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anti-cinema (discos), 1989
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Cicatriz. Fotografias de tatuagens do Museu Penitenciário Paulista e textos do Arquivo Universal
As fotografias de tatuagens foram produzidas nas primeiras décadas do século, no hoje extinto Departamento de Medicina e Criminologia, pelo Dr. José de Moraes Mello, psiquiatria-cheſe da Penitenciária do Estado entre 1920 e 1939, período em que provavelmente se concentrou a maior parte da produção fotográfica realizada naquele presídio. São imagens de forte apelo visual: fragmentos de corpos dos presidiários fotografados com requinte, em poses estudadas, diferentes dos estudos fotográficos similares de caráter determinista realizados, no século XIX, por "cientistas criminalistas" como Lombroso, De Blasio e Lacassagne. Os negativos em vidro de tais imagens produzidas haviam sido destinados ao esquecimento, distribuídos por diversos porões no complexo do Carandiru e posteriormente reunidos, sem nenhum critério de acondicionamento ou arquivamento, em uma sala da ACADEPEN.
O Arquivo Universal, criado em 1992, é um arquivo virtual e infinito de imagens latentes armazenado no computador, constituído por excertos de textos jornalísticos que contêm pequenos relatos de histórias pessoais tornadas públicas através dos jornais, envolvendo a presença ou a existência de uma imagem fotográfica. Ao serem inseridos no computador, os textos são lapidados de maneira a eliminar todos os "excessos", tais como nomes, locais e referências temporais. Uma informação polida e transparente que contém uma imagem latente que o espectador realiza durante o exercício da leitura. O corpo da letra, da palavra e do texto se tornam o corpo fotográfico. A virtualidade do arquivo permite que sejam realizados diferentes conjuntos de imagens, cumprindo tarefas diferentes, em diferentes suportes, em função do espaço destinado à sua veiculação, do contexto e do próprio teor da mensagem.
Do ponto de vista formal, Cicatriz foi adequado a dois suportes distintos. Concebido inicialmente como instalação, foi apresentado no Museum of Contemporary Art of Los Angeles (MOCA) de agosto a outubro de 1996. As paredes da galeria foram tratadas como uma pele sobre a qual se inscreveram, em grandes dimensões, 18 fotografias de tatuagens e 12 textos em baixo relevo que se ilustravam mutuamente. Em 1997 o projeto foi adaptado ao formato de um livro no qual a alegoria da pele está presente nas páginas em papel pergaminho sobre as quais se inserem 34 fotografias e se escarificam 32 textos, por meio de relevo seco.
Do ponto de vista conceitual, o projeto que tinha uma intenção estética baseada na intertextualidade entre imagens e textos provenientes de repertórios diferentes adquiriu o caráter de ação política em dois níveis. Primeiramente, o aspecto menos visível, tratava-se também da intervenção direta sobre uma instituição governamental o Museu Penitenciário. Numa segunda instância, a recontextualização e a visibilidade de um conjunto de fotografias do Museu daria o "tom da conversa" sobre anonimato, identidade, memória, disciplina e poder. A intervenção no Museu Penitenciário se concretizou através do longo trabalho de recuperação de um conjunto de negativos em vidro de seu acervo. Em abril de 1995, quando soube da existência do vasto arquivo, interessei-me particularmente pelas fotografias de tatuagens, com vistas a incorporar algumas delas a meu arquivo pessoal, por meio de reproduções. O estado precário de conservação do material fotográfico, a inexistência de um sistema de arquivamento das imagens que possibilitasse qualquer consulta, a total inexperiência do pessoal envolvido na guarda do acervo e sobretudo a urgência em salvar uma parte da história penitenciária do país me levaram a elaborar e oferecer à ACADEPEN um projeto de higienização e reacondicionamento daqueles negativos. O projeto serviria como ponto de partidą para a constituição de um verdadeiro Museu Penitenciário, por meio de uma parceria entre a artista e o Estado. A empreitada, inicialmente apoiada pela ACADEPEN, tornou-se algo muito maior no decorrer dos nove meses subsequentes em que lutei pela autorização para realizar o projeto. Compreendi que a intervenção no Museu Penitenciário, cuja finalidade se baseava em princípios de ordem estética, era também uma ação política. Dois sucessivos pareceres negativos da assessoria jurídica da Secretaria de Administração Penitenciária, a inoperância e a estagnação daquilo que no jargão penitenciário é simplesmente o "sistema" e suas ramificações apresentaram-me a verdadeira dimensão do que pode ser uma atitude política do artista. O Estado tem dificuldade em oferecer e não está habituado a receber. O artista contemporâneo está habilitado e autorizado a discutir, manifestar-se sobre, abrir caminhos em, e circular por territórios não necessariamente artísticos, e isso engloba também o institucional. Portanto, a realização do projeto Cicatriz resulta também da discussão sobre a atitude do artista.
Durante os seis meses decorridos entre a autorização para o início do projeto de recuperação dos negativos e a realização da instalação Cicatriz no MOCA-Los Angeles, fiz o trabalho de identificação de todos os negativos em vidro de tatuagens remanescentes, em bom ou razoável estado de conservação, dos quais foram selecionados cerca de 300, o primeiro set de trabalho. Foram realizados um fichamento completo deste material, o diagnóstico de seu grau de deterioração, a classificação por ordem de número de identificação penitenciária e a duplicação dos negativos, com assessoria do Centro de Conservação e Preservação Fotográfica da FUNARTE. O trabalho de higienização e reacondicionamento dos demais negativos de tatuagem ainda se encontra em processo. Do primeiro set, foram selecionadas as 18 fotos que compuseram parte da instalação Cicatriz e as 34 que integram o protótipo do livro homônimo.
O enorme volume de material fotográfico encontrado e a reconhecida importância que a Penitenciária do Estado - modelo de instituto correcional para a América do Sul - teve desde sua inauguração em 1920 até meados dos anos 50, me faz supor que um setor de identificação criminal e uma Seção de Medicina e Criminologia muito bem equipados funcionaram por pelo menos 25 anos. Entretanto, a falta de informação textual sobre o material fotográfico não me autoriza a tirar conclusões sobre o sistema de identificação adotado nem sobre as possíveis pesquisas fisionômicas ou frenológicas que possam ter sido realizadas; isto deverá ser tarefa para os próximos pesquisadores. Interessaram-me mais as razões que levaram este vasto arquivo de retratos "dupla-efígie", tatuagens, corpos nus, marcas, tumorações, redemoinhos de cabelo, etc, ao oblívio. Parafraseando Walter Benjamin e Paulo Herkenhoff, uma névoa espessa (1) recobre a história do sistema penitenciário e a torna opaca. É nessa opacidade que reside meu interesse pelas imagens que já tinham a origem e o destino selados: a invisibilidade. Origem: invisibilidade, quando me refiro à característica intrínseca daquelas imagens que foram produzidas para serem arquivadas e para que seus referentes fossem definitivamente esquecidos. Destino: invisibilidade, porque estas imagens que se confundem com a escatologia do próprio sistema penitenciário foram quase destinadas ao lixo.
As fotografias abandonadas de tatuagens, quando devolvidas à luz, se tornam testemunhos daquilo que Foucault chamou de o olho que tudo vê, instrumento do poder disciplinar que se exerce tornando-se invisível; e, ao contrário, impõe àqueles que submete um princípio de visibilidade obrigatória (2). Tornam-se signos de um projeto de amnésia institucional e deliberada. Bem mais recentemente, a solução encontrada para apagar uma das maiores cicatrizes da história da cidade de São Paulo a memória do massacre dos 111 da Casa de Detenção - foi a decisão da demolição iminente do conjunto arquitetônico do Carandiru: um projeto de amnésia histórica.
Finalmente, a segunda tarefa política visibilidade e a recontextualização das fotos de tatuagens - foi cumprida através de uma estratégia de intertextualidade. Não associar a imagem do acervo do Museu Penitenciário a qualquer texto de caráter descritivo ou ensaístico, mas sim a uma outra narrativa independente significava a justaposição de histórias particulares: as que se ocultam no desenho da tatuagem e as que são relatadas nos textos do Arquivo Universal. Ambas são poderosas do ponto de vista imagético e se complementam, tanto na afinidade da essência quanto no contraste da aparência.
Afastar a fotografia de seu contexto natural - o sistema de identificação ou o estudo científico - não é esvaziá-la de seu conteúdo simbólico inicial, mas libertar seu referente da condição de estatística penitenciária. Devolver visibilidade a essas fotografias significa expor a dor da privação do direito de ser livre e da perda da identidade e o desejo de resistir à amnésia e ao anonimato. No cárcere, a disciplina se mantém por uma política coercitiva sobre o corpo do indivíduo que termina por reduzir-se a uma figura criminosa sem nome. A tatuagem dentro do presídio pode ser considerada como um índice de resistência do indivíduo ao anonimato, à perda da identidade, à amnésia. A dor de fazer-se marcar, como afirmou Mishima, poderia muito bem ser a única prova da persistência da consciência dentro da carne (3). Histórias particulares como paixões, juras de vingança ou de amor eterno, pactos de sangue são dramas individuais que se combatem nas prisões com disciplina e vigilância, mas que sempre encontram uma maneira sub-reptícia e contundente para aflorar, sobretudo nas tatuagens. Ao relatar e imaginar os pequenos dramas humanos, os textos do Arquivo Universal entram em sintonia com os desenhos das tatuagens e potencializam as imagens do Museu Penitenciário. Atuam como cúmplices das imagens, devolvem a dimensão de particular e individual às imagens de "arquivo morto" e humanizam aqueles indivíduos que não têm mais nome.
No projeto Cicatriz buscou-se dar à própria fotografia o direito de não abdicar de suas próprias qualidades de imagem (4) e de revelar, ainda que não explicitamente, aquilo que está, não no discurso institucionalizado, mas sob a pele do indivíduo - o indizível. Colocar esta fotografia dentro do espaço institucional de arte ou dentro do "livro de artista" representa, para mim, a vingança daquele que, por não poder falar, escreveu na pele e, ao mesmo tempo, 0 triunfo/redenção da imagem abandonada.
1. Idéia desenvolvida por Paulo Herkenhoff no texto "Rennó ou a Beleza e o Dulçor do Presente" em Rosângela Rennó (São Paulo: Edusp, 1997).
2. M. Foucault em Vigiar e Punir (Turim: Einaldi, 1975), р. 205.
3. Y. Mishima em Sol e Aço, citado por Luciano Raposo no livro Marcas de Escravos (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1989), p. 25.
4. C. Phéline em L’Image Accusatrice (Paris: Cahiers de la Photographie, 1985), p. 116.
RENNÓ, Rosângela. Cicatriz. Fotografias de tatuagens do Museu Penitenciário Paulista e textos do Arquivo Universal. In Discursos Sediosos. Crime, Direito e Sociedade. Ano 2, número 4. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1997, pp. 15-20.