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Estratégias da arte em uma era de catástrofes


Textos relacionados ao trabalho

  • Imemorial


Texts linked to the work Immemorial


    […] A cidade do presente tentará encontrar, nas imagens da cidade do passado, o que se perdeu, o que se esqueceu, o que foi deixado para trás. O trabalho de Rosângela Rennó também nasce das sobras da cultura, do que foi deixado de lado no processo de resolver o que tem valor. Em Imemorial, a artista confronta o projeto monumental da nova capital com o massacre de operários na sua construção. Através de depoimentos recolhidos pelo Projeto História Oral, do Arquivo Público do Distrito Federal, Rennó tomou conhecimento de que, certo dia, dois operários brigavam por comida, no alojamento da empreiteira Pacheco Fernandes. A Guarda Especial de Brasília chegou atirando. O fato foi silenciado. Os mortos nunca foram contados. 

    A partir desse relato, a artista revisa os arquivos dos funcionários da Novacap à procura dos mortos e surpreende-se ao comprovar que havia muitas crianças empregadas. Organizando os funcionários pela ordem de entrada na empresa, Rennó cria dois novos arquivos, o dos operários falecidos e o das crianças contratadas. 

    Na instalação, cinquenta fotografias (60 x 40 x 2 centímetros) são colocadas no chão e na parede, sobre bandejas de ferro. A palavra "imemorial", em bronze, é fixada na parede. As fotos dos mortos, feitas em película ortocromática pintada, preto sobre preto, permitem que uma sombra prata percorra obliquamente a obscuridade. As fotos dos meninos conservam a cor sépia amarelada e escura das velhas fotografias. A foto da ficha, desprendida do arquivo e refotografada, conserva, aumentadas, as feridas dos grampos - dois furos no peito – e as evidências da passagem do tempo. Nem nomes, nem histórias, somente um número identifica as pessoas. 

    No contexto da exposição, Imemorial é um testemunho claro da amnésia voluntária instaurada pelo poder. "Amnésia", repete a artista, não esquecimento. Amnésia: perda da memória, total ou parcial. O termo médico aponta para uma evaporação dos sentidos. A gente esquece que alguma coisa foi esquecida. Amnésia social, amnésia coletiva, como Heinrich Böll define a relação da Alemanha do pós-guerra com seu passado nazista. Em algum momento, algo foi irremediavelmente perdido; as fotos que Rennó recontextualiza não restauram a memória, mas testemunham o esquecimento: essas pessoas foram fotografadas para serem esquecidas. Suas fichas, nos arquivos da Novacap, eram seus túmulos. 

    Por um breve tempo, do chão e do muro do Teatro Nacional, da dourada Brasília, alguns operários que a construíram olharam com seus olhos cegos. No catálogo da exposição, Imemorial completa-se com as fotografias do Túmulo do Candango Desconhecido, construído em 1958 e depois destruído, do Novo Túmulo do Candango Desconhecido, construído em 1985, e de um fragmento de As cidades invisíveis, de Italo Calvino. 

    Nas páginas do catálogo, duas humildes tumbas em ruínas atestam a precariedade das homenagens e, de alguma maneira, assinalam o lado épico da construção de Brasília. O Túmulo do Candango Desconhecido, escondido pelo mato, é o avesso do imponente Memorial JK, projetado por Niemeyer e inaugurado em Brasília, em 1981 (1). Como um monumento precário, o Imemorial de Rennó opõe-se criticamente aos memoriais de Niemeyer ao exibir, obliquamente, os rastros da exploração que o arquiteto comunista havia esquecido. 

    Se lermos o catálogo como um suplemento à instalação, perceberemos que, através do seu trabalho, Rennó propõe a possibilidade de descobrir uma outra cidade, aquela que se esconde e prolifera no interior da cidade do futuro. Com Calvino, adverte-nos: 

    [...] su una qualità intrinseca di questa città ingiusta che germoglia in se- greto nella segreta città giusta: ed è il possibile risveglio – come um con- citato aprirsi di finestre - de um latente amore per il giusto, non ancora sottoposto a regole, capace dei ricomporre una città più giusta ancora di quanto non fosse prima di diventare recipiente dell'ingiustizia. Ma se si scruta ancora nell'interno di questo novo germe do giusto vi si scopre una macchiolina che se dilata come a crescente inclinazione a imporre ciò che è giusto attraverso ciò che è ingiusto, e forse è il germe d'una immensa metropoli [...] (2)

    Esse "amor latente pela justiça, ainda não submetido a regras", que nasce e prolifera no interior da cidade injusta, impregna Imemorial. E mesmo que o resgate da memória seja circunstancial e efêmero, a obra afirma a possibilidade de se resistir à amnésia social através da arte. 

    Faz tempo Rosângela Rennó deseja interromper o fluxo das imagens criado pela fotografia, e, para isso, apropria-se de imagens existentes. Como Freud que, no Mal-estar na civilização (1930), inquieta-se por gastar impressão, tinta e papel, por mobilizar uma pesada máquina arquivística para contar histórias que todo mundo conhece, (3) como Borges, que lamenta “acrescentar à infinita série um símbolo a mais", Rennó acredita que existem demasiadas fotografias no mundo e, em consequência, apenas refotografa imagens de fotografias. (En abyme, o referente da fotografia é uma fotografia...) Mas, apesar da retórica do gesto, cada velha fotografia refotografada se transforma numa nova fotografia, um novo arquivo, um símbolo a mais que vem agregar-se à infinita série. 

    As fotos esquecidas – restos de um álbum de família, fotos de identificação abandonadas, arquivos penais, fotogramas cortados na edição da película – são resgatadas e recontextualizadas como provas da amnésia social. […]


        1.     O Memorial JK está situado na praça do Cruzeiro, onde, em 1957, foi celebrada a primeira missa de Brasília.
        2.    "Sobre uma qualidade intrínseca desta cidade injusta que brota em segredo na secreta cidade justar e é o possível despertar - como um simultâneo abrir-se de janelas - de um latente amor pelo justo, ainda não submetido a regras, capaz de recompor uma cidade ainda mais justa do que era antes de transformar-se em recipiente da justiça. Mas se escrutinamos ainda no interior deste novo gérmen do justo, descobrimos uma manchinha que se dilata como a crescente inclinação a impor aquilo que é justo através daquilo que é injusto, e talvez seja o gérmen de uma imensa metrópole." (tradução livre). In: CALVINO, L. Le città invisibili. Turim: Einaudi, 1972, p.167. 
        3.    DERRIDA, J. Made in Cression freudiana. Madri: Trotta, 1997, p.16. 


    MELENDI, Maria Angélica. Estratégias da arte em uma era de catástrofes (excerto de texto). Rio de Janeiro: Cobogó, 2017, pp. 296-299.