antes a artista havia colecionado notícias de jornais que traziam referências a imagens fotográficas, por exemplo, em Histórias de Amor, nessa videoinstalação, ela transita de modo diferenciado por essas memórias fugidias, recriando histórias de mulheres que, apesar das datas projetadas pelo vídeo, parecem desaparecer no tempo e no espaço. 

    Um diário é também um “arquivo de si”, conforme Artières, onde é possível, no curso da escrita, recriar-se de maneira autônoma (92). Na obra de Rennó, o que surge de modo impactante é uma sensibilidade para reavaliar estratégias de fixação da identidade, sobretudo feminina, já que ela compõe um retrato de si às avessas, forjado por histórias singulares, que exibem de modo trágico, mas também hilário, estereótipos, desejos e dificuldades do cotidiano de mulheres no Brasil contemporâneo. 

    Relatos de uma vida impossível, anunciada de modo surpreendente no início do vídeo por uma locução de Cid Moreira, que desconcerta pelo tom espetacular e pelos erros de concordância nominal: “somente elas era umas: Rosângelas, este conjunto unitário, esta dízima periódica, este singular plural...”. Rennó mostra-nos um mundo estranho-familiar para o feminino, para nos referirmos ao conceito Unheimliche, o infamiliar, de Freud. Vozes que se contradizem, como a da jovem rica que, em 23 de janeiro está deitada na cama e repassa os compromissos diários em sua agenda − do personal trainer ao cabeleireiro −, ou a mulher sofrida da favela, que em 1o de abril reage à obrigatoriedade de enviar os filhos à escola, sob pena de ser presa: 

    Se não tem escola, prende. Se não tem roupa, prende. Se não tem comida, prende [...]. Aí vai ficando todo mundo sem pai nem mãe. Aí aproveitam e prendem eles [os filhos] também. Assim resolve o problema: os pobres dentro da cadeia e os ricos se esbaldando do lado de fora. Pronto. Acabou o problema. (Espelho Diário, trecho da tela direita). 

    Denunciando as injustiças sociais e criticando a miséria, Rennó empreende um discurso político que perpassa muitas de suas obras. Perante as notícias de jornal de Histórias de Amor, somos tomados pelo exercício de construir uma imagem segundo nossas próprias referências e experiências pessoais. De modo semelhante, em Espelho Diário, os monólogos como o acima transcrito levam a recriar a notícia, a pessoa e o acontecimento vivido, o que traz ao espectador a possibilidade de intervir ativamente na apreensão da obra. 

    A estratégia utilizada por Rennó de escolher histórias de jornais adiciona um tom sensacionalista aos monólogos, já que os fatos que os inspiraram tiveram de ser suficientemente noticiáveis para que redações de jornais se interessassem por eles. Esse é o caso de histórias de assassinato e violência sexual, que possuem uma abordagem importante na videoinstalação. Em 23 de fevereiro, uma mulher “Rosângela” conta que começou investigando a morte da vizinha e que acabou descobrindo a morte de sua própria filha. “Eu sou a notícia”, ela diz. Em 2 de março, outra conta que no dia anterior foi encontrada morta, junto ao corpo de seus filhos, nos escombros do “Palace II”. Outra ainda, no dia 31 de março, confessa que atirou primeiro, mas como outra mulher pulou na sua frente, o tiro a acertou. Existe também uma “Rosângela” que conta, no dia 14 de maio, que querem assassiná-la por queima de arquivo. A lista de crimes, de assassinatos e de acidentes é extensa e exibe uma face do país, um cotidiano violento do qual participam mulheres de diferentes classes, raças e religiões. 

    A figura da mulher sedutora também aparece na obra, assim como a mulher que se veste de maneira inapropriada para conseguir romper um relacionamento. Uma outra “Rosângela” está contente por relacionar-se com um “homem público”, o que lhe confere status social. É interessante a figura da noiva que procurou um companheiro numa agência de casamentos. Perante a câmera, vestida de branco, essa “Rosângela-noiva” treina cumprimentos, que possivelmente serão reproduzidos aos convidados durante a festa. Por fim, lambe os lábios de modo sensual e diz: “Fiquei assim, profissional. Fui na agência de casamento e disse: 

    ‘quero uma companhia, amor não’, como quem encomenda um vestido cinza, para todas as horas iguais. Um uniforme”.


    Recriando-se discursivamente e burlando as práticas fixadoras das identidades, Rennó empreende uma aventura por outros territórios. Pedro Lapa descreve o impacto dessa obra. 

    [Para Rosângela Rennó,] [...] não se trata de reclamar uma identidade fundada numa mais- valia de expressão, normalmente tão reclamada pelos pressupostos humanistas, mas de inscrever o que é absolutamente casual e singular nas suas vidas apesar de qualquer ordem prévia que pretenda exercer o seu domínio categorial. (93) 

    Lidando com a memória, com o esquecimento e com a identidade, Rennó produz um diálogo com essas figuras femininas, ao mesmo tempo em que explicita as suas singularidades. A obra revela, assim, a impossibilidade de categorizarmos a figura da MULHER, tradicionalmente associada à maternidade e a uma suposta essência biológica, em identidades atemporais e a-históricas. Indica, ainda, a diversidade de experiências, de marcas do passado e de crenças culturais que constituem a vivência feminina no Brasil contemporâneo, muitas vezes atravessada pela subordinação ao imaginário masculino, como é o caso de “Rosângelas” que incorporam atitudes machistas ou que encontram sentidos afetivos nos papéis tradicionais de mãe dedicada, esposa fiel, amante sedutora. 

    As transformações na percepção do tempo e nos papéis de gênero são abordadas de modo poético em um trecho de Espelho Diário. Em alguns momentos da videoinstalação surgem textos de diários, escritos na tela do computador, dentro do programa Word. No dia 21/07, lê-se: 

    Ontem nós fizemos testes para descobrir a composição das tintas. É impressionante a variedade de tintas que foram usadas em cada aquarela, o que comprova que elas foram pintadas há quase 100 anos, naquele tempo em que as tintas eram feitas especialmente para cada quadro, assim como as portas e as janelas, para cada casa, as roupas e os sapatos, sob medida. Nesse tempo, um bolo era feito com 24 ovos e, enquanto se batiam os ovos na enorme bacia, conversava-se, vigiava-se a roupa quarando, as frutas amadurecendo no pé, e o bolo era isso tudo, assim como a aquarela ainda é. Por isso, enquanto devolvemos às aquarelas suas cores – e isso pode levar semanas, meses, anos – estamos restituindo o tempo ao tempo, o modo de fazer, ao que está se desfazendo (Espelho Diário, trecho da tela direita). 

    O trecho permite associações com a delicada prática artística de Rosângela Rennó. Esse trabalho de valorização do passado, empreendido pela artista, conecta-se aos escritos de Ecléa Bosi, que a partir da lembrança de velhos traz importantes contribuições a respeito da memória coletiva. Bosi compreende como a sociedade em que vivemos rompe o elo entre as gerações ao mesmo tempo em que desvaloriza o saber que advém da experiência. (94) 

    Nesse trecho de Espelho Diário, o fazer artístico, a aquarela, liga-se pela lenta feitura e atenção aos detalhes, à preparação de um bolo e às tarefas domésticas. De modo singular, as cores delicadas e transparentes da aquarela iluminam uma vida feminina. A artista parece sugerir como o cuidado e a lentidão, prezados em outros tempos, foram agora esquecidos e substituídos por práticas de eficiência e de rapidez. Ela enfatiza o fazer artesanal no mundo das máquinas e o tempo lento desse fazer, num mundo da velocidade e da falta de tempo. A arte ligada à vida, a tarefa de restituir “o tempo ao tempo”, como diz o diário, são necessárias para se agregarem beleza e valor aos arquivos. 

    Essa é uma preocupação que permeia inúmeras obras de Rennó. Mais do que mergulhar num universo íntimo ou autorreferenciado, a artista tem se preocupado em estabelecer contatos e traçar novas possibilidades de sociabilidade, por meio de um diagnóstico sagaz do presente. 

    Em seus trabalhos, Rosângela Rennó trata intensamente do tema da memória, apresentando apagamentos que revitalizam o olhar ao imprimir em cada obra uma modificação, uma cor, uma luz, um escurecimento quase total. São filtros integrados à obra original, intervenções que criam, às vezes, uma dificuldade de ver. Assim, a artista permite ao espectador apreender imagens abandonadas e comuns de modo mais delicado, como se a própria fotografia se posicionasse àquilo que está ali retratado.
    Foucault, em seus últimos trabalhos, abordou o tema da estética de existência, indicando como há espaço de resistência aos saberes e poderes por meio da constituição de si (95). Michel de Certeau, ao trabalhar o conceito de “artes de fazer”, mostrou que o sentido das crenças e das práticas culturais podem ser transformados por meio de atos de seleção e criação (96). Rosângela Rennó capta algo que pode participar do controle normativo da sociedade, como o registro fotográfico médico, jornalístico ou policial e perturba a equação. Suas imagens se tornam críticas ao próprio arsenal de controle que as produziu e passam a registrar criações libertárias e inúmeras boas surpresas. 



    1. CHIARELLI, Tadeu. Tridimensionalidade na arte brasileira do século XX. São Paulo: Itaú Cultural, 1997; HERKENHOFF, Paulo. “Rennó ou a beleza e o dulçor do presente” In. Rosângela Rennó, São Paulo, Edusp, 1997 (Artistas da Usp, 9). 
    2. Manoel de Barros em Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda), Editora Civilização Brasileira – edição 1990.
    3. POLLOCK, Griselda. Vision and difference: feminism, femininity and the histories of art. New York: Routledge, 2003, p. 33-34. 
    4. Veja o destaque dado por Mariana Meloni à série “Diário de uma artista brasileiro”, de Anna Bella Geiger, da década de 1970. BOTTI, Mariana Meloni V. Espelho, espelho meu? Auto-retratos fotográficos de artistas brasileiras na contemporaneidade. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação do Instituto de Artes, UNICAMP, Campinas, 2005. 
    5. PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres, São Paulo: Contexto, 2017, p. 16. 
    6. CHIARELLI, T. Tridimensionalidade na arte brasileira do século XX. São Paulo: Itaú Cultural, 1997. p. 176. 
    7. RENNÓ, R. Rosângela Rennó: o arquivo universal e outros arquivos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
    8. HERKENHOFF, P. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: RENNÓ, R. Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1997 (Artistas da USP, 9). p. 125. 
    9. RAGO, M. Feminismo e Subjetividade em Tempos Pós-Modernos. In: COSTA, C. L.; SCHMIDT, S. P. (Orgs.). Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Mulheres, 2004. p. 31-42. 
    10. Herkenhoff afirma que, acerca de sua obra Alice (1987/1988) a artista comenta: “é uma série de oito fotos, anterior a Conto de Bruxas, na qual comecei a reciclar meu próprio arquivo. Usava a imagem de uma boneca gigante que fazia às vezes de Alice para mim.” Depoimento ao autor em agosto de 1996. HERKENHOFF, P. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: HERKENHOFF, P. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: RENNÓ, R. Rosângela Rennó. São Paulo, Edusp, 1997. (Artistas da USP, 9). p.128. 
    11. Além dessa cena, fazem parte da série Conto de Bruxas: “Da Capo al Fine”, “A Grande Cilada”, “Mea Culpa”, “Mulheres Violentas”, “A Última Promessa” e “Falsas Promessas”. 
    12. HERKENHOFF, P. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: RENNÓ, R. Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1997. (Artistas da USP, 9). p. 129.
    13. HERKENHOFF, P. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: RENNÓ, R. Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1997. (Artistas da USP, 9). p. 143. 
    14. Herkenhoff afirma que “A isso Rosângela Rennó chama de fotografia bidimensional, porque superpõe as retículas e o plástico sobre as duas imagens”. HERKENHOFF, P. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: RENNÓ, R. Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1997. (Artistas da USP, 9). p. 133. 
    15. A obra de Rennó pode também ser associada ao conhecido romance de Goethe (1749- 1832), Afinidades Eletivas, de 1809. 
    16. RENNÓ, R. Rosângela Rennó: depoimento. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2003, p. 16. 
    17. Ibid., p. 13.
    18. Ibid., p. 7. 
    19. BENJAMIN, W. Paris: capital do Século XIX. In: KOTHE, F. R. (Org.). Walter Benjamin: sociologia. São Paulo: Ática, 1985. p. 30-43.
    20. MELENDI, M. A. Bibliotheca ou das possíveis estratégias da memória. In: RENNÓ, Rosângela. Rosângela Rennó: o arquivo universal e outros arquivos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 24. 
    21. Ibid., p. 26.
    22. RENNÓ, R. Rosângela Rennó: depoimento. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2003. p. 11. 
    23. Cf. BORGES, J. L. Funes, o memorioso. In: Ficções. São Paulo: Globo, 1999. p. 53-58. 
    24. Ibid., p. 54. 
    25. Ibid., p. 57. 
    26. RENNÓ, R. Rosângela Rennó: o arquivo universal e outros arquivos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
    27. HERKENHOFF, P. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: RENNÓ, R. Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1997. (Artistas da USP, 9). 1997. p.160. 
    28. HERKENHOFF, P. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: RENNÓ, R. Rosângela Rennó. São Paulo: Edusp, 1997. (Artistas da USP, 9). 1997. p. 162. 
    29. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
    30. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2.ed., 1981.
    31. “Pintura sobre fotografias adquiridas em feiras de artigos de segunda mão ou doadas por familiares e amigos. Objetos, fotografias pintadas sobre painéis de espuma e lycra, 165x105x7 cm cada, fotografados por Vicente de Mello”. RENNÓ, R. Rosângela Rennó: o arquivo universal e outros arquivos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p.62.
    32. FOUCAULT, M. Outros espaços. In: Ditos e Escritos. Estética: literatura e pintura, música e cinema, v.3. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p.411-422.
    33. Ibid., p. 400.
    34. Ibid., p. 405. 
    35. Ibid., p. 400.
    36. ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Trad. Dora Rocha. Revista Estudos Históricos, v.11, n.21, p.9-34, 1998. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061>. Acesso em: 24 set. 2019.
    37. Ibid., p. 34. 
    38. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. v.1. Petrópolis: Vozes, 1994.
    39. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. v.1. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 41. 
    40. RENNÓ, R. Rosângela Rennó: depoimento. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2003. p. 3. 
    41. SONTAG, S. Ensaios sobre fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981. p. 24.
    42. RENNÓ, R. Rosângela Rennó: depoimento. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2003. p. 8. 
    43. Idem. 
    44. SONTAG, S. Ensaios sobre fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981. p. 5. Cf. CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle (Org.). História da Vida Privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra, v.4. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 387-568.
    45. Cf. DUBOIS, Philipe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994, p. 241. 
    46. FABRIS, A. Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 45. 
    47. Idem.
    48. COURTINE, J. J.; HAROCHE, Claudine. O homem desfigurado: semiologia e antropologia política de expressão e da fisionomia do século XVII ao século XIX. Revista Brasileira de História, v.7, n.13, 1986/1987. p.26. Disponível em: <https://www.anpuh.org/revistabrasileira/view?ID_REVISTA_BRASILEIRA=28>. Acesso em 25 set. 2019.
    49. CORBIN, A. Bastidores. In: PERROT, M. (Org.). História da Vida Privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra, v.4. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 387-568. 
    50. Ibid., p. 423.
    51.  CORBIN, A. Bastidores. In: PERROT, M. (Org.). História da Vida Privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra, v.4. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 387-568. p. 419.
    52.  Cf. COURTINE, J. J.; VIGARELLO, G. Identifier. Traces, indices, soupçons. In: ______. (Coord). Histoire du corps. Des mutations du regard: le XXe. Siècle, v.3. Paris: Seuil, 2006. p. 263-276. 
    53. Foucault destaca as diferenças entre o modelo de punição do Antigo Regime e o “poder disciplinar moderno”: “O ponto extremo da justiça penal no Antigo Regime era o retalhamento infinito do corpo do regicida: manifestação do poder mais forte sobre o corpo do maior criminoso, cuja destruição total faz brilhar o crime em sua verdade. O ponto ideal da penalidade hoje seria a disciplina infinita: um interrogatório sem termo, um inquérito que se prolongasse sem limite numa observação minuciosa e cada vez mais analítica, um julgamento que seja ao mesmo tempo a constituição de um processo nunca encerrado, o amolecimento calculado de uma pena ligada à curiosidade implacável de um exame, um procedimento que seja ao mesmo tempo a medida permanente de um desvio em relação a uma norma inacessível e o movimento assintótico que obriga a encontrá-la no infinito”. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 187. 
    54. BENTHAM, J. O Panóptico ou a casa de inspeção. In: SILVA, T. T. (Org.). O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000 apud VIEIRA, P. P. Pensar diferentemente a história: o olhar genealógico de Michel Foucault em Vigiar e Punir, 2008. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas. p. 154. 
    55. VIEIRA, P. P. Pensar diferentemente a história: o olhar genealógico de Michel Foucault em Vigiar e Punir, 2008. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas. p. 154.
    56. Ibid., p. 155. 
    57. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 170. 
    58. FABRIS, A. Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 45. 
    59. FABRIS, A. Identidades sequestradas. In: SAMAIN, Etienne (Org.). O fotográfico. São Paulo: Hucitec/CNPq, 1998. p. 266.
    60. Ibid., p. 267.
    61. Cesare Lombroso (1835-1909) é figura central para a criminologia do século XIX. Ele criou teorias sobre como a hereditariedade e as doenças nervosas, por exemplo, teriam papel na delinquência. Estabeleceu uma tipologia dos criminosos analisando estigmas fisionômicos, fisiológicos e psíquicos. Cf. RAGO, M. O complicado sexo dos doutores. In: Os prazeres da noite: prostituição e códigos de sexualidade feminina em São Paulo (1890- 1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 141-164. 
    62. Rennó ainda não encontrou documentos que comprovem a ligação entre a Criminologia e a tatuagem nas fotografias de José Moraes de Mello. Assim, ainda não se pode traçar um paralelo seguro entre essa prática e a de Cesare Lombroso. FABRIS, Annateresa. Identidades sequestradas. In: SAMAIN, Etienne (Org.). O fotográfico. São Paulo: Hucitec/CNPq, 1998. p. 267. Sobre essas correlações históricas, cf. GARCIA, Vivian Carla Ferreira. Infames "Marias" : prontuários de mulheres do Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo (1897-1952), 2020. Dissertação (mestrado) em História− Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. 
    63. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 177.
    64. CANTON, K. Pele, alma. In: Pele, Alma. Catálogo da exposição. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2003. 
    65. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Trad. M. E. Galvão. São Paulo: Martins fontes, 2005. p. 82. 
    66. LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003. p. 40.
    67. Idem.
    68. ARTIÈRES, P. A fleur de peau: médecins, tatouages et tatoués, 1880-1910. Paris: Allia, 2007. 
    69. Idem, p.7. 
    70. VISCONTI, J. C. Evidências ocultas. In: Shattered dreams: sonhos despedaçados. Beatriz Milhazes | Rosângela Rennó. São Paulo: Fundação Bienal, 2003.
    71. SANTO, Silvia M. E. Ação cultural: relato de três experiências de mediação em arte contemporânea. São Paulo, 2001. 154p. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo. p. 82 
    72. HERKENHOFF, P. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: RENNÓ, R. Rosângela Rennó. São Paulo, Edusp, 1997. (Artistas da USP, 9). p. 189.
    73. RENNÓ, R. Rosângela Rennó: o arquivo universal e outros arquivos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 
    74. RAGO, M. Rir das origens. In: SILVEIRA, Rosa M. H. (Org.). Cultura, Poder e Educação, 1.ed., Canoas: ULBRA, 2005. p. 39-53; RAGO, M. Michel Foucault e o zoológico do rei. In: VEIGA-NETO, Alfredo; ALBUQUERQUE, Durval M.; SOUZA FILHO, Alípio (Orgs.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. (Estudos Foucaultianos).
    75. CHIARELLI, T. Apropriação/ Coleção/Justaposição. In: Catálogo para a exposição Apropriações/ Coleções. Porto Alegre: Santander Cultural, 2002.
    76. DUARTE, P. S. Para reler o vermelho e o negro. In: Apropriações/ Coleções (Catálogo da exposição). Porto Alegre: Santander Cultural, 2002. 
    77. RENNÓ, R. Rosângela Rennó: depoimento. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2003. p. 20. 219. 
    78. BEAUVOIR, S. Cerimônia do Adeus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1974. 
    79. HERKENHOFF, P. Rennó ou a beleza e o dulçor do presente. In: RENNÓ, R. Rosângela Rennó. São Paulo, Edusp, 1997. (Artistas da USP, 9). p. 134.
    80. Cf. RAGO, M. O Complicado sexo dos doutores. In: ______. Os prazeres da noite: prostituição e códigos de sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p.141-164.
    81. SONTAG, S. Ensaios sobre fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981. p. 24.
    82. SANTOS, A. R. A fotografia e as representações do corpo contido (Porto Alegre 1890- 1920). Porto Alegre, 1997. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Programa de Pós- graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 
    83. Cf. PERROT, M. Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História, n.18, v.9, p.9-18, ago./set. 1989.
    84. SANTOS, A. R. A fotografia e as representações do corpo contido (Porto Alegre 1890- 1920). Porto Alegre, 1997. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Programa de Pós- graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. p. 200.
    85. Cf. WITTIG, M. La pensée straight: questions féministes. n.7, Ed. Tierce, fev. 1980 apud NAVARRO-SWAIN, T. As teorias da carne: corpos sexuados, identidades nômades. Labrys, estudos feministas, n.1-2, jul./dez. 2002. Disponível em: <https://www.labrys.net.br/labrys1_2/index.html>. Acesso em: 14 out. 2019. 
    86. Cf. PATEMAN, C. O Contrato sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993. 
    87. NAVARRO-SWAIN, op. cit. 
    88. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
    89. Ibid., p. 25.
    90. Idem. 
    91. Descrição de Rosângela Rennó sobre a videoinstalação Espelho Diário. Disponível em: <http://www.canalcontemporaneo.art.br/e-nformes.php?codigo=204>. 
    92. ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Trad. Dora Rocha. Revista Estudos Históricos, v.11, n.21, p.9-34, 1998. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061>. Acesso em: 24 set. 2019. p. 34.
    93. LAPA, Pedro. Texto do catálogo da exposição Rosângela Rennó. Espelho Diário / Daily Mirror. Lisboa: Museu do Chiado, 2001. 
    94. BOSI, E. Memória e sociedade, lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz, 1979. 235 
    95. Cf. FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber, v.1. Rio de Janeiro: Edições Graal, 14.ed., 2001.
    96. Cf. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. v.1. Petrópolis: Vozes, 1994. 



    TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. As Identidades Fotográficas Em Rosângela Rennó (excerto de texto). In TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Figurações Feministas Na Arte Contemporânea Brasileira.

    Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó. São Paulo: Editora Intermeios, 2021, pp. 150-236.