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As Identidades Fotográficas em Rosângela Rennó 


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    […] FILTROS DE LUZ 

    Uma perspectiva feminista singulariza, subverte e diz o lugar de sua fala, ou seja, marca-se principalmente pela atitude ética de construção de novas formas de sentir, pensar e agir na contemporaneidade, buscando outros modos de constituição das subjetividades. Problematizando os rumos do feminismo em nossos dias, Margareth Rago afirma: 

    [...] a feminista teria uma função social especial no sentido de ajudar a refazer as sociabilidades públicas, cada vez mais desgastadas e destruídas pela privatização do cotidiano, isto é, pela desvalorização da política e pela sobreposição, no mundo público, do modelo da amizade constituído pela referência familiar, isto é, na esfera da vida privada. (9)

    Rosângela Rennó, no começo de sua carreira, concebe imagens que questionam a submissão feminina, a aura de apagamento que permeia a construção da subjetividade das mulheres e o imaginário que as mantém em estereótipos como de princesas e bruxas. Posteriormente, aborda criticamente todo um universo de práticas opressoras sobre os corpos e as subjetividades, expressando um posicionamento político que caracteriza um novo modo de ação artística feminista. Nas artes, nas ciências ou na política, uma atitude feminista revela-se através do modo diferenciado de olhar, na denúncia das estratégias do poder masculino e na busca de novas configurações para a vida em sociedade. Não se trata, aqui, de formular uma identificação da artista com a militância, mas de observar em suas obras como os ecos de uma abordagem de caráter feminista estão presentes.
A artista produz uma crítica refinada à produção de imagens na atualidade, principalmente as fotográficas. Observando como nossa cultura lida com as imagens fotográficas de modo obsessivo, ela parece perceber que o ato de olhar já está suficientemente condicionado na contemporaneidade e que as imagens não nos são mais necessárias para tanto. 

    Para a artista, a fotografia apropriada permite a observação das imagens que foram ou deveriam ser descartadas. Deste modo, essa artista também trabalha com figurações que, produzidas aos milhares, acabaram por ter seu propósito original banalizado, tanto nas fotografias policiais ou naquelas produzidas na esfera privada. Um questionamento acerca do esvaziamento da experiência na contemporaneidade apresenta-se: qual o propósito de construir uma imagem de si, para si mesmo, por exemplo, nos retratos de família ou autorretratos, que irá se perder num oceano de imagens vazias? 

    Ao considerar que ver não é algo neutro, mas um comportamento cultural permeado de significados, Rennó utiliza uma prática restrita, tanto por apropriar-se de textos e imagens antigos, quanto por dificultar nossa leitura e visão a um ponto tão extremo que interfere na própria naturalidade com a qual costumamos utilizar nosso olhar. 

    É interessante notar como é constituído o olhar sobre o feminino na obra de Rosângela Rennó. As figuras femininas em suas imagens aparecem sempre no tenso limite entre a nebulosidade e a transparência. Ainda no início de sua carreira, Rennó utilizou objetos lúdicos, alguns que eram de sua vivência infantil (10). Na série Conto de Bruxas (1988), utilizou imagens de histórias infantis dos anos 1940, feitas para serem vistas em aparelhos de view-master, ampliando-as em grande formato (1,50 x 1,00) e transformando os bonequinhos quase em monstros, devido também aos fungos que as atacaram. Tais imagens subvertem sua própria origem enquanto contos de fadas, apresentando cenas arquetípicas como em Encarnação do Verbo (1988) (11), onde Cinderela, sentada, recebe a visita de uma fada. 

    Por meio dessa reapropriação de elementos infantis, Rennó “cria atormentadoras histórias de bruxa, verdadeiros pesadelos estéticos”, segundo Paulo Herkenhoff (12). O título “encarnação do verbo”, que corresponde à tradição iconográfica da Anunciação na história da arte, aqui parece ser transmutado em uma crítica às definições de gênero que mantém as mulheres presas definidas em opostos simbólicos do “anjo do lar” e da bruxa. Conto de Bruxas sugere uma crítica aos lugares femininos tradicionais, sustentados por um imaginário de conto de fadas, veiculados em livros de histórias infantis. Falsas promessas (1988), título de outra fotografia da série, mostra um príncipe e uma princesa numa situação de tensão. Ao ironizar as virtudes femininas idealizadas, como a passividade e a amorosidade, Rennó faz desiludir da espera por um príncipe encantado. 

    Do repertório da artista, essas obras iniciais em sua carreira são as que se orientam mais abertamente pela discussão de gênero, apresentando os temas clássicos do universo feminino, transmutados em imagens fantasmagóricas e sombrias. Rennó, pelo que parece, busca desconstruir a delicadeza e a fragilidade desses arquétipos femininos, sublinhando, nessas obras, a dimensão assujeitadora dos mesmos.  [...]


    TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. As Identidades Fotográficas Em Rosângela Rennó (excerto de texto). In TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Figurações Feministas Na Arte Contemporânea Brasileira. Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó. São Paulo: Editora Intermeios, 2021, pp. 150-236.


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